A cidade de São Paulo não está habituada à marca de 76 km/h – nas vias da capital paulista, essa velocidade renderia uma multa de trânsito em qualquer lugar que não fossem as rodovias, as pistas expressas das marginais ou as provas de automobilismo. Quando as rajadas de vento seguidas de chuva se espalharam a essa grandeza a partir das 15 horas da segunda-feira, dia 8, a calamidade foi geral: o Aeroporto de Congonhas interrompeu pousos e decolagens; quatro trabalhadores que atuam no restauro de uma marquise do Parque do Ibirapuera sofreram quedas, tiveram ossos fraturados e foram levados a um hospital; há cenas de um beliche de alagamento, com pontos intransitáveis abaixo e acima do Elevado Presidente João Goulart (conhecido como Minhocão); o Corpo de Bombeiros registrou duzentos chamados devido a quedas de árvores nas primeiras três horas de chuva; restaurantes célebres como o Arábia e o Rodeio fecharam as portas porque não havia luz para receber seus clientes nem manter a mercadoria em câmaras.
Na terça, uma nova chuva forte caiu em São Paulo, quando a Defesa Civil realizou um total de vinte atendimentos. Alguns edifícios, lojas e restaurantes contrataram geradores para poderem ter alguma funcionalidade. Um homem de 62 anos morreu ao levar choque de um cabo energizado, solto pela queda de uma árvore. A Secretaria Municipal de Segurança Urbana informou ontem que havia 2871 árvores à espera de desligamento da rede elétrica para que pudessem ser removidas ou podadas.
Ao longo do ano faz frio, faz calor, chove – mas nesses tempos da “ebulição climática”, os extremos têm se tornado mais agudos e frequentes, agravando os efeitos do El Niño, fenômeno climático natural sobre o aquecimento das águas do Oceano Pacífico na sua porção equatorial.
A crise do clima é sentida de forma diferente em cada canto. No início desta semana, ela bateu à porta de Ricardo Salles (PL), o ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro. Parte da Rua Honduras, no Jardim América, um dos CEPs mais valorizados da capital, ficou no breu. Às 23h30 de segunda-feira, sua casa de dois andares, densamente arborizada, era só escuridão – assim como todo o quarteirão. Nos arredores, nenhum semáforo estava funcionando. Em um raio de 150 metros, muitas árvores caíram, como nas ruas Veneza, Madre Teodora, Conselheiro Zacarias, José Clemente e Maestro Dias Lobo.
Na capital paulista, que muitos detratores já chamaram de cidade cinza, Ricardo Salles vive cercado da relva. O Parque Ibirapuera está bem perto. A rua tem agradáveis corredores verdes, com numerosos ipês, jerivás e tipuanas. Ele comprou a casa em janeiro de 2020. Pagou 3,1 milhões de reais pelo imóvel, dos quais financiou 800 mil em 361 parcelas em uma agência do Banco do Brasil da Avenida Faria Lima, segundo consta na matrícula nº 9.071 do 4º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo. A aquisição passou por uma grande reforma, e foi o próprio Salles que frequentou “garden centers” para cuidar do paisagismo do jardim. A casa foi construída em 1957 pelo arquiteto modernista João Kon, que residiu ali com sua família. A fachada principal tem um painel feito por Alfredo Volpi e no fundo da residência havia dois desenhos do artista plástico Waldemar Cordeiro, mas um deles foi destruído por um morador que resolveu erguer uma edícula. Procurado, Salles não respondeu ao contato da reportagem.
Morador desse pedaço densamente arborizado, Salles também parece adotar uma alimentação natural – é consumidor de alimentos orgânicos, como mostrou um vídeo no qual aparece, de bermuda verde e camiseta de algodão, deixando um mercado de produtos livres de defensivos carregando uma caixa de compras. A cena foi captada por um outro cliente, que achou um disparate encontrar ali o ministro que liderou a aprovação de 2.182 agrotóxicos e defendeu em um reunião ministerial do governo Bolsonaro em 2020 (documentada em um vídeo que acabou vazado) aproveitar o “momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa”, que estava focada na pandemia da Covid, para “ir passando a boiada o mudando o regramento (…) de Iphan, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente”.
Salles, que foi secretário estadual do Meio Ambiente no governo de Geraldo Alckmin, tem sido apontado há tempos como pré-candidato à Prefeitura de São Paulo favorito de Jair Bolsonaro, que anda se aproximando de Ricardo Nunes, apoiado por Valdemar da Costa Neto (PL), ainda sem grande veemência. Bolsonaro não se esqueceu do fato de Nunes ter oscilado seu apoio ao presidente durante as eleições de 2022. Tem mais. Vendo Salles como um adversário, Nunes entrou em atrito com um nome ligado a ele, o então secretário-executivo de Mudanças Climáticas da cidade de São Paulo, Antonio Fernando Pinheiro Pedro, que pediu demissão do cargo em julho de 2022, pressionado por acusações de ser um negacionista.
