Da Redação – Valdeci do Carmo
Porventura não convinha que o Cristo padecesse estas coisas e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras. (Lc 24:26,27)
INTRODUÇÃO
Estudar sobre a Hermenêutica bíblica não é uma tarefa fácil, porém, de grande alegria. Aos que se aventuram nessa tão sublime empreitada, está destinado o gozo de poder descobrir as Verdades eternas contidas na Palavra de Deus.
A Bíblia é repleta de figuras de linguagem, compreendê-las – é nosso dever enquanto ministros do Senhor.
Neste suscinto material, teremos a oportunidade de estudar um dos métodos de ensino mais utilizado por Jesus: As parábolas. Para isso, necessitamos compreender os princípios norteadores da interpretação bíblica.
Faz-se necessário observar que, a interpretação dispensada às parábolas, está no âmbito da chamada hermenêutica especial, iremos juntos ver alguns princípios de interpretação e como utilizá-los para a devida compreensão das parábolas da Bíblia.
Não obstante o conhecimento das regras, é necessário que o intérprete bíblico seja desprovido de vaidade pessoal e que se dedique à oração e constante busca da orientação e iluminação do divino Espírito Santo.
DEFINIÇÃO E PROPÓSITO
A palavra hermenêutica é proveniente grego cujo significado é: arte de interpretar textos. É usada na interpretação de textos e símbolos de diversas culturas e pode se extensionar à interpretação de leis.
Esta palavra, deve sua origem ao nome do deus grego, Hermes, que era – segundo a mitologia grega – o mensageiro dos deuses; ele tinha como função, entregar e interpretar a mensagem divina dada aos mortais. Embora não haja consenso entre os estudiosos, quanto a relação da palavra Hermenêutica com o deus Hermes, uma coisa é fato, ela é de suma importância para a real compreensão da Palavra de Deus; e é justamente por isso, que gastaremos mais algumas linhas com ela.
A Hermenêutica possui uma amplitude que abrange os fatos da História, da profecia e das leis. O que é proposto aqui, é o estudo da Hermenêutica Bíblica ou Teológica, cuja finalidade essencial está relacionada aos métodos a serem utilizados para a plena compreensão da Palavra de Deus.
Sendo a Bíblia Sagrada – legado de Deus para a humanidade – o livro mais circulado e mais lido no mundo, a sua mensagem, entretanto, é constantemente distorcida, negligenciada e até mesmo; desprezada por seus leitores. Muitos são os pregadores que preocupados apenas com o emocional das massas, deixam de lado os princípios que regem a correta interpretação bíblica.
Por ser um livro divino, alguns concluem que a Bíblia deve ser interpretada segundo a necessidade e entendimento individual, baseando-se apenas na “revelação divina” advinda da oração. Tais pessoas, não veem a necessidade de se interpretar o texto seguindo as diretrizes e princípios que regem a comunicação escrita.
Se tal prática se torna verdade para todos, então, teríamos milhares de interpretações, pois cada um teria “revelações diferenciadas”. Devemos entender que a Santa Palavra foi-nos comunicada em uma linguagem humana, portanto, faz-se necessário, mesmo que de forma mínima, o prévio conhecimento dessa linguagem para que o texto fique devidamente esclarecido para nós.
Dentro do contexto cristão, existem muitos ensinamentos distorcidos pelo fato de não haver o prévio conhecimento das figuras de linguagens existentes na Bíblia. Tais linguagens, se encontram por todo o texto bíblico e, ignorá-las, é o mesmo que obstruir a verdadeira interpretação.
Regras de Hermenêutica
Existem regras que delineiam a forma de interpretar qualquer tipo de texto; a comunicação, que é o objetivo de todo texto ou sustentação oral, só pode acontecer, quando se tem uma compreensão correta do que o texto ou o emissário está transmitindo, mas, para que isso aconteça, precisamos seguir certas regras interpretativas. E o mais importante, para que a comunicação se efetive de fato, essas regras delineadoras, não podem ser mudadas de pessoa para pessoa. São regras únicas e universais, que tanto servem para interpretação dos escritos na área secular quanto na área bíblica.
