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O Rico e Lázaro e a Lógica da Inversão – Pr. Jonas Mendes

Em Lucas 16.19-31, Jesus conta uma parábola conhecida como “O rico e Lázaro”. Klyne Snodgrass observa que esta parábola tem um caráter único e notório. “Somente nela as personagens ganham nomes e somente dela uma parábola de Jesus transcende a realidade quotidiana e se concentra na vida por vir” (Compreendendo todas as parábolas de Jesus. 2014, p. 589). Alguns se questionam se a história é de fato uma parábola ou não. Snodgrass, entretanto, afirma que “Lucas, seguramente, via esta história como uma parábola. Ela aparece em meio a uma coleção de parábolas, possivelmente numa posição de quiasmo, formando um paralelo com a parábola do Rico Insensato, e utiliza exatamente as mesmas palavras introdutórias. Isso leva a crer que ela seja, sem sombra de dúvida, uma parábola” (2014, p. 598). Stanley M. Horton salienta que por ser uma parábola, não podemos concluir que o relato é menos importante, pois “mesmo em suas parábolas Jesus nunca disse qualquer coisa enganosa ou que fosse contrária à verdade” (O Ensino Bíblico das Últimas Coisas, 2013, p. 49).

A história que Jesus conta a respeito de Lázaro e do rico exemplifica a situação social de Israel no primeiro século; pois, enquanto alguns desfrutavam de todo conforto, outros sofriam terríveis privações. No relato inicial há uma informação importante sobre o rico: “Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente” (vs. 19). Os detalhes saltam aos olhos na descrição de Jesus sobre o rico. Usando “um manto de cor púrpura” (cor da realeza) e roupas de “linho fino” (tecido disponível apenas a pessoas abastadas da época) fica claro que sua condição social era bastante privilegiada. Jesus destaca que “Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro, que jazia cheio de chagas à porta daquele. E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas” (vs. 20-21). Enquanto o rico desfrutava de tudo aquilo que o dinheiro podia lhe oferecer, o mendigo Lázaro, sofria com as chagas e privações básicas. Klyne Snodgrass comenta que “a comida que caía da mesa do homem rico não se tratava de migalhas acidentais, mas pedaços de pão utilizados para a limpeza das mãos que eram atirados embaixo da mesa” (2014, p. 597).

Muitos judeus considerariam que o rico era abençoado por Deus e o pobre era amaldiçoado. Nos tempos de Jesus, riqueza era sinônimo de benção de Deus, e pobreza, de maldição. Mas, diz Jesus, “aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico e foi sepultado. E, no Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão e Lázaro, no seu seio” (vs. 22-23). Ambos morreram, mas só há menção do sepultamento do rico. Snodgrass destaca que “o sepultamento era extremamente importante no Mundo Antigo, e um cadáver que ficasse exposto ao ar livre era sinal da maldição divina” (p. 597). Embora não haja menção do sepultamento de Lázaro, a “sua recepção no seio de Abraão subverte qualquer ideia de que ele tenha sido amaldiçoado. (…) O seio de Abraão, claramente, representa uma imagem da honra e também pode apontar para intimidade (…)” (p. 597). Segundo Fritz Rienecker e Cleon Roger, a palavra grega κόλπον (seio), “indica lugar de honra num banquete” (Chave linguística do Novo Testamento Grego, 1995, p. 141). O rico, por outro lado, estava no hades (ᾅδῃ), em tormento, ou tortura (βασάνοις). O termo “hades” refere-se ao domínio dos mortos, mas “a descrição dos tormentos deixa claro que o homem rico está no inferno” (KEENER, Craig. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia, 2017, p. 264). Do hades o rico podia ver Abraão e Lázaro, de maneira que ele levantou a cabeça “E, clamando, disse: Abraão, meu pai, tem misericórdia de mim e manda a Lázaro que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, somente males; e, agora, este é consolado, e tu, atormentado. E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá, passar para cá” (vs. 24-26). Segundo Craig Keener, “a literatura judaica retratava o inferno como um lugar em que as pessoas eram queimadas. O homem que foi rico e agora sofre no inferno espera receber misericórdia por ser descendência de Abraão, mas o juízo, aqui, fundamenta-se em uma inversão futura de status” (2017, p. 264).

Duas importantes observações são necessárias. Em primeiro lugar, o castigo e o sofrimento do rico não podem ser revertidos, nem mesmo atenuados. Stanley M. Horton salienta que, “tanto o destino dos ímpios quanto o dos salvos não pode ser mudado depois da morte” (2013, p. 49). Em segundo lugar, apesar do silêncio quanto à fé do mendigo, não devemos acreditar que sua salvação decorre de sua pobreza, ou que a condenação do rico de sua riqueza. Segundo Craig L. Blomberg, o nome Lázaro “é o equivalente grego do nome hebraico Eliézer – que significa – Deus ajuda. Além disso, o Eliézer mais conhecido do período do Antigo Testamento foi o servo fiel de Abraão. E não é interessante que, em vez de Deus falar aqui (ou, como acontece o tempo todo nas parábolas de Jesus, um senhor ou rei ou pai ou pastor, que funcionam como personagem em lugar de Deus), é Abraão quem tem a função de porta-voz de Deus? Ouvintes judeus profundamente conhecedores de suas Escrituras – nosso Antigo Testamento – com praticamente toda certeza teriam feito a associação entre Abraão e Lázaro e teriam pressuposto que Jesus estava dando a entender a piedade do pobre” (Pregando as parábolas, 2019, p. 61).

