BRASIL

‘Coragem para falar’: leia relatos de sobreviventes a tentativas de feminicídio


O Distrito Federal já ultrapassou em 2023 o total de casos de feminicídio registrados em todo o ano passado. Até setembro, 26 mulheres foram vítimas deste tipo de crime na capital federal. Dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que, desde 2015, a capital federal registrou 175 mortes por feminicídio. O R7 conversou com mulheres do DF que sobreviveram a tentativas desse crime e com a família de Izabel Guimarães de Sousa, morta pelo ex-marido com um tiro, para falar sobre a vida após os episódios.


“É preciso coragem para falar”, disseram à reportagem.







Violência psicológica e física até o coma






“Ele fazia uns nós na toalha molhada, me empurrava no sofá e me espancava na cabeça e nas pernas, onde ficava menos marcado.”


Falar sobre a violência é dar um passo rumo à quebra desse ciclo. Dayana Kelly Dias de Freitas, de 42 anos, é uma das mulheres que conseguiu se salvar. Foi somente depois de conseguir contar sobre a violência sofrida por 14 anos ao lado do ex-marido que ela disse ter “revivido”.


A mulher afirma se lembrar “como se fosse hoje” o primeiro episódio de violência física. Em casa, na sala de estar. “Ele batia, batia, batia, e ainda me dizia que era de um jeito que não ficariam marcas. Era em cima do sofá, que era verde. Por muito tempo, eu não conseguia ver essa cor. Hoje, aqui, no meio desse tanto de verde, vejo que consegui superar”, afirma Dayana durante entrevista feita no Parque da Cidade, em Brasília.


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Assim como outras meninas, Dayana sonhava com um “príncipe no cavalo branco”, que a amaria para sempre. Um homem zeloso, cuidadoso. “Eu o conheci na igreja. Foi meu primeiro namorado. Estava sonhando, até porque tinha 14 anos. Com 19, engravidei. Começou com reclamação da minha roupa, das minhas amizades, com ofensas, até chegar nos empurrões, espancamentos e tudo com muita violência psicológica. Ele dizia que eu não era nada, não seria ninguém, que eu era o problema do mundo, da vida dele, que se eu morresse tudo se resolveria”, relembra.


Em um desses episódios de violência psicológica, abatida por uma crise de depressão, Dayana foi pressionada pelo ex-marido a tomar vários remédios controlados em altas doses, atitude que a levou a um coma.



Foi preciso se encher de coragem e esquecer os julgamentos para contar aos pais sobre a situação. Se despir do medo na frente dos dois filhos do casal. “Contei tudo, o denunciei, ele foi preso e hoje eu estou viva. Se não tivesse feito isso, não estaria aqui para contar essa história”, afirma.


Dayana não ressignificou apenas a cor verde do sofá em que era espancada. A dor virou força para ajudar outras mulheres e o medo se tornou dedicação, a ponto de passar em um concurso público, e a vergonha virou autoestima. Dayana ganhou um concurso de miss em Brasília e passou a organizar um concurso do qual só participam mulheres vítimas de violência doméstica.






Perseguição, dependência e fogo






“Ele ateou fogo no carro que estava na garagem comigo e nossos filhos dentro de casa. Nesse dia, eu achei que era o fim.”


Uma das barreiras que separam a mulher da vida livre de violência é a dependência econômica. Não ter uma renda capaz de garantir o sustento próprio e muitas vezes dos filhos do casal é uma corda que não deixa a vítima ir muito longe.


“Apanhar ou passar fome?” Essa pergunta soou internamente para Rosa Melo, 44 anos, durante 18 anos, tempo em que esteve com o ex-marido. “Quando eu saí, com meus três filhos, não trabalhava, não tinha renda, mas pensei que era minha vida ou minha vida. Não tinha mais escolha. Com ajuda, fui me sobressaindo, mas foi muito difícil”, conta Rosa.


Ela diz que sempre foi uma união com traços de agressividade. Da violência psicológica até a tentativa de feminicídio. Rosa estava em casa com os filhos quando percebeu a fumaça. O ex-marido tinha ateado fogo em um carro que estava na garagem de casa. Logo, o fogo se alastrou, tomou o telhado e outro veículo. “Era muita fumaça. Tudo pegou fogo e ficamos presos dentro de casa sem conseguir sair até que os bombeiros chegaram e nos resgataram”, relembra.