Não estamos dizendo que deverá haver um manual de regras para poder conhecer a Escritura, pois desta forma a Bíblia perderia a sua sobrenaturalidade. Objetivamos mostrar, no entanto, que à medida que a comunicação se encontra afastada de suas origens, torna-se necessário o emprego de certas regras que são específicas para compreensão da mensagem pretendida originalmente, isso é o que denominamos de hermenêutica bíblica. De forma direta ou indireta, esta palavra está associada a várias passagens do NT. É o caso de Jesus no caminho de Emaús (Lc 24.27), de Felipe na evangelização do eunuco (At 8.26-40).
Conforme diz Gibbs:
Se tivéssemos consciência dos efeitos devastadores da interpretação bíblica incorreta, e pudéssemos apreciar o privilégio de compreender corretamente a revelação de Deus, ficaríamos rapidamente convictos de que o estudo sistemático das regras da interpretação não somente é necessário e vantajoso, como também útil.[1]
É possível sim aplicarmos leis universais que servem para guiar a nossa correta interpretação do texto bíblico.
Deus comunicou a Sua vontade aos homens através da Bíblia, em linguagem humana – como já vimos acima, e não na língua dos anjos. Se assim o fosse, os anjos é que teriam que anunciar a palavra de Deus para nós, pois só eles a compreenderiam. Desta forma, entendemos que a Bíblia foi escrita em linguagem humana – não por mera casualidade –, mas para que possamos compreender a sua mensagem e assim, compartilhá-la com os nossos semelhantes.
Hermenêutica, Exegese e Eisege
A hermenêutica faz parte da Teologia exegética. Ao afirmarmos que a hermenêutica se encontra dentro da teologia exegética estamos dizendo que é função da exegese bíblica o exercício da interpretação do texto sagrado, buscando extrair o real significado pretendido pelo autor.
Podemos dizer, que a exegese é o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura, para descobrir o significado original que foi pretendido. É a tentativa de escutar a Palavra conforme os destinatários originais devem tê-la ouvido; descobrir qual era a intenção original das palavras da Bíblia.
Não confundir a Hermenêutica com a Exegese. A Hermenêutica traz as normas da interpretação de um texto. A Exegese está mais relacionada a prática, ou seja, a interpretação do texto aplicando as normas e os princípios fornecidos pela Hermenêutica.
Existe entendimento em que hermenêutica e exegese são a mesma coisa, já alguns preferem dizer que hermenêutica refere-se a história da interpretação, enquanto outros dizem que hermenêutica envolve os princípios, as regras, normas para se interpretar um texto, e a exegese seria o exercício de pôr em práticas estas regras hermenêuticas.
No labor hermenêutico, devemos levar em consideração que não é somente o texto que é analisado, mas também o contexto, tornando-se imprescindíveis elementos como fator histórico, momento político em que o texto ou livro fora escrito, fator social, cultural, econômico, religioso. Nesse árduo processo de interpretação, busca-se uma reconstituição de todos os elementos socioculturais a fim de prover um maior entendimento da mensagem intencionada pelo autor. Agindo assim torna-se possível compreender as palavras dentro de seus respectivos contextos.
Diretamente associados à hermenêutica são a exegese e eisegese. A exegese extrai o significado do texto. Ambas as palavras possuem suas derivações do grego que significam: “conduzir ou extrair para fora,” (exegese) e “conduzir para dentro” (eisegese).
Desta forma, a exegese é o processo de extrair a informação que está contida no texto. O foco é extrair tudo o que puder da perícope escolhida para estudo. A exegese possui a finalidade de clarificar o texto, dando-lhe total esclarecimento, analisando o seu significado de forma objetiva e profunda. Essa forma especial de extração se aplica tanto a um texto quanto a uma frase ou até mesmo a uma palavra. É a extração do significado literal
Na eisegese acontece o contrário, e o texto serve apenas de pretexto para se colocar ideias dentro dele. A eisegese coloca a ideia do intérprete dentro do texto, a interpretação é feita a partir da imaginação do leitor e não do texto, ou seja, a interpretação é de fora para dentro. Nesse processo injeta-se uma ideia que não está no texto, um verdadeiro torcer das Escrituras.
