MUNDO

A disputa pelas ruas na Argentina

Manuel Tufró, que é diretor de Justiça e Segurança do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CELS, organização de Direitos Humanos com forte presença a nível nacional), considera que “a abordagem do governo aos protestos foi uma mensagem disciplinar, ainda antes de haver manifestações contra o novo governo, na forma de criminalização das decisões regulatórias e das intervenções nos meios de comunicação social. Nesse sentido, creio que condicionou as formas e mensagens dos protestos, não só pelos limites que tentou impor, mas porque deu mais um motivo para protestar. Todas as mobilizações de dezembro e de janeiro tiveram este duplo conteúdo: contra as medidas econômicas, sociais e políticas do governo, mas também em defesa do direito ao protesto e em desafio às medidas restritivas do governo. Isso poderia explicar em parte a violência desencadeada pelas últimas repressões policiais, mas parecia que, no final, o que estava em jogo não era a garantia do trânsito, mas sim a questão simbólica da autoridade da ministra, um traço típico da funcionários públicos com conotações autoritárias”.

A partir de 31 de janeiro, houve um salto na violência estatal, que teve seu auge de crueldade na noite de 2 de fevereiro. Enquanto o Congresso discutia a Lei Ônibus, a decisão do governo foi evitar protestos fora da sede do Poder Legislativo. Outra vez, houve uma grande operação, que inaugurou o uso de um novo spray de pimenta particularmente forte, que deixa queimaduras na pele. Também foi detectado um agente da Polícia Federal usando distintivo de um movimento libertário normalmente associado a Milei. Houve pancadas, gás, balas de borracha e quatro mulheres foram presas por ousarem sair da calçada e ir para a rua. Entre os cem feridos, cerca de 30 eram trabalhadores da imprensa. A polícia disparou contra os manifestantes na cara e um advogado de direitos humanos, Matías Aufieri, foi atingido no olho por um projétil policial. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos expressou a sua preocupação e exigiu ao governo “respeitar o direito à liberdade de expressão, de reunião pacífica e de trabalho jornalístico”.

Perguntamos à deputada nacional Myriam Bregman, ex-candidata à presidência pela Frente de Esquerda, o que fazer diante de tal escalada de violência. “É inexplicável que nenhum juiz ou promotor, daqueles que às vezes parecem tão corajosos contra as pessoas comuns, se sintam incentivados a agir contra esse funcionário que estão cometendo todos os tipos de violações. Acredito que a melhor forma de enfrentar a violência estatal é a massividade. Quando saímos em mobilizações muito grandes, não há como a Patrícia Bullrich agir. Nosso povo tem um grande espírito de luta e temos que colocar toda essa experiência, esse conhecimento, em prol da organização que nos permitirá não sermos derrotados. Se a Patricia Bullrich conseguir instalar o medo, o plano de Milei terá sucesso. Então, não estamos falando de um aspecto secundário”.

Numa rápida contagem dos setores que estão participando dos protestos, poderíamos citar: 1) a militância de esquerda, que iniciou o ciclo de manifestações e está presente em todas elas, e entre as quais se impõe um critério de tolerância zero por parte das forças de segurança; 2) o movimento operário, organizado em diferentes centrais sindicais, cujas manifestações foram as mais massivas, fazendo com que o governo ceda a um acordo sobre o uso da rua no caso de haver certas diretrizes e a mobilização consiga reunir muitas pessoas, mas sempre rodeado de enormes destacamentos policiais com a intenção de intimidar; 3) trabalhadores da economia popular, organizações territoriais e cozinhas populares, cuja situação se deteriora rapidamente, já que são alvo de estigmatização e ataques – a ministra do Capital Humano, Sandra Petovello, se recusa a recebê-los, sendo que em uma das tentativas, chegou a tratá-los com evidente crueldade, que incluiu repressão com uso de gás; 4) a “gente solta”, que se mobiliza espontaneamente e teve sua maior expressão no panelaço do dia 20 de dezembro à noite, embora também tenham participado da marcha convocada pela CGT e nas demais mobilizações convocadas pela esquerda, mas sempre sem muita violência policial contra seus integrantes.

Com o fracasso da Lei Ônibus na Câmara dos Deputados, chegou ao fim a primeira etapa do governo de extrema-direita. Javier Milei não conseguiu construir uma coligação ampla que apoiasse o seu ambicioso programa de reformas e, pelo contrário, radicalizou o seu confronto com grande parte do sistema político, o que introduziu uma tensão institucional no país. Por um lado, todos os analistas preveem que, a nível econômico, os próximos meses serão de recessão e de inflação muito elevada, o que provocará um declínio violento no padrão de vida das maiorias populares e da classe média. No entanto, boa parte da base social que levou o libertário à presidência continua acreditando em seu discurso. Os representantes do poder econômico, assim como o governo dos Estados Unidos, apostam na normalização de um projeto que, se conseguir se estabilizar, pode ameaçar seriamente o consenso democrático básico. O desfecho desta disputa histórica, na qual o povo argentino arrisca o seu destino, dependerá da eficácia que a mobilização social conseguirá alcançar nas próximas semanas. Ou seja, na capacidade da multidão de evitar o medo que as esferas estatais procuram impor. E não é apenas o povo argentino que está à mercê desse resultado.

noticia por : UOL

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