O que levou a mulher e os filhos para longe do ciclo de violência foi a conquista da independência financeira. No começo, vendia suspiros recheados pelas ruas, na porta de empresas e delegacias. “Fui conseguindo manter meus filhos, pagar aluguel. Meu sonho era ser segurança, mas o meu ex dizia que isso não era profissão de mulher. Ao sair dessa relação, estudei, me preparei e hoje trabalho na área”, afirma Rosa.


Apesar do medo que ainda sente, já que o ex-marido não está preso, Rosa faz disso a força para continuar. “Tenho uma vida feliz, apesar de não ser 100% em paz. Hoje, ainda faço acompanhamento com psicóloga, mas minha maior felicidade é que consegui sair. Ao mesmo tempo que vêm a dor e o sofrimento, vem a gratidão porque estou viva. Eu consegui, é uma vitória. Olho para mim e penso: ‘Meu Deus, fui eu mesma que passei por tudo isso?’ A dor se transformou em bênção. Quando jogo isso para minha vida fico mais aliviada”, afirma.


Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF, a vítima mais nova desse tipo de crime tinha 2 anos, e a mais velha, 69 anos. Além disso, 137 mulheres eram mães, e os crimes deixaram 334 órfãos desde a criação da lei — 63% deles eram menores de idade na época do crime.





Retratos do feminicídio






“Ver a Bel no chão, com um tiro na cabeça, cheia de sangue, é uma cena que nunca vou esquecer”.


A reportagem também conversou com a família de Izabel Guimarães de Sousa, morta com um tiro pelo ex-marido, com quem viveu por 14 anos e teve uma filha. 


A irmã de Izabel, Olívia Guimarães de Souza, de 49 anos, chegou na cena do crime a tempo de vê-la respirando. Minutos antes, a vítima tinha recebido em casa o ex-marido, que queria conversar sobre o bloqueio de uma conta bancária.


Izabel o deixou entrar, pegou a filha, na época com 10 anos, e os três entraram no quarto. Em seguida, o homem atirou. Um único tiro, na cabeça de Izabel. O crime foi em fevereiro deste ano.


A filha ficou em cima do corpo da mãe como quem esperasse acordar de um pesadelo. “Minha sobrinha conta que ele já tinha batido nela, dado um tapa, ou seja, ela presenciou outras coisas anteriores. Ela está com problema de aprendizagem, frequentando psicólogo, estamos todos destruídos. Minha mãe, uma senhora de 70 anos, que tinha a filha caçula como companheira, viu a filha com um tiro na cabeça. É uma dor que nem sei como dizer”, lamenta Olívia.


Izabel morreu cerca de um mês depois de completar 37 anos. Muito ligada à família, Izabel preferiu poupar os familiares do que vinha sofrendo, sozinha, em casa.


“Ela era sorridente, carinhosa, começou a trabalhar aos 14 anos, sempre foi independente, não dependia de ninguém para nada, e acho que ela teve receio de falar qualquer coisa. Mas eu sempre disse que esse homem não era para ela”, conta a irmã.


Canais de denúncia


• Disque Denúncia: 197 ou (61) 98626-1197 (WhatsApp)


• Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher: (61) 3207-6172/3207-6195 (funcionam 24 horas)


• PMDF: 190


• Núcleo de Gênero do MPDFT: (61) 3343-6086 e (61) 3343-9625


• Núcleo de Assistência Jurídica de Defesa da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública: WhatsApp (61) 999359-0032


Lei do feminicídio


Em vigor desde 2015, a Lei do Feminicídio tipifica esse crime quando o assassinato de mulheres ocorre pela condição de gênero. A legislação considera feminicídio quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.


A nova legislação alterou o Código Penal e estabeleceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Também modificou a Lei de Crimes Hediondos, para incluir o feminicídio na lista.


Campanha “Feminicídio. Para toda vida, respeito!”


A Record TV Brasília lançou, no dia 14, a campanha “Feminicídio. Para toda vida, respeito!”, contra a violência doméstica. A campanha mostra a realidade de mulheres vítimas e de famílias destruídas pelo feminicídio.



A campanha vem sendo veiculada na programação da TV, de rádios, jornais impressos, portais, redes sociais e mídias do exterior desde o dia 14 até 30 de setembro. Além disso, o jornalismo da Record TV Brasília e do R7 fez uma série de reportagens sobre o tema.

noticia por : R7.com

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