É muito comum o uso da eisegese por pregadores que não querem considerar as regras de interpretação e, em alguns casos, pelo fato de o verdadeiro significado estar em conflito direto com o que o pregador pensa e com o que ele quer que o texto signifique.
Eis alguns exemplos e eisegese
Mt. 4.5 -6; Satanás citou o Salmo 91.11 fora do contexto.
5. “Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo,”
6. “E disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces em alguma pedra.”
Sl 91.11. “Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.”
Outro exemplo clássico usado é “a letra mata”, seja para justificar a própria ausência do estudo e a proibição do mesmo em alguns recantos evangélicos, ou simplesmente por não ter a devida compreensão do texto, por isso 2 Co 3.6 tem sofrido nas mãos de alguns “eisegetas”.
Se olharmos os versículos anteriores e posteriores poderemos ver claramente que Paulo está falando da Lei. Ela sim mata, pois não tem poder para salvar e confiar nela para a salvação, seria caminhar para a morte. Mas o ministério Espírito é vida. Basta ler os versículos anteriores e os posteriores para compreendermos claramente que Paulo está mostrando que mesmo para a morte a Lei foi dada em glória, portanto, muito mais glória seria o ministério do Espírito que é para a vida, da qual fomos feitos ministros. Usar esse versículo para dizer que estudar traz morte é forçosamente uma interpretação que mutila o texto bíblico.
E é por Cristo que temos tal confiança em Deus; não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual nos fez também capazes de ser ministros dum Novo Testamento, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, e o Espírito vivifica. E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória, como não será de maior glória o ministério do Espírito? Porque, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o ministério da justiça. 2 Co 3:4-9.
Qualquer um que ler os versículos acima, deixando-os falarem por si próprios, perceberá com plena exatidão o que Paulo está dizendo. Uma consequência negativa resultante da divisão da Bíblia em capítulos e versículos, sem, contudo, observar os parágrafos contidos nos textos, é justamente a falha compreensão de que cada versículo possui um significado isolado.
Objetivos Gerais da Hermenêutica Bíblica
1. Traduzir o texto original tornando-o conhecido em língua vernácula
Nos países de fala portuguesa, assim como o Brasil – por exemplo – é de fundamental importância que o texto seja conhecido na língua vernácula. Para isso, o intérprete da Bíblia necessita conhecer o processo de tradução, seja por equivalência dinâmica ou formal. Jamais seremos bons intérpretes se não atentarmos para esses princípios.
Contexto literário: As palavras somente fazem sentido dentro das frases, e estas em relação às frases anteriores e posteriores. Devemos procurar descobrir a linha de pensamento do autor. O que o autor está dizendo e por que o diz exatamente.
2. Compreensão do texto dentro do seu ambiente histórico-cultural
Conhecer o ambiente envolve o conhecimento dos significados linguísticos da época. Precisamos nos basear no princípio de que a cultura e os costumes dos povos bíblicos são totalmente diferentes dos nossos. A cultura bíblica está separada de nós por mais de 5.000 anos.
Contexto histórico-cultural: O contexto histórico-cultural engloba a época e a cultura do autor e dos seus leitores, assim também como os fatores geográficos, topográficos, políticos e a ocasião da produção do livro. A questão mais importante do contexto histórico tem a ver com a ocasião e o propósito de cada livro, ou seja, o Sitz im Leben, a situação vital, o fator determinante que levou tal livro a ser produzido. Entender a ocasião de produção dos textos é de extrema importância para a compreensão de sua mensagem.
3. Tornar a mensagem das escrituras inteligíveis a todos os povos
O propósito principal é transformar as escrituras em mensagens inteligíveis para que o plano da salvação seja devidamente compreendido. Para que através desse conhecimento o ser humano viva de modo a agradar a Deus. A Palavra divina torna-se inteligível ao homem moderno de forma que seja conduzido a Cristo.
