Estava aqui assistindo ao jogo de vôlei entre Brasil e Estados Unidos. Em dado momento, a comentarista soltou um “estadunidense” cheio de desprezo para se referir às rivais norte-americanas. Ou simplesmente americanas, como elas mesmas preferem. Na hora, doeu no ouvido. Mas não só. Doeu também em alguma parte da alma. E lá fui eu me lembrar.
Como não poderia deixar de ser, ouvi essa palavra pela primeira vez de um professor. Não sei se de história ou de geografia. Acho que de geografia. Disse ele que “estadunidense” era o único termo certo – e quem insistisse no erro de usar “norte-americano” na prova seria penalizado. (Me ocorre agora que talvez tenha sido um professor de português).
A justificativa era simples o bastante para convencer um adolescente de cabeça oca. Mas não eu. De acordo com o professor, o termo “norte-americano” seria errado porque norte-americanos também são os canadenses e mexicanos. Por essa lógica, o termo “americano” seria ainda mais errado ainda. Mas depois dessa explicação o professor deu uma risadinha e revelou o verdadeiro motivo de sua recusa em usar “norte-americano”: é que o termo consagrado e de uso corrente havia sido imposto pelo imperialismo cultural norte-americano. Ops, estadunidense*.
Há trinta anos, a palavra tinha um quê de resistência caricata. De idiossincrasia. Ninguém – nem o professor de história ou geografia ou português – o levava a sério. À medida que se aprofundou a corrupção da linguagem, porém, o termo caiu no gosto de toda uma geração que cresceu consumindo jornalismo, publicidade e cultura já contaminados pelo vocabulário ideológico. Uma geração que, por causa disso, passou a usar “estadunidense” para afetar superioridade política e, acredite se quiser!, intelectual.
Preconceito
É por isso que deduzo um monte de coisas de quem fala “estadunidense”. Deduzo sobretudo que se trata de alguém fraco, suscetível à doutrinação política mais rasa – aquela feita por professorezinhos do Ensino Médio. Depois deduzo que estamos falando de alguém que não se interessa pela beleza e que nunca parou um segundo para pensar na sonoridade das palavras. Aliás, é possível que seja alguém que usa as palavras a esmo, sem atentar para o que elas significam.
Antes de continuar com as deduções, porém, permita-me reconhecer que essa minha aversão a quem fala ou escreve “estadunidense” é, sim, um preconceito – dos poucos que a lei ainda me permite confessar. Isto é, trata-se de um conceito que faço antes de me confrontar com a realidade. Afinal, quem fala “estadunidense” pode não ser nada disso do que penso. Mas a vida me ensinou que as chances são grandes de que seja, sim.
Por isso, desculpe insistir no preconceito para dizer que deduzo também que quem fala “estadunidense” tem ou já teve um poster de Che Guevara no quarto. Talvez até uma tatuagem do Fidel. É alguém que usa seu iPhone para tuitar coisas como “abaixo o capitalismo” e para, durante uma conversa no WhatsApp, dizer que os venezuelanos só passam fome por causa do? Do imperialismo estadunidense, claro. Certeza de que você conhece o tipo.
Enquanto descrevo o típico usuário da palavra “estadunidense”, porém, percebo que o termo e meu preconceito têm esse efeito péssimo, nocivo de estreitar minha imaginação e reduzir minha visão do outro a uma caricatura desprezível. Porque logo me vem à mente um petista, lulista com “l” maiúsculo, talvez saudosista do império soviético e muito provavelmente identitário antissemita. Em resumo, um esquerdista com sérios problemas cognitivos. Meu Deus, como sou injusto! Sou?
* Essas são a únicas formas de eu usar “estadunidense”: ironicamente ou em diálogos, na boca de algum personagem intelectualmente deficitário.
noticia por : Gazeta do Povo