MUNDO

Idosos encaram futuro pós-enchentes no RS com resiliência e solidão

Nove meses depois da água do rio Caí cobrir o forro de sua casa, a aposentada Enedier Fuhr, 82, ainda se acostuma com o imóvel esvaziado. Não há móveis, porta-retratos na parede, nem resquício das decorações que ali estiveram por mais de 60 anos. Tudo foi perdido quando a enchente histórica do rio devastou a comunidade de Morro Peixoto, em Harmonia (RS).

O vazio não parece incomodar Enedier, que brinca com situação. “Agora a sala é muito grande, e eu queria começar a dar uns bailes para dar um pouco de dinheiro”, diz.

O humor é a saída que ela encontrou para lidar com o sofrimento de perder tudo pela segunda vez em seis meses. Em novembro de 2023, a enchente chegou a 1,8 metro dentro de casa na maior cheia do rio Caí em mais de cem anos. O recorde foi superado em maio de 2024, quando a água passou acima do forro, e Enedier perdeu o pouco que recomprou ou salvou da primeira vez. “Não vou comprar mais nada. Agora, a casa vai ficar vazia”, diz.

“Quando entrei em casa, em novembro, eu gritei de desespero. Mas na última enchente maior, não chorei uma vez. Botei na cabeça que não ia adiantar. Não quero chorar e ficar doente ainda.”

Enedier passa o tempo fazendo crochê, cuidando dos cachorros e acompanhando o crescimento dos gerânios no pátio. Contudo, a rotina está mais solitária: em uma quadra de nove casas, Enedier tem como vizinhos apenas a filha e o genro, recém-aposentados. “Eu disse para eles: no dia que eu morrer, que vendam tudo e vão embora. Não tem mais ninguém aqui.”

Desde maio, quase toda a vizinhança deixou suas casas por causa dos danos estruturais causados pela enxurrada. A falta mais sentida é a da comadre, companhia diária de chimarrão há quase 60 anos, que morava no mesmo terreno. “Nossas filhas nasceram juntas, a gente sempre foi próxima uma com a outra, mas agora ela me disse que não pode voltar”, lamenta.

Elas ainda se visitam e mantêm contato por telefone. Foi pensando na amizade de décadas que Enedier optou por não gastar mais em mobília. “Esse dinheiro eu quero para viajar para águas termais com ela”, conta.

“Às vezes me lembro de umas coisas, mas não quero lembrar, porque elas não vêm mais. Fotos dos nossos acampamentos, com todo mundo junto… Mas essas fotos eu não vou levar para o túmulo.”

“A idade traz experiência, calma e resiliência para lidar com situações muito difíceis”, diz Gabriel Behr, psiquiatra geriátrico do Hospital São Lucas da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Entretanto, ele alerta que familiares devem estar atentos para identificar se idosos não estão sofrendo em silêncio.

“Quando uma pessoa que vive há mais de 50 anos na sua casa perde tudo de uma forma abrupta, ela fica sem chão”, diz Behr. “Ela perde um pouco daquilo que a conecta com o seu passado, suas histórias e lembranças de pessoas que são importantes, como os filhos crescendo.”

Behr observa que, quase oito meses depois da tragédia, ainda são comuns os relatos de ansiedade, depressão e outros transtornos de saúde mental em idosos. Esses problemas afetam um grupo social que ainda se recupera do trauma da pandemia de Covid.

“Foi um período muito longo e, poucos anos depois, veio outro evento traumático coletivo. Quem tem uma doença que não estava tratando ou que não era perceptível pela família pode ter uma piora a partir desses eventos”, diz Behr.

Prima de Enedier, a professora aposentada Anna Fuhr sofreu na pele os efeitos físicos do estresse.

Morando em Porto Alegre há 50 anos, ela planejava voltar ao Morro Peixoto para viver a aposentadoria na casa onde nasceu. Em maio, o rio Caí invadiu a casa pela primeira vez desde sua construção na década de 1910. “Era meu porto seguro. Agora não é mais”, diz.

Isolada na capital por um mês e sem conseguir dormir uma noite completa de sono, Anna postergou várias vezes o retorno ao interior por medo de encarar o estrago.

A tensão acumulada veio à tona em julho, quando notou uma dificuldade para mastigar em um lado da boca. Levada ao hospital com suspeita de AVC, foi diagnosticada com paralisia de Bell, doença viral que pode ser desencadeada pelo estresse emocional. “Foi a consequência da não-aceitação. Até hoje não consigo aceitar que a água tenha chegado lá”, diz Anna.

A recuperação exigiu semanas de fisioterapia. “Tinha que fazer muitos exercícios, e aí botei tudo para fora. Chorei muito e me aliviei, disse tudo o que estava sentindo.”

Anna diz que o plano de se mudar em definitivo para o Morro Peixoto segue de pé, mas a decisão final vai depender de como o cenário climático vai se comportar nos próximos anos. “Até hoje, tem dias que, quando estou lá, quero voltar atrás no tempo para salvar algumas coisas. Eu fico remoendo isso”, conta.

Em Porto Alegre, Anna encontra paz como voluntária no centro espírita que frequenta. “Se não tivesse isso, ficaria muito deprimida”, diz.

“É fundamental que as pessoas façam trabalho voluntário depois de se aposentarem, que façam algo de bom para o semelhante. Isso que nos preenche, que dá vontade de continuar vivendo. Aliás, é por isso que a gente está aqui.”

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.

noticia por : UOL

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