Muitos erros e heresias surgem por uma leitura errônea da Bíblia. Temos ao longo da história e em nossos dias interpretações errôneas do texto bíblico. Toda leitura deve-nos levar ao ato de compreender e de entender o que lemos. O ato de compreender difere do ato de ler. São coisas interligadas, mas nem sempre existe a devida compreensão daquilo que se lê, lembre-se da pergunta de Filipe ao Eunuco: “Entendes o que lês?” (At 8.30). Podemos dizer que a compreensão vai para além da simples leitura, pois ela está no âmbito da decodificação, do “deciframento” da mensagem, ou seja, ela está interligada ao processo de inteligibilidade do texto.
Lacunas entre nós e o texto bíblico
Devido ao distanciamento entre nós e o texto bíblico, os desafios para uma interpretação adequada torna-se maior. O nosso conhecimento está separado das intenções originais do autor por milhares de anos e por diferenças de cultura, idioma e situações históricas. Essas lacunas tornam o processo de interpretação um pouco mais difícil, por isso necessitamos de livros que tratem da temática, buscando nos mostrar como viviam os povos nos tempos do desenvolvimento da narrativa bíblica.
Distanciamento temporal
Devemos ter sempre e mente que a Bíblia, está a séculos de distância de nós no que diz respeito à sua composição. São anos de distanciamento e com isso não temos o devido conhecimento daquele tempo. “Isto significa que a nossa interpretação tem de levar em conta tanto a situação na época em que Amós ou Jesus falaram originalmente quanto as circunstâncias com as quais posteriormente as pessoas preservaram, compilaram e finalmente escreveram as suas palavras”.[2]
Distanciamento contextual
Os livros da Bíblia foram escritos em várias situações diferentes com o intento de atender determinadas situações, das quais, muitas delas nem sequer sabemos de fato o que ocorreu. Textos como a proibição de Paulo às mulheres de falarem na igreja, o uso do véu, entre outros mais, lançam um desafio ao leitor moderno.
É bom salientar que esse distanciamento, não nos impede de ter uma clara compreensão das Escrituras, mas traz-nos algumas dificuldades.
Distanciamento cultural
O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. As características desse período ficaram em um passado remoto juntamente com os seus costumes, crenças e as tradições e valores existentes na época. Vivemos em um país ocidental totalmente influenciado por outras culturas diferentes do mundo em que viveram os povos registrados na narrativa bíblica.
Distanciamento linguístico
As línguas originais em que a Bíblia foi redigida se encontram distanciadas de nós. Poucos são os que aprendem essas línguas. Esta “lacuna linguística entre o mundo bíblico e o nosso impõe um desafio ainda maior à tarefa da interpretação bíblica.”[3]
Obviamente que o aramaico, hebraico e grego koinê não fazem parte de nosso cotidiano. Não aprendemos esses idiomas nos currículos regulares de nossa educação. Desta forma, “dependemos de especialistas bíblicos treinados para traduzir os idiomas originais das Escrituras e as suas figuras de linguagem para nossos idiomas nativos.”[4]
Distanciamento autoral
Os autores já estão mortos.[5] Nós não temos mais os escritores humanos em nosso meio, para que possamos indagá-los sobre alguma informação que porventura não obtemos clareza ao ler seus escritos.
Por exemplo, o que de fato Pedro quis dizer acerca de Jesus ter pregado aos espíritos em prisão, o que Paulo disse sobre o espinho em sua carne. São algumas das questões das quais não teremos respostas, pois não podemos consultar o autor humano.
Além dessas lacunas que nos separam do texto bíblico, o próprio Pedro admitiu que há textos difíceis de entender: “os quais os indoutos e inconstantes torcem para sua própria perdição” (2 Pedro 3:15 e 16).
As variadas circunstâncias que concorreram na produção do maravilhoso livro exigem do intérprete que o seu estudo seja meticuloso, cuidadoso e sempre em conformidade com os princípios hermenêuticos.
Autoridade Interpretativa
Não há infalibilidade na interpretação oficial de uma determinada passagem das Escrituras por parte da instituição religiosa que a interpreta.
