Um forte ataque que pegou de surpresa os israelenses, causando alto número de mortes e uma forte resposta militar.
A ação do grupo palestino Hamas neste final de semana está sendo comparada por muitos a outro ataque que seguiu exatamente esse padrão descrito acima e que está completando 50 anos este mês –a guerra de Yom Kippur, em 1973.
Em 1973, o ataque combinado das forças do Egito e da Síria, em duas frentes diferentes, surpreendeu o Estado de Israel. O país estava despreparado em um momento particularmente vulnerável: o dia de Yom Kippur, a data mais sagrada do calendário hebraico.
Israel estava paralisado. Não havia transporte público e os meios de comunicação estavam fora do ar. Os cidadãos praticavam jejum absoluto e compareciam às sinagogas para rezar.
Em questão de minutos, milhares de reservistas abandonaram seus lares e templos para ocupar a frente de batalha.
Muitos acreditavam que seria uma guerra curta e fácil, como a de 1967, quando Israel derrotou os exércitos do Egito, Jordânia e Síria em apenas seis dias. Mas, desta vez, tudo seria muito diferente.
O ataque meticulosamente planejado pelo governo do presidente egípcio Anwar al-Sadat (1918-1981), em conjunto com o mandatário sírio Hafez al-Assad (1930-2000) arrasou as linhas de defesa de Israel. A ofensiva fez com que os líderes israelenses percebessem que a própria sobrevivência do Estado poderia estar em risco, como ocorreu na guerra da independência em 1948.
Com um saldo de 2.656 soldados mortos, cerca de 15 mil feridos e quase 1 mil capturados como prisioneiros, a Guerra do Yom Kippur foi o conflito que causou maior número de vítimas a Israel desde 1948.
Surpresa com aviso prévio
A guerra iniciada meio século atrás, no dia 6 de outubro de 1973, foi o quarto conflito bélico entre Israel e seus vizinhos árabes.
Paradoxalmente, os governantes israelenses já esperavam pelo confronto. Afinal, o governo da então primeira-ministra Golda Meir (1898-1978) havia recebido sinais e avisos nos meses que antecederam a guerra.
Naquela mesma manhã, o governo de Meir foi informado sobre o início iminente das hostilidades, mas descartou a realização de um ataque preventivo.
Por quê? Para responder a esta pergunta, é preciso buscar explicações nas guerras anteriores, especialmente na Guerra dos Seis Dias.
Travado em 1967, o conflito trouxe grandes mudanças, por ter permitido que Israel expandisse seu território. O país passou a controlar a península do Sinai e a Faixa de Gaza, antes pertencentes ao Egito; as colinas de Golã, que faziam parte da Síria; e Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, que pertenciam à Jordânia.
Mas, paralelamente, a Guerra dos Seis Dias foi a semente que gerou o confronto seguinte. O Egito e a Síria não estavam dispostos a aceitar as perdas territoriais, nem a ficar eternamente marcados por aquela humilhante derrota.
O conflito de 1967 também influenciou a estratégia militar de Israel e sua reação aos alertas recebidos antes da Guerra do Yom Kippur —também conhecida como Guerra do Ramadã, já que coincidiu com o mês sagrado dos muçulmanos.
Depois da Guerra dos Seis Dias, Israel concentraria seus esforços na manutenção da sua superioridade aérea e seus veículos blindados, responsáveis pela sua vantagem em 1967. Mas o país descuidou em outros setores.
“As Forças de Defesa de Israel [IDFs, na sigla em inglês] colocaram todos os seus ovos em dois cestos. Elas dedicaram mais de 75% do seu orçamento exclusivamente à Força Aérea e ao setor de blindados. Elas descuidaram dos ramos de artilharia e infantaria, transferindo a maioria das suas unidades de infantaria regular e mecanizada para a reserva”, segundo Keith F. Kopets, então capitão do corpo de fuzileiros navais dos Estados Unidos, em uma análise publicada em 2003.
“Apegando-se à convicção de que apenas um tanque poderia derrotar outro tanque, Israel rejeitou uma oferta dos Estados Unidos de fornecimento do novo sistema de mísseis antitanques TOW”, acrescenta Kopets.
O conflito demonstraria o alto custo destes erros.
