VARIEDADES

Conselhos para salvar a “geração ansiosa” valem para todos nós

Em sua recente resenha do livro “A Geração Ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais” (Companhia das Letras, 2024), de Jonathan Haidt, Claire Morell escreve que “a maré finalmente está virando” quando se trata de crianças, smartphones e redes sociais. Graças, em grande parte, ao trabalho de Haidt, esforços coordenados estão sendo feitos para resgatar a infância da influência das telas.

Essa mudança é especialmente evidente quando se trata de smartphones nas escolas. Nos Estados Unidos, cada vez mais escolas e distritos escolares estão introduzindo políticas de restrição ou eliminação do uso de celulares e já estão vendo as crianças se revitalizarem. Agora, vários estados estão instituindo políticas semelhantes em âmbito estadual em suas escolas, embora a implementação e a fiscalização variem amplamente de uma escola ou distrito para outro.

Esses são passos maravilhosos. Mas eu me pergunto qual impacto eles terão se o argumento de Haidt acabar sendo reduzido a “não me deixe ver seu celular durante o horário escolar”. Ou se as implicações mais amplas de seu argumento forem ignoradas em outros aspectos da vida. Morell concorda: “Aprecio a posição maximalista que Haidt adotou nas escolas e apenas gostaria que ele tivesse estendido essa abordagem maximalista também às famílias.” Ela continua: “Se essas tecnologias são tão ruins quanto Haidt nos mostra, então os pais devem adotar uma abordagem maximalista em relação a elas e manter tanto os smartphones quanto as redes sociais completamente fora da infância.”

Gostaria de explorar aonde acho que os argumentos de Haidt poderiam tomar a liderança de maneira frutífera e sugerir alguns pontos que ele hesita em abordar. Especificamente, gostaria de aplicar o quadro de Haidt ao contexto da vida pessoal e familiar.

Entendendo o argumento de Haidt

Haidt cunha o termo “Grande Reconfiguração” para se referir à mudança tectônica do que ele chama de “infância baseada em brincadeiras” para uma “infância baseada em celulares”. Haidt argumenta que essa “transformação profunda da consciência e dos relacionamentos humanos… ocorreu, para os adolescentes americanos, entre 2010 e 2015”, quando os smartphones se tornaram um objeto onipresente de posse deles.

Eu teria que concordar. Fui professor do ensino médio no sistema escolar público em ambos os lados dessa transição fatídica, e o smartphone mudou drasticamente a natureza da sala de aula e o tipo de desafio que os alunos — e professores — enfrentavam. (Você pode ler o que fiz sobre isso há vários anos aqui. Spoiler: eu pegava os celulares deles e os guardava em um armário antes que essa prática se tornasse tendência).

Haidt em seguida documenta como essas mudanças estão afetando meninos e meninas de maneira diferente, o que é uma parte muito útil e perspicaz do livro. Para os meninos, o mundo digital tem sido um portal para coisas como pornografia e jogos, que Haidt aponta serem ambos ambientes de risco e conquista artificiais. Esses mundos digitais simulam o que os jovens desejam, mas não oferecem os benefícios do mundo real, o que leva ao ciclo descendente tão comum entre os meninos hoje. E para as meninas, o habitat digital tem sido mais orientado em torno da comparação social e da aparência. Assim como os meninos, há uma necessidade e desejo humanos reais que pedem para ser atendidos, e a internet oferece um placebo atraente que acaba se revelando um veneno, levando aos desafios comuns que as meninas enfrentam hoje.

Haidt resume:

“Os meninos e as meninas seguiram caminhos diferentes na Grande Reconfiguração, mas, de alguma forma, acabaram no mesmo poço, onde muitos estão afundando em anomia e desespero. É muito difícil construir uma vida com propósito por conta própria, à deriva em várias redes amorfas.”