Berkhof diz que os Reformadores em “oposição à infalibilidade da igreja, colocaram a infalibilidade da Palavra.”[6] Em ouras palavras, a Igreja possui autoridade divina no tocante a interpretação somente enquanto estiver em harmonia com os ensinos das Escrituras.
A Igreja, enquanto instituição que abriga o organismo eclesial não pode ter predominância no que tange à interpretação bíblica, pois ela não é a guardiã dos oráculos divinos.
Na atual dispensação e, graças ao impulsionamento da Reforma Protestante, cada Cristão possui a liberdade de exercitar a interpretação da Bíblia, porém, não se deve desconsiderar o laborioso trabalho exegético que se encontra em nossos Credos que foram arduamente estruturados no decurso dos séculos.
A Busca do Sentido Pretendido Originalmente
Para interpretar o texto corretamente é necessário que se consiga entender o propósito intencional dos autores bíblicos. Para isso são utilizados métodos de interpretação, opto pelo método histórico-gramatical, pois intenciona a interpretação a partir de seu contexto primário, extraindo desta forma o significado intencionado pelo autor e as respectivas implicações para o homem moderno.
Quando o leitor deseja conhecer o texto bíblico em seu sentido primário, fica mais claro descobrir as intenções do autor e com isso aplicar para nossos dias. Lembremos que liberdade para pensar e interpretar não se reflete em dar significados que não foram pretendidos pelos autores sacros, mas sim buscar a plena compreensão das pretensões autorais ao escreverem o texto bíblico.
Não são apenas os teólogos liberais que torcem as Escrituras a fim de fazê-la concordar com sua racionalidade. Dentro de nosso contexto cristão evangélico, é grande a falta de compreensão e devido à ausência de entendimento das doutrinas bíblicas, alguns acabam acreditando em distorções teológicas tais como a infalibilidade papal ou ministerial, que ao tomarem a Ceia de fato estão bebendo e comendo o corpo de Cristo.[7]
Qual a necessidade de se estudar a hermenêutica bíblica? Muitos perguntam sobre a finalidade da hermenêutica. Devemos ter em mente que Deus se comunicou com a humanidade através da linguagem humana e essa linguagem necessita ser compreendida para se entender a mensagem contida nela. O próprio Jesus sempre procurou interpretar o texto bíblico de forma correta enfatizando o que fora pretendido no ato da escrita, fazendo as suas devidas aplicações para a época em que viveu.
Ao comentar sobre a importância da interpretação, Roy Zuck salienta que:
Precisamos conhecer o significado da Bíblia a fim de podermos descobrir sua mensagem para nossos dias. Devemos compreender seu sentido para a época antes de percebermos seu significado para hoje. Se descartarmos a hermenêutica (ciência e arte de interpretar a Bíblia), estaremos passando por cima de uma etapa indispensável do estudo bíblico e deixando de nos beneficiar dela. A primeira etapa, que é a observação, consiste na pergunta: “Que diz o texto?”. A segunda etapa, a interpretação indaga: “Que quer dizer?”. A terceira, a aplicação, questiona: “Como se aplica a mim?”[8]
Como Zuck observou, a hermenêutica visa estabelecer a verdadeira compreensão do texto dentro de seu contexto, de maneira que a intenção autoral seja preservada, e somente depois, fazer a aplicação desse texto para a realidade do leitor
O LABOR DO INTÉRPRETE BÍBLICO
Paulo disse em 1 Co 2.14 “Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.”
O descrente pode até conhecer questões linguísticas da Bíblia, história, geografia, e memorizá-la de forma técnica. Porém ele jamais conseguirá discernir aquilo que é espiritual, porque para tal é necessário ser nascido de novo. É imprescindível que tenha o Espírito Santo.
O significado pretendido por Paulo aqui é aceitar de bom grado as coisas do Espírito. Acolher com boas-vindas.
Submissão ao Espírito Santo
Como vimos acima, para que possamos compreender verdadeiramente a mensagem das Escrituras, é de suma importância que nos submetamos à plena vontade do Espírito Santo. Somente ele pode iluminar a nossa mente e trazer luz ao nosso entendimento. Para isso, é necessário que busquemos constantemente a sua presença e tenhamos um viver pautado pelos princípios bíblicos sem nos tornarmos legalistas ou presunçosos.