Enquanto podemos inferir que Lázaro era fiel, o oposto pode ser dito do rico. Pela fala de Jesus, depreende-se que o rico sabia o que era certo, mas não praticava. Ele tinha consciência de que bem perto dele havia alguém que experimentava profundo sofrimento físico. Ele estava em condições de oferecer grande ajuda ao pobre mendigo, mas não o fez. É evidente que ele tinha conhecimento de “Moisés e os profetas”, ou seja, como um bom judeu, estava familiarizado com os trechos legais e proféticos das Escrituras. Em seu diálogo com Abraão, “o rico implora por uma revelação especial a seus irmãos, que estão vivos na terra, para que assim ainda tenham a chance de ‘se arrepender’ (vs. 30). Isso sugere que ele compreende que seu problema também é nunca ter se arrependido – ele nunca teve de fato um relacionamento com Deus durante a vida” (2019, p. 60).

Assim como Lázaro desejava comer as migalhas que caíam da mesa do rico; agora, no hades, o rico desejava apenas um pouco de água. Um homem que não havia aprendido a dar, agora pedia. Leon L. Morris destaca que provavelmente Lázaro estava à mesa com Abraão, denotando uma certa antítese com a “mesa” do Rico, no começo da história. “A grande felicidade do salvo é retratada como uma grande festa em que o favorecido reclina sua cabeça no seio do grande patriarca (como no caso de Jo 13:23; cf. Mt 8:11). Não há nenhuma felicidade semelhante para o rico depois da sua morte” (Comentário de Lucas, 2011, p. 238). No mundo terreno o homem rico fazia banquetes todos os dias; depois da morte, Lázaro, ao que se presume, participa do banquete escatológico. A miséria de Lázaro é equiparada à miséria do homem rico no pós-morte, depois da “inversão” (2014, p. 595). A inversão se dá até mesmo na menção do nome. Segundo Craig S. Keener, as parábolas judaicas, incluindo as histórias rabínicas, davam nome a um ou vários personagens. Nas histórias normais seria de se esperar a menção ao nome do rico, não do pobre (2017, p. 263), mas Jesus inverte a situação, citando o nome do pobre e deixando no anonimato o rico.

Esse recurso retórico da “inversão” é bem comum na narrativa de Lucas. O que tinha em abundância agora passava por privações, e o que antes nada tinha, agora desfrutava do consolo. Antes Lázaro queria algo que o Rico tinha, o alimento, agora, o Rico queria algo que Lázaro tinha, a água. Esse recurso da “inversão” é frequente na narrativa lucana. Os valores do Reino apresentados por Jesus são diametralmente opostos aos valores do mundo. Donald B. Kraybill chama isso de “O Reino de Ponta Cabeça”. Ele destaca que “as coisas nos Evangelhos geralmente estão de ponta-cabeça. Os bonzinhos acabam sendo vilões. Aqueles que esperamos que sejam recompensados são corrigidos. Aqueles que pensam que estão a caminho do céu acabam no inferno. As coisas estão invertidas. Paradoxo, ironia e surpresas permeiam os ensinamentos de Jesus. Eles invertem nossas expectativas e as deixam de ponta cabeça. Os menores são os maiores. Os imorais recebem perdão e bênção. Adultos se tornam crianças. Os religiosos perdem o banquete celestial” (2017, p. 23). E o que não tinha nada (Lázaro), agora tem tudo, e o que tinha (O Rico), agora não tem nada além de privações e tormentos (prefigurada na sede e no fogo). Podemos destacar ainda que a única vez que o Rico se importou com Lázaro, foi quando precisou dele (Manda Lázaro mergulhar o dedo na água e vir aqui refrescar minha língua. Estou em agonia neste fogo!). Leon Morris observa que há uma “nota de arrogância” e “superioridade” na atitude do Rico para com Lázaro (2011, p. 238).