Jonathan Haidt, psicólogo social, em “Geração Ansiosa”

No caso de meninos e meninas, certos aspectos do ambiente digital o tornam um obstáculo ao florescimento humano. E Haidt fornece um dos arcabouços mais concisos e persuasivos para o que realmente constitui a diferença central entre “vida real” e “vida virtual”, e por que isso realmente tem tanto impacto em nosso bem-estar. Não é apenas antiquado reconhecer que algo significativo muda nos seres humanos quando levamos nossas vidas para o virtual e vivemos através de uma caixa de telinha brilhante. Tal reconhecimento é inteiramente razoável e verdadeiro — e apoiado pelas evidências. Haidt oferece quatro pontos de comparação que capturam precisamente por que os seres humanos não se dão bem online e mostram como isso não é o que fomos projetados para fazer. Haidt explica:

“Quando falo sobre o ‘mundo real’, refiro-me a relacionamentos e interações sociais caracterizados por quatro características que foram típicas por milhões de anos:

  1. São encarnados, o que significa que usamos nossos corpos para nos comunicar, estamos conscientes dos corpos dos outros e respondemos aos corpos dos outros tanto conscientemente quanto inconscientemente.
  2. São síncronos, o que significa que estão acontecendo ao mesmo tempo, com dicas sutis sobre o tempo e a alternância da vez de cada um.
  3. Envolvem principalmente comunicação de um para outro ou um para vários, com apenas uma interação acontecendo em um determinado momento.
  4. Acontecem dentro de comunidades que têm um alto padrão para entrada e saída, então as pessoas estão fortemente motivadas a investir em relacionamentos e reparar rupturas quando acontecem.”

Essas são as maneiras normativas pelas quais os humanos foram projetados para construir relacionamentos e nas quais têm mais chances de florescer. E, Haidt argumenta em “Geração Ansiosa”, o habitat digital funciona na direção exatamente oposta:

“Em contraste, quando falo sobre o ‘mundo virtual’, refiro-me a relacionamentos e interações caracterizados por quatro características que foram típicas por apenas algumas décadas:

  1. São desencarnados ou amorfos, o que significa que nenhum corpo é necessário, apenas linguagem. Parceiros poderiam ser (e já são) inteligências artificiais (IAs).
  2. São fortemente assíncronos, acontecendo via postagens e comentários baseados em texto. (Uma chamada de vídeo é diferente; é síncrona.)
  3. Envolvem uma quantidade substancial de comunicação um-para-muitos, transmissão para um público potencialmente vasto. Múltiplas interações podem estar acontecendo em paralelo.
  4. Ocorrem dentro de comunidades que têm um baixo padrão para entrada e saída, então as pessoas podem bloquear outras ou simplesmente sair quando não estão satisfeitas. As comunidades tendem a ser de curta duração, e os relacionamentos são frequentemente descartáveis.”

Quando Haidt toca nessas quatro diferenças centrais, as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar quanto ao motivo pelo qual o mundo digital nos afeta da maneira como o faz. Ele vai contra a corrente de nossa natureza encarnada e relacional. E, com esse quadro em mente, podemos explorar melhor suas implicações e seus conselhos para a Geração Ansiosa para outras áreas da vida.

Estendendo o argumento de Haidt para a geração ansiosa: além dos celulares, escolas e redes sociais

Não há dúvida de que Haidt fornece um arcabouço fundamentado em pesquisas para que todos nós possamos entender melhor o que a vida “baseada no celular” está realmente fazendo conosco. Em resposta, Haidt avança o que chama de quatro reformas fundamentais:

  1. Sem smartphones antes do ensino médio,
  2. Sem redes sociais antes dos 16 anos,
  3. Escolas livres de celulares, e
  4. Muito mais brincadeiras sem supervisão e mais independência infantil.

Essas são ótimas sugestões e já estão tendo um impacto significativo em todo o país, especialmente nas escolas. Mas, se reduzirmos o livro de Haidt a esses quatro pontos de ação, perdemos o ponto mais amplo. Sim, dar esses quatro passos pode ajudar a resgatar a infância. Mas este não é apenas um problema da infância; é um problema humano.

Devemos empregar a lógica de Haidt ao considerarmos os efeitos mais amplos de nosso ambiente tecnológico. Robin Phillips e eu abordamos essas questões relacionadas no livro Are We All Cyborgs Now? Reclaiming Our Humanity from the Machine (“Estamos todos nos tornando ciborgues? Recuperando nossa humanidade da máquina”, em trad. livre). Por exemplo, se estamos dando o passo de proibir celulares nas escolas, o que dizer sobre salas de aula mediadas tecnologicamente, com laptops ou iPads para cada aluno? E quanto aos hábitos e práticas em nossos lares ou igrejas? Também tratamos do crescente papel da IA (inteligência artificial) e da RA/RV (realidade aumentada/realidade virtual) em nossas vidas. O livro de Haidt também toca em questões de espiritualidade e religião sem oferecer uma resposta satisfatória. Robin e eu mergulhamos de cabeça nesse tema e oferecemos um caminho a seguir com uma filosofia da tecnologia ancorada no pensamento clássico e cristão, na vida sacramental da Igreja e na rica tradição do aprendizado liberal.