Na igreja de Corinto, devido ao modo de vida que levavam, muitos foram considerados pelo apóstolo Paulo, como sendo carnais, embora houvesse em abundância o exercício da glossolalia e outras manifestações sobrenaturais nos cultos, tais manifestações, entretanto, não configuram – segundo a perspectiva paulina – como uma verdadeira espiritualidade.
Devemos entender que, apenas e tão somente, sendo templo do Espírito Santo, é que poderemos nos apropriar dos ensinos contidos nas Escrituras. A iluminação do Espírito Santo durante o estudo da Bíblia somente é possível se mantivermos comunhão com Ele. O modo de vida carnal ofusca o esclarecimento que o Espírito nos proporciona. Precisamos viver em obediência para que se cumpra em nós Ef 1.17-18.
É no coração que o Espírito Santo inicia a obra no intérprete, fazendo um preparo para acolher a verdade. “A obra de iluminação do coração é primariamente de recepção mais do que percepção.”[9] Para que compreendamos melhor a Bíblia precisamos nos deixar ser conduzidos pelo Espírito. Sem Ele, não poderemos desfrutar de maneira mais profunda desse manancial de águas vivas.
Iluminação x Nova Revelação
Um dos maiores perigos do intérprete bíblico é justamente o uso dos seus “sentimentos” e “suas experiências” como teste da verdade em detrimento da própria Bíblia. A Bíblia e unicamente ela é a infalível palavra de Deus. Sentimentos e experiências são falíveis, pois estão relacionadas à natureza do ser humano que mesmo regenerado pelo Espírito ainda continua sendo falho. Usar outro critério para ensinar, que não seja a sólida palavra de Deus, subverterá todos os propósitos pelas quais a Bíblia foi escrita. Um desses propósitos é transmitir a igreja princípios sólidos que muitas vezes tendem a destoar da sabedoria humana (1 Co 2.12-13).
Precisamos entender a necessidade de sermos “bereanos” no sentido de confrontarmos quaisquer ensinos com o texto bíblico (At 17.11).
Qualquer experiência pessoal, mesmo que oriunda do Espírito Santo estará sujeita a forçar o entendimento partindo dos conceitos já existentes na cosmovisão pessoal. Daí a necessidade de tais experiências serem submetidas ao crivo da Palavra.
Devemos ter em mente que, O Espírito Santo jamais trará “novas revelações” ou transmitirá “novas verdades” cujos alicerces não se encontrem na Bíblia. Não é intenção do Espírito Santo, revelar novos segredos a “alguns privilegiados”, mas remover impedimentos existentes no coração, de forma que a interpretação correta seja viabilizada.
É muito comum o intérprete bíblico estudar o texto com a lente denominacional em que faz parte ou até mesmo uma lente pessoal.[10] Tal abordagem, tende a diminuir a real mensagem do texto e impor a ele as preferências do leitor ou da comunidade na qual ele está inserido. Agindo assim, o leitor não estará somente enxergando no texto o que ele próprio projetou, como também, fazendo violência a intencionalidade do autor.
Devemos fazer distinção entre revelação bíblica que é o resultado da inspiração divina, e iluminação pessoal que é o entendimento da revelação bíblica.
A revelação bíblica é infalível e inerrante. Foi concebida pelo Espírito Santo. A iluminação, no entanto, está condicionada aos erros do falho coração humano, portanto, não podendo ser considerada infalível, necessitando sempre de ser comparada com a Bíblia Sagrada. Na iluminação teremos a necessária e devida compreensão do texto bíblico e como aplicá-lo em nosso viver, o que sempre irá nos guiar na compreensão da verdade já existente no texto, mas nunca trará alguma verdade nova. Precisamos estar cientes de que “O Espírito Santo nunca revelará ao intérprete uma nova doutrina que Deus já não tenha revelado nas Escrituras.”[11]
Os dons espirituais concedidos a igreja jamais terão o intuito de revelar novas doutrinas e nem tampouco dirigir a vida dos fiéis, para isso temos a preciosa Palavra de Deus. Mesmo com o advento do mundo pluralista e relativista, nós encontramos na Bíblia os princípios necessários para orientar o nosso viver de forma sóbria e reta diante de Deus.
