MUNDO

As várias identidades da arte condensadas no ateliê de Cristina Canale

A primeira vez que visitei o ateliê de Cristina Canale, em Berlim, parei diante de uma pequena tela. “Parece um haicai, é de um minimalismo, de uma economia. E essas pequenas manchas vermelhas nesse chão branco são como vestígios de um trágico acidente na neve”. Ela sorriu e me respondeu: “Engraçado, onde você vê neve, eu vejo uma chuvinha caindo no agreste, e aqui, nessas manchinhas verdes e vermelhas, o agreste voltando à vida.”

Nossos pontos de vista completamente opostos em relação à mesma tela —o meu, uma cena dramática de inverno, o dela, uma celebração da primavera—, me lembraram uma famosa anedota sobre o poeta japonês e mestre do haicai, Matsuo Bashō.

Certa vez, Bashō caminhava com seu discípulo Takarai Kikaku pelo campo, quando foram surpreendidos por algumas libélulas vermelhas que voejavam. Sentindo-se inspirado pelo que vira, Kikaku prontamente ensaiou um haicai que dizia: “Uma libélula vermelha!/Arranco-lhe as asas/Uma pimenta!”.

Ao mostrá-lo a Bashō, à espera de aprovação, o mestre, então, exortou-lhe: “A libélula está morta, assim se cria a vida?” E, em seguida, propôs uma pequena inversão que, no entanto, mudava completamente o sentido do poema: “Pimentas vermelhas!/Coloco-lhe asas,/Pasme, libélulas!”.

É certo que o espanto de Cristina ao ouvir sobre o acidente trágico que eu vira em sua pintura não tinha a ver com aquele de Bashō em relação ao haicai escrito por seu discípulo. O que espantou a artista foi que o sentido que eu atribui à obra era justificável graças aos mesmos elementos pictóricos que compunham o que ela via como uma chuva no agreste.

Cristina não estava ali recusando o que eu havia visto, muito menos queria me repreender para que eu visse o que ela via, como quem interroga em tom moralista ou autoritário. “Por que você está vendo morte onde eu quis celebrar a vida?”, ou, ainda, “mas sou eu a pintora e só eu sei o que expressa minha obra”.

Na verdade, naquele momento, Cristina compartilhava comigo a mesma perplexidade por termos visto o que vimos e não o que o outro estava vendo, ou vice-versa. Afinal, a pintura, em si, não só admitia essa ambivalência, mas animava-se, enriquecia-se com mais uma demão de sentido.

Diferentemente de poemas, como os haicais, nos quais o poético se expressa por meio da escrita e, portanto, é sobredeterminado pela linearidade própria desse meio —afinal, tanto na escrita, quanto na leitura, uma palavra só pode vir depois da outra—, as pinturas nos apresentam frontalmente tudo aquilo que as compõem já no primeiro olhar.

É a partir dessa especificidade que pinturas como a de Cristina se abrem a leituras sem fim, sem que nenhuma delas possa ser considerada mais ou menos verdadeira —desde que sejam, para lembrar Marcel Duchamp e sua ideia de “coeficiente de arte”, resultado dos elementos próprios que a constituem e ali se apresentam como uma esfinge que olha e interroga aqueles que também a olham.

Se em vez de ter escrito um haicai, Kikaku tivesse pintado a cena que vira, sua pintura poderia comunicar, de uma só vez, uma coisa e o seu contrário. E, assim, libélulas poderiam ser pimentas sem que pimentas deixassem de ser libélulas. “Sim, agora entendo o que você vê, e de fato há aqui uma chuva no agreste e um acidente na neve”, concluiu Cristina, diante da pintura. E eu, por outro lado, também passei a ver o que ela via, sem, no entanto, “desver” o que já tinha visto.

Essa abertura de Cristina para o olhar do outro em relação à sua obra é a marca de sua “ética de trabalho”. A artista não parece sequer querer exercer domínio sobre a pintura, mas se deixar conduzir por ela e pelo acaso.

Assim, a pintura parece assumir, para ela, a mesma posição de um outro. Ou seja, ela se coloca diante da tela com a mesma postura que mantém enquanto artista diante de seu espectador. E não há nisto nenhuma dimensão esotérica, pelo contrário: é por compreender o que há de material na pintura, que a artista sabe que não só o corpo a corpo entre ela e a tela, como também tudo o que está ao redor pode afetar esse processo e surpreendê-la. É comum, por exemplo, que ela comece um quadro no inverno que só poderá ser terminado na primavera, quando a luz do sol aos poucos volta a brilhar sobre Berlim.

Cristina tem consciência de que nunca trabalha só, mas com a plasticidade da tinta que criar transparências, sobreposições, crispações. Com a incidência da luz que determina a vibração exata da cor desejada, com os pelos do pincel que arrastam a tinta, deixando o rastro de sua mão na superfície do tecido.

É por ter essa consciência que a artista pode até ter alguma ideia de como começar uma pintura, mas nunca sabe como ou quando vai terminá-la.

É por isso que Cristina costuma dar alguns passos para trás para ver a pintura a certa distância, como se a obra devolvesse o olhar e dissesse: “agora sim, estou pronta”. Em seu ateliê, olho uma tela e lhe pergunto: “Essa aqui, já acabou?”

“Essa aí ainda não, falta alguma coisa, não sei dizer o quê”, ela me respondeu. Pode-se conjecturar que talvez a luz do sol em certo momento da manhã lhe trará alguma resposta, dada pela pintura desde que ela dê, como sempre faz, um passo para trás.

Quem quer que encare as pinturas de Cristina, saberá que mesmo aquelas que se mostram mais figurativas apresentam imagens que, de algum modo, se desbordam. A artista costuma dizer que sua pintura vai do figurativo ao abstrato, e arrisco dizer que a passagem entre um e outro por vezes acontece em uma só tela.

Naquelas obras em que pinta faces, não se pode reconhecer face alguma, há ali apenas o prenúncio de uma face que está sempre por vir. Seus retratos não retratam, mas há neles uma desidentificação. E por serem a face de ninguém, podem ser a face de qualquer um.

Já ouvi pintores de diferentes gerações constatarem a admiração que têm pela habilidade com que Cristina é capaz de criar sobreposições. Se isso é verdade no que diz respeito às camadas pictóricas, também o é em termos de produção de imagens e, portanto, de sentidos e significados.

Pois há em sua obra uma suspensão deliberada do sentido, não em termos de uma falta deste, mas de uma abertura poética radical que possibilita não só a sua permanente ressignificação, mas que ali, como no caso da tela “Chuva no Agreste”, uma coisa possa ser ela mesma e o seu contrário.

noticia por : UOL

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