Os efeitos prejudiciais de uma infância baseada no uso de celulares estão se tornando cada vez mais difíceis de negar. O trabalho de Haidt fez com que muitas pessoas, famílias — até mesmo distritos escolares inteiros e governos estaduais — levassem essa questão a sério e agissem. Por isso, todos devemos ser gratos. Mas ainda há muito a ser dito e feito. A vida mediada digitalmente afeta a todos nós — em nossos hábitos e estilos de vida e em como pensamos sobre nós mesmos, nosso trabalho, uns aos outros e nosso mundo. A Máquina torna-se o modelo para o humano. Wendell Berry advertiu sobre isso há décadas quando escreveu: “É fácil para mim imaginar que a próxima grande divisão do mundo será entre pessoas que desejam viver como criaturas e pessoas que desejam viver como máquinas.”

O que Berry quer dizer com “desejar”? Parece para mim que ele está apontando para nossos desejos e afetos e o que consideramos mais valioso, encantador e digno. Quando nossas vidas são orientadas em direção à máquina — ou mesmo como uma máquina — nossos desejos e afetos estão deslocados e distorcidos, fixando-se nos prazeres de segunda categoria do que Haidt chama de “mundo virtual”. Para combater tais influências deformadoras, podemos recorrer ao tradicional caminho duplo pelo qual os desejos e afetos humanos são reordenados em direção a fins apropriados. Primeiro, precisamos de limites e restrições, incluindo maneiras de diminuir os aspectos da tecnologia que são desumanizantes e viciantes. Mas, segundo, nossos corações precisam ser movidos por uma visão mais bela do que o mundo tecnocrático pode oferecer.

Não se trata apenas de dizer não aos smartphones ou às telas da geração ansiosa; também se trata de encontrar maneiras de torná-los menos atraentes em primeiro lugar. E isso exige trabalho para refinar nossos gostos e desejos em direção ao que é verdadeiramente belo (arte, música, literatura, natureza, artesanato). Exige trabalho para desacelerar e escolher o caminho relacional encarnado de maior resistência, mas que traz recompensas mais duradouras.

Por exemplo, podemos começar mudando as configurações padrão dos nossos ambientes. Ou seja, em vez de ter telas em destaque em uma sala ou sempre à mão, insira substitutos: bons livros, jogos de tabuleiro e instrumentos musicais. Se fizermos deles parte de nossos ambientes cotidianos, será mais fácil recorrer a essas atividades em vez de nos voltarmos às telas.

Em segundo lugar, podemos praticar uma forma de ascetismo tecnológico: para usar uma analogia talvez mais familiar, pense em como a prática do jejum desenvolve a força de vontade e a determinação de uma pessoa, ou como a autodisciplina do exercício desenvolve uma sensação de confiança e resistência. Assim como a vida espiritual é marcada por momentos de jejum e festa, nossos hábitos tecnológicos também podem ser caracterizados pelo tipo de equilíbrio que surge da autodisciplina. Tais práticas não são, em sua essência, negativas, mas, sim, um meio para um fim maior, a saber, conectar-se ao que é bom, verdadeiro e belo.

Por fim, em nossa era digital, o serviço encarnado ao próximo é poderoso e profundamente contracultural. Se queremos devolver à tecnologia um lugar mais moderado e equilibrado, podemos começar praticando a hospitalidade em nossos lares. O próprio Deus entrelaçou a hospitalidade e o convívio no próprio tecido do cosmos, e podemos praticá-los como uma maneira de nos enraizar na realidade do mundo físico e relacional encarnado.

O trabalho de Haidt nos aponta para a recuperação da infância e da geração ansiosa. Vamos mais longe, recuperemos nossa humanidade. Isso requer convívio e gratidão, hospitalidade e fisicalidade. Requer abraçar a bondade do corpo humano e dos limites físicos. Requer risco e vulnerabilidade, atrito e interdependência. Mas a beleza e o poder dessa visão, por mais difícil e confusa que seja, podem nos levar, como Berry colocou, a desejar viver como criaturas novamente.

Joshua Pauling é vigário da Igreja Luterana de Todos os Santos em Charlotte, Carolina do Norte, e escritor.

©2024 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

Conteúdo editado por:Eli Vieira

noticia por : Gazeta do Povo

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