MUNDO

Jabutis com várias pernas

Não deveria ser surpresa. Mais uma vez, o patrimonialismo do Brasil distribui privilégios, desta vez para algumas empresas do setor de energia.

Na semana passada, o pedágio foi anunciado por portaria do Ministério de Minas e Energia. A conta será alta para muitas famílias e empresas; cerca de R$ 7 bilhões por ano, como relatou esta Folha.

Como acontece com frequência por aqui, o diabo está nos detalhes. Na profusão de decretos e medidas provisórias, o discurso de energia renovável garante subsídios a quem não precisa e incorpora proteções para fontes poluentes na produção de energia.

Termoelétricas a carvão no Rio Grande do Sul se valem de congressistas para impor a sua participação nos leilões de reserva de capacidade de energia.

Essa medida significa proteger combustíveis fósseis. Assim vamos.

A energia solar, por sua vez, não paga pela infraestrutura de transmissão. Isso beneficia os seus usuários, mas os custos são arcados pelos demais consumidores de energia.

Grandes empresas instalaram “fazendas solares”, que se valem da infraestrutura instalada para consumir a energia subsidiada em diversas localidades.

O subsídio cruzado tinha prazo para terminar, até porque o custo da energia solar caiu significativamente na última década.

Uma vez competitiva, a energia solar deveria arcar com sua cota do custo da infraestrutura que a distribui pelo país, para benefício de quem consome aqui a energia produzida acolá.

Nada disso. Rapidamente, surgiu o chavão “taxar o sol”; na sequência, o presidente anterior declarou a sua indignação; e o subsídio vem sendo prorrogado, com a conta sendo paga pelo restante da sociedade.

Novas propostas alteram os fundos para substituir energia “suja”, como diesel. Os recursos passariam a auxiliar a queda do custo da energia em áreas localizadas, como o Amapá.

A política paroquial, dominante no Congresso, concede privilégios para grupos com peso no Senado, em prejuízo do bem comum.

Com a capitalização da Eletrobras, novas modalidades de subsídios na conta de energia foram inseridas. A criatividade parece não ter limite, como na distribuição de subsídios e proteções a outras formas de energia.

A MP 1.212, proposta pelo governo, altera a previsão legal de a Eletrobras transferir recursos para reduzir os subsídios concedidos pelo setor elétrico.

A medida propõe vender os benefícios futuros (“securitizar” é o jargão) para reduzir o preço da energia a curto prazo, deixando a conta para o futuro.

A taxa de juros é alta no Brasil. Melhor se preparar para o desconto a ser concedido aos compradores desses títulos.

A conta será paga pelos consumidores de energia, que irão arcar com preços mais altos quando passar o efeito imediato do populismo.

Nada de novo no paraíso.

Muitas das novas fontes de energia são intermitentes, dependendo do vento e da luz solar. No fim do dia, por exemplo, os consumidores têm que recorrer às fontes tradicionais, que devem ter capacidade para satisfazer à demanda.

Como os subsídios fragilizaram a oferta de energia tradicional, o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) pediu a grandes consumidores (essencialmente, da indústria) que reduzissem seu consumo nos momentos de pico de demanda, prejudicando a produção, o emprego e a renda.

A falta de uma política de energia, com objetivos e metas discutidos com transparência, acaba facilitando o trabalho dos lobbies.

Na profusão de medidas desencontradas, são adicionados artigos de lei que capturam recursos da sociedade; por vezes, na contramão de uma matriz energética mais sustentável e limpa.

As propostas do Executivo e do Congresso deveriam ser antecedidas por audiências públicas. Isso permitiria às diversas partes apresentar estudos técnicos, com dados abertos para conferência por parte de especialistas, que poderiam analisar o seu impacto.

Mas a luz do sol (o melhor desinfetante, como dizia Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte americana) parece ser indesejável aos lobbies e seus vínculos com o poder público.

Na sombra, o que temos são os usuais “jabutis”, como são denominadas as medidas introduzidas no Congresso que desvirtuam a proposta original.

A energia a gás, por exemplo, pode ser um apoio importante para a matriz do setor elétrico.

Mas por que impor que o gás, extraído no litoral, tenha que viajar até o Centro-Oeste e o Norte do país por meio de gasodutos, para então ser transformado em energia que, na sequência, deve ser transferida para o centro-sul, onde será consumida?

Não seria mais fácil, e barato, transformar o gás em energia no litoral do Rio de Janeiro, por exemplo, evitando a logística cara que beneficia apenas alguns poucos operadores?

Esse não é o único exemplo de criação de logística complexa e socialmente custosa para poder extrair, no meio do caminho, um pedágio, uma pequena fração do gasto com esses projetos mirabolantes, que beneficia grupos de interesse.

Na frase irônica de tempos atrás, sairia mais barato pagar diretamente o que pedem esses lobbies. Em troca, seus projetos seriam arquivados.

Os jabutis no Brasil por vezes são sutis e têm múltiplas pernas. Quando menos se espera, uma delas se revela sanguessuga.

noticia por : UOL

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