Conceito equivocado
Desde 1967, os militares israelenses definiram o que ficaria conhecido como “o conceito”.
Eles se basearam na premissa de que o Egito não iniciaria uma guerra antes que pudesse contar com poderio aéreo suficiente para um forte ataque dentro do território de Israel, atingindo seus aeroportos e anulando sua Força Aérea.
“Retrospectivamente, é óbvio que esta suposição foi baseada nos sucessos operacionais de Israel na guerra de junho [de 1967] e nos cálculos e posturas estratégicas árabes”, afirma o autor P. R. Kumaraswamy na introdução do livro Revisiting the Yom Kippur War (“Revisitando a Guerra do Yom Kippur”, em tradução livre).
E os militares israelenses calculavam que o Egito só conseguiria atingir essa capacidade aérea em 1975.
Por outro lado, para tirar proveito da maior distância entre o seu país e os inimigos, devido aos territórios conquistados em 1967, Israel construiu diversas estruturas fortificadas ao longo da margem oriental do Canal de Suez.
Conhecidas como linha Bar Lev, essas construções deveriam impossibilitar ou, pelo menos, retardar qualquer tentativa egípcia de invadir o Sinai.
Um último elemento que, para muitos analistas, impediu Israel de se preparar para a Guerra do Yom Kippur foi o fato de que, depois do sucesso de 1967, a hierarquia militar israelense havia ficado “soberba”, menosprezando a possível ameaça representada pelas forças árabes.
Em uma palestra no dia 9 de agosto de 1973, o então ministro da Defesa de Israel, Moshe Dayan (1915-1981), vangloriou-se da supremacia do seu país sobre os vizinhos árabes.
“Nossa superioridade militar é o resultado conjunto da fraqueza árabe e da nossa força”, afirmou ele para oficiais da Escola de Estado Maior do Exército israelense.
“Sua fraqueza decorre de fatores que não irão se alterar rapidamente… Baixo nível de educação, tecnologia e integridade dos seus soldados… Desunião entre os árabes… E o peso decisivo do nacionalismo extremo”, acrescentou Dayan.
Mas, como sempre acontece com os generais que permanecem combatendo a última guerra e não a próxima, a visão de Dayan estava enraizada no passado.
Ofensiva brilhante
Perto das duas horas da tarde daquele dia 6 de outubro de 1973, as forças egípcias iniciaram um ataque contra Israel. Participaram 240 aviões, 2 mil tanques, cerca de 1 mil unidades de artilharia e cerca de 2 mil canhões e lança-mísseis antitanques.
O bombardeio aéreo durou cerca de 20 minutos, mas a artilharia prosseguiu por mais meia hora. O Egito fragilizou as defesas destacadas por Israel na margem oriental do Canal de Suez e iniciou uma operação para cruzá-lo.
Os estrategistas israelenses haviam calculado que, para atravessar o canal com armamento pesado, o Egito precisaria de pelo menos 48 horas. E, neste prazo, Israel já estaria em condições de deter o ataque.
Mas os cálculos estavam errados. As forças egípcias conseguiram estender pontes sobre o Canal de Suez em apenas 10 horas, possibilitando a travessia de 500 tanques.
Com isso, 24 horas depois do início da ofensiva, o Egito já dispunha de duas divisões mecanizadas e duas de infantaria na península do Sinai. A linha Bar Lev caiu em questão de horas e os 500 soldados que a defendiam, em sua maioria, foram mortos ou capturados.
Os especialistas militares costumam definir esta operação como “brilhante”.
As forças terrestres enviadas por Israel ao Canal de Suez em resposta ao ataque foram esmagadas e sua Força Aérea recebeu duros golpes ao entrar em combate sem antes desabilitar as defesas antiaéreas do inimigo.
A decisão de não se antecipar ao ataque teve um custo militar e humano considerável para Israel.
Ela foi baseada nas estimativas equivocadas dos chefes militares —incluindo Dayan, então considerado um herói nacional— e no cálculo correto de Golda Meir de que Israel precisava, a todo custo, evitar que fosse considerado agressor, para que tivesse alguma oportunidade de receber ajuda externa em caso de necessidade.
A primeira-ministra também havia se comprometido com o governo dos Estados Unidos a não ser a primeira a atacar.
