A cúpula do Exército Brasileiro sabia por meios próprios da gravidade da crise em formação em Brasília no dia 7 de janeiro deste ano, véspera dos ataques golpistas contra as sedes dos três Poderes na capital federal.
Até aqui, era público que alertas haviam sido produzidos pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência), subordinada ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional), como a Folha revelou no dia seguinte à intentona de bolsonaristas contra a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Esses relatórios eram difundidos a diversos órgãos, inclusive o CIE (Centro de Inteligência do Exército). Mas a entidade militar produziu relatos próprios, que chegaram informalmente a integrantes de sua cúpula ao menos no sábado (7 de janeiro) anterior aos ataques.
A reportagem teve acesso a algumas dessas mensagens, que foram enviadas por WhatsApp e não por meio de informes oficiais —daí o CIE ter respondido à CPI do 8/1 que não tinha relatórios sobre o que ocorria no acampamento à frente do Quartel-General do Exército, um dos focos da confusão.
Aqueles que as receberam confirmam que houve hesitação em agir, em parte porque pela ordem estabelecida era o GSI o responsável em solicitar reforço de tropas ao CMP (Comando Militar do Planalto). Como a Folha mostrou em janeiro, isso não aconteceu.
De todo modo, houve uma prontidão extraoficial decretada, disseram pessoas presentes à crise. Não deu muito certo: se durante as manifestações golpistas do 15 de novembro, após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) para Lula, havia 110 soldados no Planalto, os 36 mobilizados no dia 8 de janeiro só chegaram à sede do Executivo quando a baderna já estava instalada —Congresso e Supremo, também atacados, não eram suas atribuições.
O resto são os problemas conhecidos: não houve trabalho em parceria com as forças de segurança distritais e houve a ordem esdrúxula de permitir que os manifestantes de volta da Esplanada dos Ministérios voltassem ao acampamento junto ao QG, onde foram blindados por uma noite com apoio de dois carros de combate.
Lula foi informado de que a proteção era necessária para evitar conflitos, mas o fato é que, se os bolsonaristas não tivessem tido refúgio, poderiam ter sido presos —ao fim, na manhã e tarde seguintes, 1.406 estavam detidos.
O IPM (Inquérito Policial Militar) do Exército sobre o caso concluiu que houve um apagão generalizado, com o GSI emergindo como o principal culpado pela falta de coordenação entre forças diversas para proteger o Palácio do Planalto e garantir a segurança em Brasília.
Essa apuração não encontrou crimes militares na conduta dos agentes públicos, e foi remetida ao Supremo Tribunal Federal a pedido do ministro Alexandre de Moraes, que toca os inquéritos relativos ao golpismo bolsonarista. Lá poderão ser tipificadas, eventualmente, outras transgressões.
Nas mensagens do CIE, que podem ou não ter em sua origem os relatórios da Abin, é descrito o já conhecido roteiro do 8 de janeiro. Havia uma agitação moderada no acampamento em frente ao QG do Exército, mas os reais reforços golpistas para a “festa da Selma”, senha informal do ataque, vieram em forma de ônibus bancados por empresários bolsonaristas de diversos estados.
A Folha questionou o Exército sobre as mensagens e os encaminhamentos subsequentes, mas não houve comentários. Numa delas, é citado em tom de dúvida que a Polícia Militar do Distrito Federal havia garantido que todos os transportes estavam sendo vistoriados e que a situação era calma.
Com efeito, há quase duas semanas a cúpula da PM distrital foi presa, acusada de agir de forma proativa na maior ação coordenada contra a democracia brasileira desde o golpe de 1964. Isso não tira o foco sobre a atuação de fardados do Exército e de outras Forças, em menor medida, até pela identificação que a simbiose de quatro anos com Bolsonaro proporcionou.
Oficiais-generais que estiveram no centro da crise se queixam dessa versão. Segundo eles, o Alto-Comando do Exército, grupo de usualmente 16 generais de quatro estrelas, em momento algum discutiu adesão aos intuitos golpistas do entorno do então presidente e, depois, no 8/1.
Havia, concordam, pressão forte na base militar por algum tipo de ação contra Lula. É notório que havia vários integrantes do Alto-Comando com simpatias às elocubrações golpistas, particularmente acerca de dúvidas sobre as urnas eletrônicas. Mas, segundo a versão de integrantes do grupo, isso foi barrado pela posição majoritária do colegiado.
À frente do legalismo estavam dois generais curiosamente vistos como bolsonaristas: Valério Stumpf e Richard Nunes. Além deles, Tomás Ribeiro Paiva, que viria a tornar-se o comandante da Força após a insatisfação de Lula com a resposta do Exército ao 8/1.
Com efeito, esses três oficiais foram alvo de uma campanha difamatória no fim do ano passado, promovida pelo influente comentarista Paulo Figueiredo, neto do último general-presidente da ditadura de 1964, João Figueiredo. Ele fez postagens e comentários chamando os generais de melancia, gíria para quem é verde por fora (cor da farda do Exército) e vermelho por dentro (supostamente comunista).
Voltando ao eventos de janeiro, esses mesmos integrantes do Alto-Comando concordam que a resposta foi insuficiente e que a Força está pagando por isso, o que naturalmente só piorou pelo histórico de adesão a Bolsonaro e às revelações de episódios escandalosos como o das joias vendidas nos EUA pelo então ajudante de ordens do presidente, Mauro Cid, com ajuda de seu pai, o respeitado general de quatro estrelas da reserva homônimo.
O ministro José Múcio (Defesa) tem feito uma ofensiva para tentar blindar generais na crise, conversando com integrantes da CPI, do Supremo Tribunal Federal e do governo. Até aqui, a Polícia Federal tem ao menos 13 militares da ativa na mira, entre eles 2 generais.
Múcio tem tido dificuldade para acessar a lista de militares investigados até aqui no episódio do 8/1, o mais agudo em termos institucionais para as Forças. Mas seus aliados listam medidas internas que foram tomadas desde então.
Houve quatro IPMs. Um, o do CMP que está com Moraes e que não viu crimes militares. Os outros três, tocados pela 11ª Região Militar, que abarca Brasília. Num deles, um coronel da reserva está denunciado por ofender generais, enquanto em outros dois outro coronel da reserva é acusado de pregar o golpe nas redes.
Também houve quatro sindicâncias, todas no âmbito do CMP. Uma acabou com advertência a um militar por apoiar os manifestantes, outra com a prisão temporária de um major que cantou o Hino Nacional com os golpistas. Outras duas não acharam transgressões.
Por fim, houve as medidas fora do regramento militar. O tenente-coronel Cid perdeu a indicação, feita em maio de 2022, para comandar as Forças Especiais baseadas em Goiânia. Já seu colega coronel Jean Lawand Júnior, que exortou o então ajudante de ordens a estimular Bolsonaro a dar um golpe, ficou sem a promoção a adido militar adjunto nos Estados Unidos em 2024.
noticia por : UOL