“Viveeer, e não ter a vergonha de ser feliiiz.” Caio estava cansado de saber que, sempre que pode, Maria Bethânia termina seu show com a mesma música, escrita por Gonzaguinha. Ele já foi ver Bethânia mais de 20 vezes nos últimos 30 anos. Acontece que Caio tem pavor da letra “eu fico com a pureza da resposta das crianças: é bonita, é bonita e é bonita”. E Caio arrepia só de pensar que, no fim do show, as pessoas vão levantar das mesas com o dedo pra cima e rodar enquanto cantam: “Eu sei que a vida devia ser bem melhor. E será!”.
“Acho tenebroso. Uma cena triste mesmo. Uma coisa meio tiozão com bafo de uísque brincando de karaokê. Terrível”, diz ele, para depois apontar o mesmo dedo para si: “Eu tô com 52 anos, então talvez seja o medo de eu ser um tiozão. Talvez eu esteja me vendo em quem sai rodando e cantando, daí me dói.” E Caio vivia bem com seu constrangimento agudo. Sempre que notava o fim do show se aproximando, saía da plateia e ia para rua, onde acenava para o primeiro táxi que aparecesse antes de ele ser atingido pelos primeiros acordes da música de encerramento. “E assim eu ainda evito o trânsito que é a saída do show, é ótimo.”
Mas, num show recente de Bethânia, alguma coisa deu errado. Caio estava com um amigo que bebeu demais e se recusava a ir embora. Acontece que esse amigo tinha ido de carro, e Caio não ousaria ir embora e deixar o bebum sozinho para dirigir até em casa. Então, cruzou os braços, fechou a cara e se preparou para o baque da cena que mais temia. “Eu sabia que ia azedar meu show todo. Mas fazer o quê, né?”
E foi batata. Bethânia terminou o show e, na hora do bis, já começaram os acordes que povoam o pesadelo de Caio. Ela abriu a boca e começou: “viveeeerrr”. O público, como se enfeitiçado, levantou e começou a rodopiar. Muita gente com lágrimas nos olhos. Uma catarse que parecia abraçar todos no salão, menos Caio. “Eu sentia dor de vergonha. Dor.”
Daí, em meio a uma cena que para ele era mais violenta que Guernica, Caio viu alguma coisa que não lhe causou cringe. Pelo contrário. Era um homem de cabelos raspados, uma bata branca e braços magros jogados para o alto enquanto gritava: “Mas isso não impede que eu repita!”. Ele devia ter metade da sua idade, dançando e rindo e chorando enquanto olhava para a baiana no palco. Os dois trocaram um olhar. Mas se Maria Bethânia está num cômodo, é difícil olhar para outra coisa que não seja Maria Bethânia, então foi só um olhar mesmo.
E o show acabou. Caio ainda se recuperava do baque de ter vivido aquilo quando alguém tocou seu ombro. Enquanto ele estava na rua esperando o manobrista trazer o carro do amigo, o mesmo homem que não tinha vergonha de ser feliz o cutucou e soltou uma frase que terminava em um ponto de interrogação. Não pediu o número de telefone. Disse que se chamava Wesley e o que perguntou foi: “Qual a sua arroba?”. Caio franziu o cenho. “O nome no Instagram.” Caio passou, por mais que seu perfil fosse um território abandonado, com um punhado de fotos de viagens velhas e de gatos ainda filhotes, que hoje já estão crescidos.
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“Não achei que ele fosse mandar mensagem. E, se mandasse, achei que ia me chamar pra uma festa em galpão enferrujado na Barra Funda.” Previu que o jovem fosse convidá-lo para tomar vinho de garrafa de plástico nos degraus da praça Roosevelt. Mas a proposta foi ir jantar em um bistrô centenário no largo do Arouche. Caio foi. E se divertiu. “Foi ali que eu descobri que o Wesley tem a alma velha. É mais velho que eu”, diz Caio. Daí pausa e de novo volta a fazer piada com o que acaba de dizer. “Quer coisa mais tiozão do que namorar um moleque e dizer que ele tem alma velha?”.
Caio e Wesley estão juntos desde então. Você não vai ver os dois na rua numa noite de sábado. O programa predileto do fim de semana é ficar em casa vendo vídeos raros de apresentações de cantoras como Maysa e Elizeth Cardoso. Vez ou outra eles saem da toca para ver alguém cantar ao vivo.
No próximo show, Caio promete que vai viver e não ter vergonha de ser feliz. Até o fim. E assim será.
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noticia por : UOL