Meir não estava errada. Mas, embora Israel não tivesse iniciado a guerra, a maior parte dos países europeus se negou a prestar assistência, por medo de represálias dos países árabes.
Já os Estados Unidos só ficaram convencidos da necessidade quando a União Soviética colocou em andamento uma operação para reabastecer o Egito e a Síria com armas e equipamentos.
Em resposta à decisão americana de enviar ajuda a Israel, os países árabes produtores de petróleo reduziram drasticamente a extração do produto e boicotaram o transporte de petróleo para os Estados Unidos e para outros países, como a Holanda, Portugal e África do Sul.
Com isso, começou a chamada “crise do petróleo”, que fez com que os Estados Unidos sofressem escassez de combustível pela primeira vez na sua história.
Em 1974, o preço do barril de petróleo quadruplicou, com fortes efeitos para a economia global, alimentando uma onda inflacionária que causou recessão e desemprego nos países importadores do produto.
Risco para o ‘Terceiro Templo’
Os primeiros dias da guerra foram aterradores para Israel. Suas defesas foram arrasadas pelas forças inimigas, muito mais numerosas. Sua aposta na superioridade aérea não funcionou.
O país não tinha aliados e precisava deles com urgência. Afinal, a guerra em duas frentes estava esgotando rapidamente suas armas e munições.
O material bélico era importante não apenas para a defesa, mas também para o contra-ataque, que manteria seus inimigos longe das cidades e centros populacionais do país.
No dia seguinte ao início dos combates, Dayan visitou a frente de batalha e voltou devastado. Ele havia se convertido em um profeta do desastre.
“Subestimei a força do inimigo e superestimei nossas próprias forças. Os árabes são soldados muito melhores do que costumavam ser. Muita gente irá morrer”, lamentou ele, em uma das reuniões mantidas com a primeira-ministra Golda Meir e outros membros do governo.
P. R. Kumaraswamy destaca que a euforia que se seguiu à Guerra dos Seis Dias havia repentinamente se transformado no pior dos pesadelos.
“Pela primeira vez desde a sua criação, Israel se viu à beira do colapso”, afirma o especialista. “Quando a contraofensiva inicial sobre o Egito fracassou no dia 8 de outubro, alguns temeram pela queda do Terceiro Templo.”
A expressão “Terceiro Templo” é uma referência ao moderno Estado de Israel.
“Dayan teve uma crise nervosa. Tudo o que ele havia planejado ou imaginado havia falhado. E ele começou a falar às pessoas do seu entorno sobre o risco da possível queda do Terceiro Templo, deprimindo todos à sua volta”, afirmou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) Abraham Rabinovich, autor de um livro sobre a Guerra do Yom Kippur. Rabinovich trabalhou na cobertura do conflito como jornalista do Jerusalem Post.
A preocupação de Dayan era tão grande que, segundo testemunhos, ele chegou a sugerir que Israel iniciasse os preparativos para uma “demonstração” das suas capacidades nucleares. Mas esta opção foi imediatamente rejeitada pela primeira-ministra Golda Meir, segundo contou o pesquisador Avner Cohen, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Cohen é o autor de um estudo intitulado Israel e a Bomba.
Apesar disso, a preocupação com o que poderia acontecer com Israel também calou profundamente a primeira-ministra —tanto que se soube, anos mais tarde, que ela chegou a contemplar a possibilidade de suicídio no segundo dia de conflito.
O cenário descrito por Dayan era tão catastrófico que Meir consultou o comandante-geral das IDFs, o general David Elazar (1925-1976). Ele confirmou que a situação era muito perigosa para Israel, mas recomendou esperar os relatos do campo de batalha antes de decidir pela retirada do Canal de Suez e das colinas de Golã, como Dayan havia proposto.
“No primeiro dia da guerra, Elazar disse a pessoas próximas: ‘não podemos ganhar esta guerra'”, comenta Rabinovich. Segundo ele, isso não significa que Elazar acreditasse que eles iriam perder, mas que seria preciso muito sangue e esforço.
“Havia medo do que poderia acontecer”, acrescenta Rabinovich. “Eles não viam uma saída, enquanto suas forças se enfraqueciam diariamente.”
