Quando os fogos no estádio de rodeio em Barretos anunciaram o show de Ana Castela na noite deste sábado (17), o espaço estava abarrotado. Mais cheio do que ficou em toda a sexta-feira, quando Simone Mendes, Bruno & Marrone e Maiara & Maraísa se apresentaram na maior festa do peão do país, no interior de São Paulo.
Aos 20 anos, Castela é a artista mais ouvida do Spotify no Brasil e a verdadeira face da mais recente renovação do sertanejo, com uma carreira repleta de feitos apesar do pouco tempo. Comandar uma plateia com lotação máxima de 50 mil pessoas como a da Festa do Peão de Boiadeiro é um deles.
“Que alegria poder estar de volta, agora sem chorar na frente de tanta gente”, ela disse, lembrando quando esteve no festival no ano passado e desabou em lágrimas depois de não conseguir atingir, com a voz, o tom de uma música.
Para uma artista que despontou cantando sobre a vida rural por cima de batidas de funk, a estrutura de Barretos poderia soar intimidadora. O evento, que faz 69 anos em 2024, é uma instituição tradicionalíssima do sertanejo, além de um ambiente notadamente conservador.
Foi justamente com “Pipoco”, seu primeiro sucesso, que ela iniciou a apresentação. Um funk com MC Melody na gravação, a música se transformou no palco em um sertanejo balançado, em que os agudos da caixa da bateria remetiam ao forró eletrônico nordestino e ao piseiro.
Essas levadas marcaram a fatia esteticamente menos quadrada do repertório, que também explica como Ana Castela despontou quebrando uma certa caretice do sertanejo. Em vez de sofrências melodramáticas sobre infidelidade regadas a álcool, ela canta sobre sexo, paquera, desejo e conquista.
São músicas como “As Meninas da Pecuária”, “Bombonzinho”, “Palhaça”, “Roça em Mim”, “Canudinho” e “Alerta de Golpe”. Ela canta que quica no chão, e o público —especialmente as mulheres— rebola. Castela usa códigos do funk, mesmo quando não evoca as batidas do gênero.
Seu repertório incluiu também parcerias com os maiores do sertanejo atual, como Luan Santana, Gusttavo Lima e Zé Neto e Cristiano, além do namorado, Gustavo Mioto —são as músicas mais românticas e convencionais, ainda que muitas sejam sucessos incontestáveis.
Taylor Swift de Mato Grosso do Sul
Castela é uma estrela pop que constrói sua estética a partir da música e da cultura caipira. É acompanhada no palco por dançarinas, gera fascínio nas crianças e tem um cavalo prateado gigante na cenografia. Nesse sentido, é uma espécie de Beyoncé vaqueira, de bota e chapéu.
Também ecoa o discurso empoderado do feminejo. “Seja dona de você, para nunca nessa vida depender de macho”, ela disse, antes de puxar “Dona de Mim”, música que cantou com uma criança da plateia chamada Heloísa.
O paradoxo entre ser da roça e ao mesmo tempo moderninha, apresentada em canções como “Boiadeira” e “Neon”, apareceu no show. Ao mesmo tempo em que canta sobre “aquele sobe desce”, o “love com gosto de sacanagem”, em batidas do DJ Guuga, ela puxa uma sequência de modões que dedica ao pai —de “As Andorinhas”, do Trio Parada Dura, a “Tentei te Esquecer”, eternizada nas vozes de Matogrosso & Mathias.
Algumas músicas são puro pop sertanejo. Em canções como “Nosso Quadro” e “Minha Herança”, Castela canta histórias pessoais sob melodias épicas como uma Taylor Swift de Mato Grosso do Sul.
Em alguns momentos, era possível sentir uma certa tensão no ar. Em “Lua”, música eletrônica com Alok e o grupo de trap Hungria, e os funks “Ram Tchum”, com Dennis DJ, “Dia de Fluxo”, com Ludmilla, e “Carinha de Bebê”, com Pedro Sampaio, parte da plateia foi à loucura, e outra fatia ficou quieta, com semblante sério.
Tão interessante quanto as batidas pesadas e agudos extremos do funk ecoando no estádio desenhado por Oscar Niemeyer é ouvir Castela cantando sobre misturar modão com baile e berrante com o alto-falante em “Não Para”. Se arte é desafio e provocação, a jovem cantora é quem mais tem a oferecer em Barretos.
Castela mostrou na festa do peão como hoje é a artista que mais se arrisca dentro de um gênero que pode soar bastante previsível. Com só duas décadas de vida, ela fricciona para transformar o sertanejo. Nem sempre é bem sucedida na empreitada —pode soar forçada ou plastificada—, mas não pode ser acusada de apostar na mesmice.
No fim do show, ela ainda fez a plateia pôr os chapéus para o alto com uma versão eletrônica de “Clima de Rodeio”. A escolha de sertanejo pop e dançante, hit nos anos 2000, não poderia ser mais adequada para o que ela significa no gênero atualmente —o verdadeiro sentido de novidade dentro de uma cultura de décadas, cuja representação máxima é exatamente a festa de Barretos.
O jornalista viajou a convite do festival
noticia por : UOL