O papel do Espírito Santo não é meramente determinar o que o texto significa, mas em convencer e persuadir o indivíduo de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Leia Ef 1.17-18 e veja que o desejo de Paulo é que os Efésios conheçam cada vez mais a Deus e obtenham maior convicção da vocação celestial.
É comum vermos muitos pregadores que para justificarem a sua falta de estudo da Bíblia usam desculpas do tipo: “gasto a maior parte do tempo em oração”, “não preciso estudar”, “O Espírito me revela tudo”, “O meu negócio é “joelhologia”. A oração é fundamental importância para a vida cristã, assim como para aquele que exerce o ministério da palavra, mas a ausência do estudo diligente das Escrituras, resulta em uma pregação repleta de superficialidade o que jamais poderia ser atribuída ao Espírito Santo.[12] Alguns, para apoiar a sua falta de estudo e de profundidade nas Escrituras, chegam a usar uma fala de Paulo fora de seu contexto dizendo que a palavra de Deus é simples, de fato, o evangelho é simples, mão não é superficial. Alguns reformadores tendiam a dizer que as escrituras são tão claras que até mesmo uma criança podia entendê-la – no que diz respeito à salvação – mas ela é tão profunda que nem mesmo o maior de todos os sábios poderia esgotá-la.
Respondam para vocês mesmos, se a Bíblia não fosse para ser lida, estuda e obedecida, por qual motivo Deus a teria dado para nós? Será que ela foi dada para ser usada somente como recurso decorativo? Ou para estar aberta no Salmo 23, 91 etc., na sala de estar? Com certeza não.
Reconheço a nobreza e a eficácia da oração, pois a própria Bíblia me revela isso, no entanto, a falta do estudo sistemático das Escrituras produz uma pregação demasiadamente superficial para ser atribuída ao Espírito Santo.
O Estudo Pessoal e A Iluminação Divina
O estudo da Palavra e a dependência do Espírito Santo não se separam. A diligência aos estudos é regada pela Iluminação do Espírito, sem essa iluminação a pregação resultaria em simples erudição formalista.
“A iluminação que Deus dá para a compreensão das Escrituras não isenta o intérprete da labuta do estudo.”[13]
O fato de o crente receber a iluminação divina não significa isentar-se da árdua disciplina de estudar. “Embora a iluminação seja dom da parte do Espírito, o dom vem enquanto o intérprete se dedica à sua tarefa”.[14]
A iluminação pode vir após um período de estudo, ou até mesmo antes do estudo. No entanto, isso não significa que a pessoa não deva estudar ou que a necessidade do estudo fica cancelada.
Por intermédio da oração e estudo da Bíblia, Deus derrama a sua graça sobre o crente. O estudo da Bíblia não deve ser visto como algo irrelevante e enfadonho, mas como algo necessário para o crescimento espiritual. Ao estudar não devemos meramente buscar encontrar um sermão, ou uma doutrina pra ser aplicada à igreja, devemos ter em mente o encontro com Deus, com sua vontade.
Paulo encarcerado solicitou que lhe levassem os pergaminhos (II Tm 4.6,7, 13). Com certeza não era para preparar um sermão, mas para se aprazer com a leitura em comunhão com o Seu Salvador.
Não pense que ao dedicar-se ao estudo, todos os momentos serão de regozijo, ou de experiência emocional. Muitas das grandiosas verdades exigirão um empreendimento demasiadamente grande de tempo, meditação e minuciosos trabalhos para sejam entendidas. Contudo, não desanime, pois o resultado sobre a sua vida e a de outras pessoas será muito grande.
O Estudo Pessoal e Os Recursos Humanos
O dom do ensino traz uma tremenda responsabilidade, (I Co 12.28; Ef 4.11). Paulo advertiu a Timóteo: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade.”