No dia 9 de outubro, Israel conseguiu conter a ofensiva nas duas frentes. E, como o Egito decidiu consolidar sua posição em vez de seguir avançando, as IDFs concentraram seus limitados recursos para combater as forças sírias no Golã. Elas conseguiram colocar a Síria na defensiva, ainda que com alto custo humano e material.
Mas Israel ainda não contava com as armas e munições necessárias para lançar um contra-ataque vigoroso.
A ajuda indispensável
No período de um mês, Israel receberia 24 mil toneladas de equipamentos militares e logísticos, incluindo munições, mísseis e tanques.
Em 14 de outubro, atendendo aos chamados da Síria, novas forças egípcias cruzariam o Canal de Suez para avançar sobre o Sinai, ficando sem a proteção dos escudos antiaéreos e antitanques instalados perto da linha Bar Lev.
Mas, desta vez, Israel estava esperando por eles. Egípcios e israelenses se enfrentaram em uma das maiores batalhas de tanques verificadas desde a Segunda Guerra Mundial. O Egito perdeu cerca de 250 veículos blindados.
Aproveitando as novas circunstâncias, Israel faria uma manobra que definiria o rumo da guerra. Usando uma pequena área mal protegida, o exército israelense cruzou o Canal de Suez em direção ao Egito. Dali, ele destruiu a artilharia e as defesas antiaéreas que protegiam as forças egípcias na península do Sinai.
Da margem ocidental do Canal de Suez, as forças israelenses avançaram nos dias que se seguiram, até chegarem a cerca de 100 km da capital egípcia, a cidade do Cairo.
Esta ação colocou o governo egípcio em uma situação muito comprometedora, da qual só se livrou graças ao cessar-fogo decretado pelo Conselho de Segurança da ONU em 22 de outubro e reafirmado em resoluções posteriores, nos dias 23 e 25 do mesmo mês.
E foi assim, com as duas capitais árabes ao alcance das suas tropas, que Israel conseguiu sucesso na “guerra que não podia ganhar”.
O caminho até a paz
A vitória seria medida não tanto em termos militares, mas sim políticos.
O Egito e a Síria atingiram uma conquista importante. Eles romperam a imagem de invencibilidade de Israel, apagando a vergonha que carregavam desde a derrota na Guerra dos Seis Dias.
“A guerra de 1973 redimiu a dignidade e autoestima dos árabes, permitindo que o presidente egípcio Anwar al-Sadat utilizasse sua recém-adquirida proeminência para desvincular seu país e, com ele, grande parte do mundo árabe do fatídico encontro com o Estado judeu”, segundo o historiador Efraim Karsh.
Para Israel, o conflito significou um choque político e emocional que, no curto prazo, levou à queda do governo da primeira-ministra Golda Meir.
“Israel ficou profundamente humilhado”, afirma Karsh. “A complacência que havia se apoderado da psique israelense depois da vitória assombrosa de 1967 ficou irrevogavelmente destruída. Pela primeira vez desde a fundação do seu Estado, os israelenses sentiram que sua existência estava em jogo.”
“O Estado de Israel que surgiu do trauma de 1973 era uma nação diferente: sóbria, moderada e marcada de muitas formas por cicatrizes duradouras”, prossegue Karsh.
“Ainda desconfiava dos seus vizinhos, mas estava mais atento aos sinais de moderação regional; muito preocupado com os riscos de segurança trazidos pelas concessões territoriais, mas consciente de que [o controle da] terra não poderia comprar segurança absoluta.”
A experiência trouxe mudanças importantes na opinião pública israelense, que começou a defender cada vez mais a ideia de trocar territórios por paz. Estas mudanças viriam a apoiar os acordos de paz de Oslo com os palestinos, assinados em 1993.
Mas a mudança mais imediata e duradoura ocorreu com relação ao governo de Anwar al-Sadat. Um acordo de paz assinado em 1979 entre o presidente egípcio e o primeiro-ministro israelense Menachem Begin (1913-1992) fez com que o Egito recuperasse a soberania sobre a península do Sinai e se tornasse o primeiro país árabe a reconhecer Israel como Estado legítimo e soberano.
Este acordo permitiu manter a paz entre Israel e a principal potência militar árabe do planeta por mais de quatro décadas —uma conquista ainda maior se considerarmos que os dois países haviam travado quatro guerras em apenas 25 anos.
noticia por : UOL