Não me sai da cabeça o vídeo que a ex-deputada Joice Hasselmann gravou por ocasião de sua fragorosa derrota nas eleições municipais de 2024. A ex-femme fatale/infant terrible da política nacional concorria ao cargo de vereadora de São Paulo e teve 1673 votos – muitos deles, tenho certeza, votos irônicos. Para se ter uma ideia do tamanho da queda, em 2018 Joice Hasselmann foi a mulher mais votada da história, com 1.078.666 votos. Ah, as ilusões que perdemos nos últimos seis anos!…
No vídeo (que eu espero que use filtro de Barbie, senão… tá louco!), Hasselmann aparece munida de uma taça de champanhe e toda produzia com cabelos de debutante. Fazendo caras e bocas, na primeira parte do vídeo ela xinga o atual prefeito e candidato à reeleição Ricardo Nunes de “bunda-mole”, mas declara seu apoiou a ele porque o momento é de “todos contra Boulos”, etc. “Mas eu quero falar um pouquinho sobre a minha candidatura”, diz ela na sequência. É a parte que nos interessa aqui.
Legião
“Lancei minha candidatura sem nenhuma pretensão. Mesmo”, diz Hasselmann. Já aí a necessidade do “mesmo” chamou minha atenção. Mesmo. Depois, a loba de Ponta Grossa, sem nenhum vestígio do sotaque dos Campos Gerais, oferece um brinde às pessoas porque “estava em suas mãos [do eleitor] a decisão do que eu ia fazer da minha vida”. Uma frase de cortar o coração, porque mostra uma mulher escravizada pela popularidade. Pela aprovação da massa. Pela legião.
Sem perceber a incoerência do discurso de derrota, ela continua o vídeo dizendo que “decidi” – assim: na primeira pessoa do singular. Ué, mas o poder de decisão não tinha sido dado a essa abstração sem alma chamada “às pessoas”?!, pensei eu, imediatamente me lembrando de Nefarious. Hasselmann, então, anuncia que está pendurando as chuteiras e que jamais será candidata a nada. O que, dizem, foi uma alegria no condomínio onde ela mora.
Mas se você acha que o pior já passou, está enganado. Agora vem o trecho com o qual mais aprendi, e cuja lição, dada assim por vias tortas, eu o convido a escutar também.
Um ser humano abnegado
“Eu antes da política ganhei muuuuito dinheiro, como a jornalista mais importante deste país”, diz ela. “Abri mão de tudo para me dedicar à política”, continua. “Abri mão mais uma vez, mais uma vez e mais uma vez”, insiste ela. E antes que suas sobrancelhas se juntem numa expressão de indignação e você comece a julgar a biógrafa de Sergio Moro por dizer que “pela última vez, abri mão da minha carreira, dos meus projetos (…)”, permita-me sugerir que você perceba.
Perceba que Joice Hasselmann é insuportavelmente humana e parecida comigo e com você, que também tendemos a criar para nós mesmos essa imagem do ser abnegado, disposto a sacrificar tudo por uma causa maior e mais elevada. Mas que tudo é esse? E, no caso da influencer fitness, que sacrifício é esse que sugere a troca da alma por mais dinheiro, pelos holofotes e pelo o poder inerente ao mundo da política?
Não é por aí!
É improvável que sejamos tão abnegados assim. Tão nobres e santos. Pelo contrário, o normal é que escolhamos o que nos é conveniente, não raro calando uma voz que, aos berros, repete em nossa consciência que o caminho não é esse!, não é por aí!, cuidado com as tentações! Assim como o normal é que confundamos a ideia de sacrifício com os obstáculos naturais que surgem das decisões que tomamos com base no erro maior que é o de querermos ser como deuses.
Porque cultivo uma ingenuidade intencional, contudo, depois desse momento de quase autocrítica (na trave!) imaginei que pudesse ouvir de Joice Hasselmann uma contrição ou no mínimo uma reflexão sobre a queda. Sobre a expulsão do Paraíso. Sobre o tempo que ela passou no mundo, depois de pedir sua parte da herança, sair de casa, viver na esbórnia e disputar a lavagem com os porcos. Mas não. Ouvi a conclusão arrogante de que “a população não tá preparada para votar no que é bom, bonito e agradável aos olhos do Senhor”.
Artificialidade
Ou seja, os errados e os culpados pelo fracasso de Joice Hasselmann são os outros. Da mesmíssima forma que os erros e os culpados pelos fracassos em nossas vidas são sempre… os outros. São os Cains invejosos da nossa “predileção divina” – o que está implícito no final da fala da ex-queridinha da direita. São os que não têm acesso à nossa alma sempre tão pura e cheia de boas intenções. Por fim, são os ignorantes que não alcançam a nossa genialidade.
Mas disse lá no título que dá para aprender, e muito, com o vídeo de Joice Hasselmann. E dá. Por isso vou insistir em usar a primeira pessoa do plural a fim de lhe sugerir: repare como os culpados por nossos fracassos raramente são esses outros aí, os outros que odiamos e que temos por leprosos, como tão bem expôs meu amigo Francisco Escorsim num texto daqueles de emoldurar. Mas, ora, se não são os outros, quem são os culpados por nossos dissabores?
Somos eu e você – que percebemos o orgulho ridículo na figura artificial e nas palavras “ébrias de si” de Joice Hasselmann, mas que, ébrios de nós, somos incapazes de notar o mesmo orgulho ridículo em nossa artificialidade e em nossas palavras cheias de justificativas mentirosas.
noticia por : Gazeta do Povo