VARIEDADES

“Pense antes de postar”: a crise cultural e política do Reino Unido

Após um adolescente transtornado ter matado a facadas três meninas em Southport, no Reino Unido, e ferido outras crianças e adultos no dia 29 de julho, o país formado por quatro nações foi atirado em tensões não vistas havia décadas. Tumultos baseados em desinformação, mas também em apreensões sobre a imigração não apaziguadas nos governos anteriores, inflamaram a já crescente tendência do Estado britânico de interferir na expressão dos cidadãos.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Claire Fox, membro da Câmara dos Lordes (equivalente ao nosso Senado), disse que há no país “uma sensação crescente de ausência da lei”. Para a baronesa, que também é uma experiente ativista da liberdade de expressão no país, “não é só a imigração, há também o que tem sido descrito como um policiamento em dois níveis”, ou seja, com dois pesos e duas medidas. O termo “dois níveis” (two tiers) rendeu ao primeiro-ministro trabalhista Keir Starmer, que tomou posse em 5 de julho, o apelido “Two-tier Keir” entre os manifestantes anti-imigração.

Dois níveis, duas medidas

Por um lado, “a polícia não responde quando as pessoas enfrentam ladrões em suas casas ou comércios ou quando se sentem ameaçadas pelo que é dito em protestos relacionados a Gaza e Israel quase toda semana, com gritos de guerra bem ferozes que são assustadores se você é judeu, além de muito antissemitismo”, afirmou Fox. “Isso é tratado com luvas de pelica”.

Por outro lado, a polícia tem sido rígida com os manifestantes anti-imigração dos protestos e tumultos mais recentes. Imediatamente após os crimes, Starmer ordenou que a polícia agisse “contra os extremistas nas nossas ruas que estão atacando policiais, perturbando o comércio local e tentando semear o ódio pela intimidação das comunidades”. A polícia contabilizou quase 400 presos em 26 cidades nas manifestações pelo país até uma semana após os assassinatos em Southport (confira no mapa).

A jornalista britânica Sarah Ditum corroborou a falta de ação da polícia em crimes comuns no podcast Blocked & Reported, dos jornalistas americanos Jesse Singal e Katie Herzog, no sábado (10). Segundo Ditum, a polícia se recusou a abrir investigação contra jovens que furtaram pertences de seu filho, mesmo em posse de imagens de câmera de segurança. “Acho que queriam evitar a burocracia”, afirmou.

Tensões já estavam se elevando antes da tragédia

Três eventos demonstram que o crime em Southport não foi a única motivação para os protestos, disse Fox. Poucas semanas antes dos assassinatos de Southport, no dia 19 de julho, imagens do canal ITV News mostram policiais fugindo de manifestantes na cidade de Leeds (norte da Inglaterra, 540 mil habitantes).

Veículos foram incendiados, um carro da polícia foi virado e moradores atiraram objetos contra forças especiais. “Acompanhamos pelas redes sociais, foi assustador e horrível”, afirmou Fox, “a polícia parecia ter perdido o controle”. Segundo o site Social Work News, tudo começou quando, após relatos de ferimentos a um bebê, agentes de conselho tutelar e policiais tentaram cumprir a ordem de um juiz de remover quatro crianças da guarda de seus pais. Isso revoltou a comunidade local, um amálgama empobrecido de ciganos (romani) e imigrantes. O Estado devolveu as crianças a lares de parentes, sob protesto de conselheiros tutelares, que não tiveram tempo de avaliar suas condições.

Outro incidente foi o esfaqueamento do oficial do Exército Mark Teeton no dia 23 de julho. Teeton estava uniformizado e próximo a uma base militar no condado de Kent, no sudeste da Inglaterra. O autor do crime é Anthony Esan, de 24 anos, que abordou o oficial por trás e o atingiu repetidamente. Teeton foi hospitalizado e deve sobreviver. A polícia divulgou poucas informações sobre Esan, mas diz que o crime não teve motivação terrorista.

“As pessoas quase levaram bronca” do governo por perguntar a respeito das motivações de Esan, comentou Claire Fox. Depois do crime, “as Forças Armadas aconselharam os soldados a não usar mais seus uniformes na área, então pareceu bem suspeito”, disse a parlamentar.

O terceiro evento relevante aconteceu no mesmo dia no Aeroporto de Manchester. Circularam imagens em que um policial brutalmente chutava e pisava sobre a cabeça de um jovem desacordado de bruços no chão. O jovem era Muhammad Fahir Amaaz, um dos filhos da cidadã local Shameem Akhtar, 56 anos, que diz que também recebeu um choque de taser dos policiais. A família é britânica e seus nomes sugerem ancestrais muçulmanos paquistaneses. Um segundo vídeo mostrou que os policiais haviam sido agredidos com socos do grupo — uma policial teve o nariz quebrado. Amaaz, seu irmão e dois outros foram presos, e dois policiais estão sendo investigados pelo incidente.

