VARIEDADES

Por que as câmeras corporais não funcionam e o que está por trás dessa agenda

No último dia 9 de dezembro, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, determinou o uso obrigatório de câmeras corporais em operações da Polícia Militar de São Paulo. A decisão atendeu a um pedido da Defensoria Pública do estado, em meio a um esforço concertado da imprensa, do Governo Federal, de partidos de esquerda e de setores da sociedade civil organizada contra a política de segurança do governo Tarcísio de Freitas (Rep-SP).

Na sua decisão, Barroso ressaltou o compromisso previamente assumido pelo governo paulista de implementar as câmeras e destacou o aumento da letalidade policial em 2024. A decisão também inclui exigências como a gravação ininterrupta das operações, a entrega de informações sobre processos disciplinares e a apresentação mensal de relatórios do governo estadual.

A decisão veio coroar uma série de humilhações sofridas pelos paulistas nas últimas semanas. Poucos dias antes, Tarcísio havia cedido à pressão política e assumido que algo não estava “funcionando” na política de segurança do estado. Ao mesmo tempo, declarou ter mudado de opinião sobre o uso das câmeras por policiais, projeto que até então negava de maneira intransigente, em respaldo às ações de enfrentamento direto ao crime lideradas pelo seu secretário de segurança pública, Guilherme Derrite.

A disputa política em torno do equipamento deve permanecer pelos próximos meses, mas a decisão de Barroso já demonstra a disposição ativista das Cortes em interferir em mais esse tema.

Defensores do uso do instrumento invocam princípios de transparência e responsabilização. Para eles, as câmeras permitiriam maior controle das atividades policiais, inibiriam casos de abuso de autoridade e ainda protegeriam bons policiais contra falsas acusações, fornecendo provas que podem ser usadas em investigações internas e processos judiciais.

Na contramão desses argumentos, os críticos alegam que as câmeras podem inibir a ação dos policiais, servindo facilmente de instrumento persecutório nas mãos de promotores e outros agentes sem conhecimento técnico da segurança pública. Também ressaltam os riscos para a privacidade e integridade dos policiais, visto que gravações podem vazar ou mesmo serem utilizadas por superiores para perseguições políticas.

De onde vem essa moda?

A primeira corporação a adotar oficialmente o uso de câmeras corporais (bodycams) foi a Polícia de Devon e Cornwall, no Reino Unido, em 2006. Esse projeto inicial visava principalmente registrar evidências em casos de violência doméstica e outros incidentes criminais para melhorar a qualidade das investigações e das ações judiciais.

O uso de bodycams pelas forças policiais no Reino Unido rapidamente chamou a atenção de outros países, como os Estados Unidos. A primeira implementação documentada em larga escala em território norte-americano se deu em Rialto, Califórnia, em 2012. Um estudo sobre o caso publicado em 2014 mostrou resultados promissores, incluindo uma redução de quase 60% no uso de força pelos policiais e uma queda de cerca de 88% nas reclamações contra os oficiais. Esse experimento tornou-se um caso de referência, destacando os potenciais benefícios das bodycams.

Progressivamente, a adoção pelos departamentos de polícia se tornou uma resposta padrão para as reivindicações de movimentos sociais como o Black Lives Matter. A principal alegação para a implementação das bodycams foi a busca por maior transparência e responsabilização. A ideia era que as câmeras corporais fornecessem registros visuais e objetivos das interações entre policiais e cidadãos, reduzindo os casos de uso excessivo de força e auxiliando na investigação de incidentes. Além disso, elas visavam aumentar a confiança pública nas forças policiais, fornecendo evidências concretas em situações controversas.

O governo de Barack Obama apoiou fortemente a iniciativa, alocando cerca de US$ 75 milhões para ajudar as forças policiais norte-americanas a adquirir e implementar essas câmeras. A expectativa era que a tecnologia servisse como uma ferramenta de fiscalização tanto para os policiais quanto para os cidadãos, promovendo interações mais respeitosas e responsáveis.

O que a ciência diz

O problema é que os resultados foram decepcionantes. Enquanto alguns estudos experimentais apontavam para redução potencial da violência policial em casos específicos, o conjunto mais amplo de evidências nunca foi animador.

Já em 2016, um estudo publicado no European Journal of Criminology conduziu uma meta-análise de dez testes randomizados controlados em diversos países, abrangendo uma população total de mais de dois milhões de pessoas e 2,2 milhões de horas de serviço policial. Os resultados indicaram que o uso de câmeras corporais não teve efeito significativo na redução do uso da força pelos policiais e, “paradoxalmente”, foi associado a um aumento nas agressões contra oficiais que utilizavam as câmeras.