Klyne Snodgrass destaca que “as imagens de dois homens e seus destinos são cuidadosamente comparadas”. Havia uma porta que separava Lázaro do rico (Um mendigo chamado Lázaro, cheio de feridas, costumava ficar à porta da sua mansão). “O homem rico vivia de forma opulenta e com honra em um lado da porta, e Lázaro de forma miserável do outro, uma porta que poderia ter servido como uma abertura para o auxílio de Lázaro e que representa o abismo que existirá entre os homens depois da morte” (2014, p. 595). Com a inversão, diz Klyne Snodgrass, o rico passa a ser o miserável de um lado do abismo e Lázaro passa a ocupar um lugar de conforto e honra, mas o abismo, dessa vez, não pode mais ser atravessado (p. 595). Ambos desejavam, em vão, qualquer “sobra” que servisse para aliviar a sua dor, e ambos experimentaram o sofrimento e o tormento (2014, p. 595). A ironia está no fato de que aquele que era costumado a mandar, agora estava pedindo. Mas os pedidos do rico, assim como os de Lázaro em vida, não foram atendidos. O rico descobriu que era tarde demais para fazer pedidos ou dar ordens.

 

“Mas o rico suplicou: ‘Permita-me, então, fazer um pedido. Envia Lázaro à casa do meu pai e de meus cinco irmãos, para adverti-los. Não quero que eles venham parar neste lugar de tormento’.

 

Pela primeira vez na história, diz Morris (2011, p. 239), o rico demonstra algum interesse noutras pessoas (mas não pensa nos pobres; fica só no assunto dos seus). Enquanto o rico faz alguns pedidos, Lázaro, que sempre foi acostumado a pedir, permanece em silêncio, pois não precisa mais pedir nada. No contexto em que Jesus fala sobre as riquezas, esta parábola traz alguns detalhes que devem ser destacados. Primeiro, não adianta nada ser rico para com os homens e pobre para com Deus (Lc. 12.21); segundo, é uma lástima desfrutar de tudo aquilo que o dinheiro pode comprar aqui na terra, mas não poder desfrutar daquilo que Deus tem preparado para nós na eternidade; terceiro, o dinheiro não é em si mesmo um mal, mas o amor ao dinheiro sim; quarto, somos apenas mordomos do Senhor, nada é nosso, tudo é de Deus, exatamente por isso, devemos saber lidar com aquilo que o Senhor tem colocado em nossas mãos; quinto, devemos usar as riquezas a favor do Reino de Deus. Usá-las com prudência e astúcia, de maneira que elas não sejam um empecilho, mas sirvam aos propósitos do Reino.

Ao contar essa parábola, onde o rico pede um pouco de para “refrescar a sua língua”, Jesus não quer dizer que no inferno a alma vai ter sede, ou algo do tipo, mas mostrar que aqueles que não foram fiéis a Deus aqui nesta terra, ao morrer, já estão em um tipo de tormento. William MacDonald diz: “Há, de fato, uma dúvida se uma alma desincorpada pode sentir sede e angústia de uma chama” (Comentário Bíblico Popular. 2011, p. 209). Que tipo de fogo é esse que pode queimar a alma? MacDonald conclui que a linguagem usada “é figurativa, mas isso não quer dizer que o sofrimento não era real” (2011, p. 209). No caso do rico, o sofrimento estava simbolizado no fogo que o atormentava de tal maneira, que ele desejava apenas um pouco de água para refrescar a língua. Ele sofria com a privação de algo tão básico, algo que talvez ele não tivesse dado tanto valor em vida, um pouco de água. O rico poderia ter socorrido Lázaro, poderia ter usado a sua riqueza para aliviar um pouco do sofrimento do moribundo mendigo, mas não o fez. Depois da morte, quem clamava por alívio era o rico avarento, que havia vivido a vida como se Deus não existisse. Um homem que havia confiado em suas riquezas, e não em Deus. Não podemos concluir que a alma do rico estava sentindo literalmente sede, mas sim, que ela se encontrava em tormento pelo fogo do hades. David W. Pao e Eckhard J. Schnabel afirmam que “diversas passagens do AT se referem à sede como uma figura do juízo divino” (BEALE, G. K.; CARSON, D. A. Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. 2014, p. 431).

Jesus usa de elementos na parábola que não devem ser interpretados de forma pormenorizada. A intenção da narrativa não é defender que há sede no inferno, ou algo do tipo, mas mostrar que lá é um lugar de sofrimento, privações e angústia. Quando o rico diz: “Pai Abraão, misericórdia! Manda Lázaro mergulhar o dedo na água e vir aqui refrescar minha língua”, não devemos concluir que a alma tem língua; a alma é imaterial. De fato, não podemos definir com precisão o tipo de sofrimento que os ímpios já estão enfrentando no hades, mas uma coisa é certa na parábola de Jesus, ele é real.

 

 

Jonas J. Mendes

Ministro do Evangelho, Bacharel em Teologia; Pedagogo e Licenciado em Filosofia, pós-graduado em Teologia do Novo Testamento e Mestre em Filosofia pela UFMT. Professor de Filosofia e Sociologia na Faculdade Fasipe-CPA e de Teologia na Feics. Membro do Conselho de Educação e Cultura das Assembleias de Deus de Cuiabá e região, e autor do livro “Hermenêutica: uma introdução à interpretação bíblica”.

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