“Eu disse que o planeta ‘se salva sozinho’, ninguém salva o planeta Terra. Aliás, geologicamente é o que sempre aconteceu. Por conta dessa frase, caiu o mundo sobre mim de maneira muito idiota”, diz Antonio Pedro à piauí, em conversa por telefone. Amigo de Salles, Antonio Pedro ajudou a elaborar as políticas adotadas pelo ex-ministro à frente do Ministério do Meio Ambiente na gestão de Bolsonaro, e responsabiliza Ricardo Nunes pelas crises causadas pelas chuvas. “Desde que saí, a subprefeitura está às moscas. Não há prevenção. Esse problema não é da Enel, a responsabilidade é da prefeitura de fazer a manutenção das árvores. O prefeito está perdido, parece uma biruta de aeroporto.” Antonio Pedro é contra a “militância climática” que pede ações rigorosas dos governos para a mitigação dos efeitos da crise. “A mitigação está sobretaxando os combustíveis da Alemanha, o que vai prejudicar o agricultor local.”
De acordo com o físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), time internacional de cientistas reunido pela Organização das Nações Unidas para investigar o tema, as tempestades mais fortes serão cada vez mais frequentes no mundo todo. “É evidente que o Brasil e as cidades vão ter que se adaptar ao novo clima. Isso quer dizer um monte de coisa, inclusive que temos de preparar a rede elétrica para o aumento de tempestades que estão ocorrendo nos últimos dias em São Paulo. Precisamos de governantes que se preocupem com a questão desses eventos extremos”, diz Artaxo.
Na tempestade do início de novembro de 2023, quando 2,1 milhões de paulistanos foram afetados, Artaxo ficou quatro dias sem energia elétrica em sua casa. “Você conta nos dedos os números de ruas da cidade mais rica da nona economia do mundo que tem proteção contra árvores caindo.” Para Patrícia Pinho, diretora-adjunta e autora líder do IPCC, as chuvas mais frequentes e intensas de São Paulo são resultado da crise climática. “No caso dessa cidade, não há escoamento adequado”, diz. São Paulo vive um paradoxo. As regiões mais ricas são aquelas onde há maior concentração de árvores e parques – e, portanto, menos vulneráveis a problemas como aridez e baixo escoamento. Devido à falta de manutenção das árvores, porém, essas árvores acabam sendo muito afetadas com as tempestades. “As cidades estão entrando em grau de vulnerabilidade sem precedentes.”
Secretário de Governo de Ricardo Nunes, Edson Aparecido responsabiliza a Enel por todo o caos. “A Enel é um verdadeiro desastre, não vamos sossegar enquanto não tirar essa empresa de São Paulo”, diz o secretário. Embora seja uma concessão federal, Aparecido diz haver brecha legal. “Em novembro, quando parte da população ficou quatro dias sem luz, eles falaram que iriam se preparar para novos episódios. Agora, vemos na prática que seguem não fazendo nada.” A Enel comprou por 5,5 bilhões de reais o equivalente a 73% da Eletropaulo em 2018, quando passou a ser responsável pela distribuição de energia da capital e outras 23 cidades da região metropolitana de São Paulo.
Fernando de Sampaio Barros, presidente da AME Jardins, associação de representantes de interesses do Jardim América, Europa, Paulista e Paulistano que atua em questões de segurança, uso e ocupação de solo e zeladoria urbana, reforma uma outra questão. “Sim, o trabalho da Enel piora a cada dia, mas o problema vai além”, diz ele, apontando o dedo para o mercado imobiliário e aos próprios moradores como um todo. “Com garagens e concretagem do chão, o lençol freático fica detonado e a árvore morre.”
Barros reforça que, com as quedas recentes de árvores, não existe nenhum programa para que sejam plantadas árvores grandes e frondosas como as que estão caindo, sobretudo da espécie tipuana. “Daí colocam um bambu no lugar e a cidade fica cada vez mais quente.”
O prefeito Ricardo Nunes (MDB), ciente de que sua popularidade acaba sendo ainda mais abalada com a queda de energia, está possesso com a Enel. Procurada pela piauí, a Enel não informou qual é a parcela da população no breu nem quais são as ruas sem iluminação. Em comunicado, diz: “A empresa restabeleceu o serviço para mais de 60% dos clientes afetados pelas novas chuvas de terça que impactam, hoje, cerca de 0,6% dos clientes da distribuidora.”
noticia por : UOL