Em 2019, a até então revisão mais abrangente da literatura sobre o tema foi publicada na revista Criminology & Public Policy, compreendendo a análise de 70 trabalhos publicados sobre o uso das câmeras corporais, abrangendo questões como o impacto das câmeras no comportamento dos policiais, as percepções dos policiais, o comportamento dos cidadãos, as percepções dos cidadãos, as investigações policiais e as organizações policiais.

Os autores chegaram à conclusão que “embora os policiais e os cidadãos, em geral, apoiem o uso de câmeras corporais, elas não apresentaram efeitos estatisticamente significativos ou consistentes na maioria das medidas relacionadas ao comportamento de policiais e cidadãos ou às opiniões dos cidadãos sobre a polícia”.

Considerando os resultados, portanto, “ as expectativas e preocupações em torno das câmeras corporais, tanto por parte dos líderes policiais quanto dos cidadãos, ainda não se concretizaram, em grande parte, nas formas antecipadas por cada grupo”.

Em 2020, uma meta-análise publicada na Criminal and Justice Behavior considerou mais de uma centena de indicadores de efeito em 30 estudos independentes sobre o uso das câmeras corporais, chegando à conclusão de ausência estatística de efeito relevante do equipamento no comportamento de policiais e cidadãos.

Em 2023, num estudo publicado no Justice Quartely, os pesquisadores realizaram uma revisão sistemática e uma meta-análise de 12 estudos experimentais e quase-experimentais que examinaram o impacto das câmeras em resultados relacionados à acusação e ao tribunal. No agregado, não encontraram efeitos significativos do instrumento em nenhuma medida de resultado relatada.

Para o leitor sem formação técnica, é importante ter em mente que esse tipo de publicação (meta-análise) oferece uma visão mais ampla e robusta sobre determinado tema ao combinar e sintetizar os resultados de vários estudos independentes. Em vez de depender de um único estudo, que pode estar sujeito a limitações ou vieses específicos, uma meta-análise reúne dados de múltiplas pesquisas para identificar padrões, tendências e efeitos gerais. Isso aumenta a confiabilidade das conclusões e pode revelar insights que estudos isolados não conseguem.

Estranhamente, os estudos de revisão ou meta-análise que procuram apontar efeitos positivos sobre o uso das câmeras corporais ou não são muito abrangentes, ou ignoram a existência de pesquisas existentes, incluindo as meta-análises.

Esse “efeito de cegueira seletiva” pode ser encontrado tanto na bibliografia internacional sobre o tema, quanto em pesquisadores brasileiros quase sempre comprometidos com visões mais à esquerda sobre segurança pública.

Câmera presa ao ombro do uniforme de dois policiais durante a apresentação do dispositivo em Frankfurt, Alemanha, 27 de maio de 2013. EFE/BORIS ROESSLER (Foto: EPA)

Riscos para os policiais

As evidências apontam que o investimento nas câmeras corporais é, no mínimo, desperdício de dinheiro público. E não pouco. Polícias mais ricas que as nossas, como as de Nova York e Los Angeles, já gastaram mais de US$ 50 milhões em aquisição e armazenagem, para resultados pífios. Em valores atuais, o montante ultrapassa o valor gasto em investimentos em segurança pública em muitos estados da federação. Isso em nome de testar uma “bala de prata” que a ciência já indica que vem com a munição molhada.

Mais ainda, a existência de meta-análise demonstrando crescimento na violência contra os policiais deveria representar um alerta para gestores públicos. O dado não tem nada de “paradoxal”, como alguns pesquisadores tentam fazer parecer. O policial que porta uma câmera corporal tende a se sentir mais vigiado e naturalmente hesita em situações de estresse extremo, que exigem uma rápida resposta. Essa hesitação é a fronteira temporal entre levar um tiro ou voltar para casa com vida. Principalmente porque o outro lado envolvido num conflito percebe isso.

Além desse fator, infratores não raro se comportam de maneira mais provocativa contra policiais portando câmeras corporais, e não hesitam em atacar quando percebem hesitação ou uma brecha na defesa dos agentes, principalmente quando a outra opção é passar um bom tempo atras das grades.

Por exemplo, qual é o tempo que um policial demora para abater um atacante de faca correndo em sua direção? Durante muito tempo, polícias de todo o mundo utilizaram o chamado protocolo de Tueller, desenvolvido em 1983, como referência. Ele estabelece que um agressor armado com faca pode percorrer cerca de 21 pés (6,4 metros) de 1,5 a dois segundos, o mesmo tempo necessário para um policial reagir e disparar. Isso demonstra que a menos dessa distância, o agressor representa uma ameaça imediata. Ou seja, um policial precisaria ter folga de distância de mais de seis metros para tentar convencer um agressor a largar a arma.