“Isso foi visto como prova de que a polícia é racista”, disse Fox. O incidente foi respondido com protestos em Manchester e Rochdale (cidade da família). Depois que as imagens adicionais mostraram que o grupo de Rochdale havia atacado a polícia, “todo mundo ficou em silêncio”, afirmou a baronesa. “Havia um tipo de atmosfera pesada de que algo estava para ocorrer”, e então aconteceu o crime de Southport — o fato de terem sido facadas é importante, pois nos últimos anos os esfaqueamentos têm crescido no Reino Unido, frequentemente com interpretações a respeito do histórico cultural dos criminosos e vítimas.

Como elemento adicional de tensão, “há um medo ou uma insistência de dizerem que não se pode comentar a ameaça e a violência dos islamistas radicais”. Esse medo se estendeu às eleições gerais deste ano, quando foram eleitos quatro novos membros da Câmara dos Deputados acusados de conexões com o radicalismo islâmico, e houve relatos de candidatos acossados por militantes da causa. “Foi um barril de pólvora à busca de pavio”, afirmou Fox.

A mão pesada do Estado

Claire Fox diz que já perdeu a conta de quantas pessoas foram presas nas últimas semanas por emitir palavras que o governo britânico considera criminosas. A ativista diz que, apesar da tendência recente à maior repressão e censura, o encarceramento é uma medida que os próprios britânicos estranham.

Lee Joseph Dunn, um trabalhador de 51 anos, declarou-se culpado em um tribunal após ser detido por três postagens no Facebook consideradas racistas. Uma delas envolvia a foto de um grupo de homens de aparência asiática e tinha a legenda “logo estarão em uma cidade perto de você”. Outra, provavelmente gerada por inteligência artificial, era imagens de homens de aparência asiática segurando facas na frente do Palácio de Westminster e cercando uma criança branca chorosa embrulhada com uma bandeira do Reino Unido.

Dunn removeu as postagens e pediu desculpas. Ele foi condenado a oito semanas de prisão. Seriam 12 se ele não tivesse se declarado culpado. A maioria dos acusados de “discurso de ódio” prefere confessar culpa nas cortes por este motivo. “Sabe o que é pior que alguém que compartilha imagens ‘ofensivas’? Um Estado que prende pessoas por isso”, disse o jornalista e podcaster britânico Stephen Knight, reagindo ao caso.

Jordan Parlour foi outro condenado. Ele postou no Facebook, em referência à acomodação de imigrantes em hotéis do país, que “todo homem e seu cachorro deveria estar quebrando o Hotel Britannia”. Ele foi condenado a 20 meses de prisão.

Sobre este caso, o comentarista e apresentador de TV Andrew Doyle disse que “promover a violência contra os refugiados acomodados neste hotel é obviamente condenável, [mas] devemos defender a liberdade de expressão até para aquelas pessoas que detestamos, pois, assim que diluirmos o princípio, as consequências afetarão a todos nós”. Doyle afirmou que Parlour parece um indivíduo desagradável e que o bloquearia instantaneamente, mas que suas palavras não representam um perigo iminente que justificasse a interferência do Estado.

No X, a conta oficial do governo britânico mandou um recado a quem comenta a crise do país: “Pense antes de postar”. Para Claire Fox, “há uma ameaça no tom da mensagem”. Entre as iniciativas do governo para deter “desinformação” e “discurso de ódio”, conta a baronesa, está um plano de incluir o que ela vê como doutrinação nas escolas sobre o ponto de vista do governo nesses assuntos a partir da faixa etária dos cinco anos. Professores estão preocupados, disse ela, mas também dizem que querem ensinar as crianças a não serem racistas.

Progressistas e governo tentam culpar Elon Musk e o X

Elon Musk, dono do X, reagiu às mensagens do governo britânico: “é a Grã-Bretanha ou a União Soviética?”. Antes, no começo dos tumultos, ele disse que “a guerra civil é inevitável” no país. Um porta-voz de Starmer respondeu que “não há justificativa” para os comentários de Musk e afirmou que as redes sociais podem e devem fazer mais para “combater a desinformação”.

O bilionário e sua rede social têm sido acusados, inclusive por um ex-editor chefe do jornal The Guardian, de serem uma das causas ou a causa principal dos tumultos e vandalismos.

Para a baronesa Claire Fox, embora seja “bobo” considerar Elon Musk um herói, “ele fez um grande serviço pela liberdade de expressão”. “O X é importante para separar o que é verdadeiro do que é falso”, afirmou.

Quanto à briga do bilionário com o governo, Fox disse que mal pode esperar “pelo dia em que o governo britânico tentará fechar o X neste país, porque todos aqueles jornalistas que ficam tuitando sobre o quanto não aguentam Elon Musk e o X vão dizer ‘onde vamos contar a todo mundo que conseguimos banir o X?’ e não terão onde contar”. Ela diz que há um elemento de entretenimento na briga: “ele parece um menino levado, provocando-os, um troll com uma enorme quantidade de seguidores”.

“Não estou dizendo que é assim que a política deve ser conduzida”, afirmou Fox. “Mas, por causa da forma simplificadora com que o governo tentou culpar as redes sociais pelos tumultos, em vez de olhar as causas mais profundas que subjazem ao que está acontecendo, dá para ver por que as autoridades estão furiosas com Musk”.

noticia por : Gazeta do Povo

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