A expressão “procura apresentar-se” tem em mente o entendimento de “aplicação”, “diligência”, enquanto o termo expressado “que maneja bem” significa de forma literal “cortar reto”. É o caminhar em linha reta cuidando de manter o caminho da Palavra impresso na forma de viver para que os que dependem das instruções as recebem de forma correta.
A mais pura verdade é que uma igreja para ser edificada fortemente necessita receber ensinamentos corretos. Isso somente poderá ocorrer se houver uma perfeita interpretação do texto bíblico.
O zelo pelo estudo pessoal não deve ser confundido com arrogância, de forma que isso venha nos impedir de aprendermos uns com os outros, o que é, de fato, uma normativa bíblica.
Observe a vida de Apolo, por exemplo, ele era um profundo conhecedor das Escrituras e pregador eloquente, no entanto, não se sentiu ofendido quando recebeu ensinamento de dois humildes artesãos. O resultado foi maravilhoso para a vida pessoal dele e para a igreja em geral (At 18 24-26).
Espiritualidade não é ostentação de orgulho e ignorância, por isso:
Quando um homem se jacta de não ter lido nenhum outro livro senão a Bíblia, creio que está escondendo arrogância extrema debaixo da capa da super-espiritualidade. Nenhum crente está tão perfeitamente equilibrado na sua personalidade, tão devoto na sua hora devocional e tão diligente nos seus estudos da Bíblia, que não possa tirar proveito da sabedoria de outros crentes, compilada no decurso dos séculos.[15]
Obviamente que todo estudioso possuidor do Espírito de Cristo, sabe que comentários e livros de estudos bíblicos jamais substituirão o estudo pessoal da palavra, mas servem para ampliação dos horizontes a fim de trazer explicações em diversas áreas e ajuda na verificação de nossa própria interpretação além de ajuda técnica quando necessário.
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ZUCK, Roy B. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da bíblia. Tradutor César de F. A. Bueno Vieira. – São Paulo: Vida Nova. 1994.
[1] GIBBS, Carl. Princípios de Interpretação Bíblica. Campinas, SP: FAETAD, 2006. p. 35.
[2] KLEIN, Willian W. HUBBARD, Robert L. JR. BLOMBERG, Craig L. Introdução à Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson, 2017. p. 65.
[3] KLEIN, Willian W. HUBBARD, Robert L. JR. BLOMBERG, Craig L. Introdução à Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson, 2017. p. 76.
[4] KLEIN, Willian W. HUBBARD, Robert L.JR. BLOMBERG, Craig L. Introdução à Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson, 2017. p. 70.
[5] A morte do autor aqui, nada tem a ver com o movimento encabeçado por Roland Barthes e Foucault defendendo que o autor está morto, ou seja, se tornou insignificante para o processo de interpretação do texto.
[6] BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação Bíblica. 3.ed. rev. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2008. p. 24.
[7] GIBBS, Carl. Princípios de Interpretação Bíblica. Campinas, SP: FAETAD, 2006. p.16.
[8] ZUCK, Roy B. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da bíblia. Tradutor César de F. A. Bueno Vieira. – São Paulo: Vida Nova. 1994. p. 13.
[9] GIBBS, Carl. Princípios de Interpretação Bíblica. Campinas, SP: FAETAD, 2006. p. 36.
[10] Um dos que defende tal tipo de abordagem é o professor de literatura Stanley Fish, ele afirma que toda leitura só faz sentido dentro de uma “comunidade interpretativa”, o grande problema com a teoria desenvolvida por Fish é que ela acaba promovendo o relativismo comunitário. Se a leitura e consequentemente o sentido de um texto é o resultado da comunidade na qual estamos inseridos, então não temos nenhuma autoridade para desafiar as leituras feitas por outras comunidades, devemos aceitar as leituras feitas pelas feministas, socialistas, LGBTS etc.
[11] GIBBS, Carl. Princípios de Interpretação Bíblica. Campinas, SP: FAETAD, 2006. p.37.
[12] GIBBS, 2006, p.38.
[13] GIBBS, 2006, p.38.
[14] GIBBS, 2006, p.38, apud Klooster 1984, p. 451.
[15] GIBBS, 2006, p.40.