Nas últimas décadas, a disseminação de ocorrências de agressão que o protocolo não ajudou a evitar levou a uma revisão da literatura. Pesquisadores do Advanced Law Enforcement Rapid Response Training (ALERRT), da Universidade do Texas, revisaram a metodologia, fizeram novos testes e descobriram que o tempo e a distância estavam errados. A maior parte dos policiais que seguissem o protocolo terminaria esfaqueada.

Na prática, isso significa que policiais que reagiram com uso da força seguindo sua percepção, e não o manual, sobreviveram, para enfrentar um tribunal ou sindicância interna. Enquanto outros, muitas vezes inibidos pelo registro de câmera que poderia ser usado para analisar a exatidão de seu procedimento, não tiveram tanta sorte.

Esse exemplo serve para explicar que o trabalho policial dificilmente será regido por regras matemáticas de precisão absoluta. Na maior parte das vezes, os policiais operam com uma “zona cinzenta” de milhares de decisões em circunstâncias que os protocolos não englobam. Por mais que haja esforço em muitos locais em diminuir ou clarear essa zona cinzenta, com pesquisas, treinamentos e implementação de procedimentos operacionais, a sua existência é própria de situações de risco, nas quais o uso da força pode ser necessário. Agentes da lei precisam lidar com avaliações em situação real sobre a necessidade do uso da força para as quais nem sempre há fundamento científico, muito menos respaldo claro na legislação.

Enquanto instituições sérias de pesquisa procuram lidar com esse tipo de temática investigando questões como essa, a polícia brasileira precisa operar num vácuo informacional que opõe o conhecimento prático de agentes de segurança contra a opinião ideológica de promotores, juízes, jornalistas e intelectuais. Isso não raro em situações de estresse extremo como operações policiais em áreas de favela, com geografia, terreno e exposição desfavoráveis aos agentes, ocupadas por delinquentes portando armamento de guerra e sob o efeito de drogas etc.

Ao mesmo tempo, as Cortes tem se esmerado em pronunciar decisões que impõem limites cada vez mais estreitos para essa atuação, sem quaisquer esforço de entendimento das condições que as regem, impondo ainda mais tensão sobre os agentes da lei.

Em resumo, é gente que nunca trocou tiro na vida, impondo suas ideias fora do lugar na realidade, não raro tentando discutir minúcias como “se o policial x não poderia ter atirado na perna do suspeito armado”.

Com as câmeras corporais, os policiais tendem a lidar com as situações antecipando ainda mais esse tipo de pressão, o que pode levar à hesitação, erro e, no limite, morte dos agentes. A troco de quê?

Mas o assunto nunca é o assunto

Os defensores do uso das câmeras corporais costumam se apresentar como uma casta intelectualmente superior, esgrimando argumentos como a necessidade de políticas públicas baseadas em evidência ou o uso da ciência como parâmetro norteador para intervenções do Estado. Esse tipo de argumento é muito comum nos discursos iluministas do ministro Barroso, ou na boca de intelectuais paulistas que tem se esforçado bastante em defender o lobby das câmeras corporais.

No caso brasileiro, fora a cegueira seletiva para revisão de literatura, costuma-se falar dos resultados de um experimento conduzido durante o governo João Dória, em que policiais de um único batalhão tiveram que trabalhar com o uso das câmeras. Ignorando convenientemente a ciência estabelecida, substituem a política pública baseada em evidências pela politicalha escorada na anedota, usando casos isolados de abuso das forças policiais como se fossem ilustrativos da ação cotidiana da polícia.

Na verdade, as evidências científicas apontam para um dado já sabido pela maioria dos policiais: os casos de abuso não constituem regra nas corporações policiais. A maior parte dos agentes não sai de casa querendo matar ou espancar um cidadão, e as mortes resultantes de conflitos são, no mais das vezes, exatamente isso: mortes resultantes de conflito. Por mais que os casos expostos pela mídia de abuso da violência policial por agentes da Polícia Militar de São Paulo sejam condenáveis, não existe nem suspeita fundada de que façam parte do cotidiano da corporação.

Aliás, chama atenção que a polícia comandada por Guilherme Derrite, um policial militar da Rota e deputado eleito pelo Partido Liberal, tenha se tornado alvo dessa investida. Nos últimos anos, houve aumento na quantidade de mortes relacionadas com confrontos com a polícia. Entretanto, é preciso levar em consideração que o estado vinha de um período de recrudescimento nos homicídios, que suscitou uma resposta dura do novo governo eleito.

Os dados de 2024 sobre criminalidade no estado de São Paulo mostram uma redução significativa em diversos indicadores relacionados à segurança pública. O número de homicídios dolosos caiu de 2.121 em 2023 para 2.050 em 2024, representando uma redução de 71 casos, uma queda de 3,35%.

O roubo de cargas apresentou uma das quedas mais expressivas, com redução de 1.055 ocorrências, passando de 4.973 para 3.918, uma diminuição de 21,21%. O roubo de veículos também registrou avanços, com uma redução de 5.124 casos, caindo de 30.597 para 25.473, o que equivale a uma queda de 16,75%. De forma geral, os roubos em todas as categorias tiveram um decréscimo significativo, com 27.465 registros a menos, uma redução de 14,77% em relação ao ano anterior.

É verdade que houve aumento do número de mortes decorrentes de conflito com a polícia, que subiu de 223 em 2022 para 600 em 2024, mas isso veio junto com o crescimento de todos os indicadores de produtividade, incluindo total de infratores presos e apreendidos (+13%), armas de fogo apreendidas (+40%), veículos recuperados (+34%), flagrantes lavrados (+9%), apreensão de entorpecentes (39%), entre outros. A política de segurança de São Paulo, portanto, tem entregado mais criminosos na cadeia, menos armas nas mãos de bandidos, menos drogas em circulação, menos roubos e mais mortes evitadas.

 O caso é bem diferente de estados como a Bahia, por exemplo, governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). A Bahia ocupa a liderança, em números absolutos, no ranking de mortes por intervenções policiais neste ano. Em 2022, o estado já estava no topo da lista, com 1.467 óbitos, mas registrou um aumento de 15,8%, alcançando 1.699 vítimas em 2023. Pelo quinto ano consecutivo, estado ganhou o título de mais violento do país. É bom lembrar que, enquanto a Bahia possui quase 15 milhões de habitantes e 33.000 agentes, São Paulo é tem uma população de quase 46 milhões de pessoas e mais de 80 mil policiais militares na ativa. É uma polícia menor que a paulista, que precisa lidar com menos gente, mas que mata muito, muito mais.

Ou seja, a menos que, para a grande imprensa, as Cortes e amplos setores da esquerda, a vida dos baianos não tenha tanto valor, fica bem claro que o assunto nunca é o assunto. Trata-se de esforço coordenado de enfraquecimento da posição política de Tarcísio de Freitas no cenário nacional. Afinal, a preocupação em torno da priorização da agenda de segurança pública já vem sendo debatida pelas mentes pensantes na esquerda. É mais uma evidência da ação de consórcio, envolvendo setores da grande imprensa, a elite do Judiciário, a Presidência da República e os partidos de esquerda, que marca a crise mais grave da história da Nova República.

A América Latina se encontra numa encruzilhada entre a bukelização e a narcolização de suas políticas de segurança. Dobrar os joelhos do governador paulista, afastar Guilherme Derrite do comando das polícias e impor uma crise de autoridade sobre as forças de segurança é parte de um esforço programado de uma das partes dessa disputa.

Infelizmente, o governador paulista cedeu rápido demais à pressão política na questão das câmeras. Com isso, legitimou a decisão de Barroso, que deve usar de mais força para impor sua vontade sobre as demais corporações policiais do Brasil. O episódio poderia ter sido evitado com uma maior concertação entre governo, instâncias técnicas capazes de produzir pesquisa de qualidade para fundamentar a resistência ao achaque e o uso correto das mídias sociais na disputa política. Em vez de procurar aproximação com intelectuais, políticos e jornalistas que desejam objetivos opostos em termos de segurança pública, Tarcísio deveria ter se cercado de técnicos capazes também de disputar na esfera do debate público.

É um erro que outros governadores do centro para a direita, como Ronaldo Caiado (União-GO), Romeu Zema (Novo-MG) e Jorginho Melo (PL-SC) não deveriam se dar ao luxo de cometer. Conforme indica a bibliografia sobre o tema, o impacto potencial das câmaras corporais sobre a segurança jurídica e física dos agentes não é nada animador. E ceder nesse tipo de política, no final das contas, só aprofunda a perda progressiva de controle das nossas autoridades sobre a criminalidade que toma conta do país.

Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político. Autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”.

noticia por : Gazeta do Povo

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