Os ciclos da amazônia são um martírio para Waldomiro Coelho, 59, e Rosilene Gouvim, 57, que moram no beco São Vicente, um dos vários becos que entrecortam uma extensa área de favelas em Manaus.
O casal vive com o filho mais novo numa casa de madeira suspensa, erguida a cinco metros do chão, a poucos metros de um igarapé que se conecta com o rio Negro, a veia central da maior cidade amazônica.
Na cheia, os alagamentos são frequentes, e a altura da água —que arrasta lixo e esgoto em seu percurso— está marcada nas ripas que constituem a parede da casa. Na seca, Waldomiro e Rosilene ficam ilhados. O igarapé na frente de casa praticamente desaparece e o barco que o vendedor de peixes usa para trabalhar precisa ficar ancorado a uma longa distância.
A expansão de favelas nas franjas do bairro Educandos, onde está o beco São Vicente, se repete em outros pontos de Manaus, com avanços de moradias por áreas verdes e por igarapés. A capital de 2 milhões de moradores vive uma expansão desordenada, sem planejamento.
Vista de cima, Manaus é uma mancha urbana encravada na floresta. A cidade, porém, está de costas para a amazônia. Expande-se sem harmonia com igarapés e cursos d’água, o bioma está desconectado da rotina urbana, os ciclos de secas e cheias viram transtornos rotineiros em distintos pontos da cidade.
Na disputa pela Prefeitura de Manaus, neste ano eleitoral, no entanto, o debate político ainda passa à margem de questões sobre a relação da cidade com a floresta, ocupação de igarapés e áreas verdes, expansão de favelas, déficit habitacional e falta de qualidade de vida nos espaços ocupados.
Os extremos climáticos, por sua vez, vêm se intensificando ao longo dos anos, e os ciclos naturais da amazônia se convertem em um constante desassossego, num lugar onde a ocupação desordenada já impede o mínimo de qualidade de vida.
“Quando alaga, tem muita cobra e jacaré”, diz Waldomiro. “Na seca, sem o barco perto, todo dia gasto com transporte de Uber, e já fui assaltado duas vezes.”
Waldomiro e Rosilene contam que estão na mesma casa há 40 anos, depois de terem deixado o interior do Amazonas.
Há lixo por todos os lados, e um esgoto corre sob o piso de madeira. O imóvel está cercado por outros parecidos, e os becos e moradias se multiplicam, tanto no contorno do igarapé quanto terrenos adentro, cortados por escadarias ladeadas por casas.
“Quando é tempo de eleição, vem todo tipo de candidato aqui. Eles prometem, a gente vota. Passou a eleição, eles desaparecem”, afirma Rosilene.
Indicadores diversos mostram como a cidade encravada em uma área preservada da amazônia está, de fato, de costas para a floresta.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Manaus é a terceira capital brasileira com menos arborização das ruas. O índice é de 23,9%, superior apenas a Belém (22,3%) e a Rio Branco (13,8%).
Mais da metade das moradias está em favelas, muitas vezes em ocupações irregulares de beira de igarapés e áreas verdes. Segundo dados do IBGE compilados pelo Instituto Cidades Sustentáveis, 53,3% dos domicílios estão em favelas. Dentre as capitais, a proporção é inferior apenas à de Belém, conforme o mapa da desigualdade entre as capitais formulado pelo instituto.
O avanço por áreas verdes não se resume a iniciativas de famílias pobres, que são empurradas por déficits habitacionais, necessidade de encurtamentos de distâncias e busca por fontes de renda. Em reservas próximas ao núcleo urbano, como a do rio Negro, são frequentes as denúncias de invasões por pessoas de classe média alta para a consolidação de sítios de lazer.
Além disso, não há o hábito da coleta seletiva em Manaus, e a destinação de lixo caminha para o colapso, com o aterro bem próximo de seu esgotamento —um acordo na Justiça permitiu a extensão do uso do lixão até 2028.
A cidade tem um dos piores índices de coleta de esgoto do país, e uma das maiores taxas de internação por doenças relacionadas a saneamento inadequado.
“A maioria da cidade se constituiu com ocupações espontâneas, sem planejamento. Há lugares, por exemplo, em que um caminhão não consegue percorrer as vielas para recolher o lixo”, afirma Henrique Pereira, diretor do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
“E enfrentamos os impactos das mudanças climáticas, com centenas de deslizamentos e alagamentos, pequenos muitas vezes, mas que se acumulam. Manaus precisa de um plano de adaptação a essas mudanças, que afetam mais os moradores de áreas de urbanização precária”, completa Pereira.
“Temos árvores, existem as reservas na área urbana, mas a arborização não está nas calçadas”, diz o diretor do Inpa. “Uma razão é o crescimento não planejado. Manaus é uma cidade sem calçadas, mesmo em áreas planejadas. E, muitas vezes, diante de campanhas de plantios, a cidade responde vandalizando as árvores.”
Na beira onde Waldomiro costuma ancorar seu barco, que vive rodeado de lixo nesse início de estiagem, uma tubulação despeja esgoto no igarapé. O despejo é feito de forma direta pelas casas que avançam mais no curso d’água.
“O esgoto vem lá de cima, e passa aqui embaixo [do piso da casa de madeira]. Quando chove, vira uma cachoeira medonha de esgoto. É assustador”, diz o vendedor de peixes. “Tem muito bicho morto também.”
O beco São Vicente não tem ruas, como os becos todos que contornam o igarapé do Educandos. Na cheia, pontes mais elevadas tentam garantir os acessos às casas. Dentro das casas, os moradores elevam o assoalho –o que chamam de maromba– para tentar escapar de enchentes.
Waldomiro espera ajuda do poder público para se mudar para uma casa com mais segurança e conforto, que esteja imune a efeitos dos ciclos amazônicos. A mulher dele tem esperança de permanecer no Educandos, mas numa área mais alta e segura.
“Criei meus filhos aqui. Colocava eles para vender peixe”, diz ela, enquanto limpa uma boa quantidade de pacu, jaraqui e aruanã na cozinha de casa.
Henrique Pereira (Inpa) afirma ainda que, por ser uma cidade indígena, as políticas públicas na capital do Amazonas precisam ser desenvolvidas nesse sentido.
Segundo dados do Censo 2022, do IBGE, Manaus é a cidade com mais indígenas no Brasil: são 71.713. E grande parte deles vive nas áreas mais periféricas, em condições ruins de moradia e sem acesso a serviços básicos.
“A cidade é rica, mas desigual, em que a produção econômica não se distribui na sociedade”, diz Pereira. “Somos uma cidade enorme, com muitos problemas em comum com muitas outras cidades brasileiras. As ocupações feitas têm difíceis soluções urbanísticas.”
Propostas dos pré-candidatos sobre ocupação e meio ambiente:
David Almeida (Avante), prefeito que tentará reeleição: O prefeito diz ter iniciado a maior política habitacional de Manaus, com 17 mil famílias beneficiadas até o fim de 2024. Segundo a assessoria do candidato, está em curso um bairro planejado, com 3.500 lotes. A gestão implantou uma guarda ambiental para “prevenir a indústria das invasões e degradação do meio ambiente”.
O gestor, que tentará a reeleição, afirma ter adotado um plano municipal de arborização com 20 mil mudas de árvores em 50 áreas da cidade. E diz ter ampliado o eixo turístico para as zonas norte e leste de Manaus com o “maior parque linear” da cidade, o Gigante da Floresta. Propostas para um eventual segundo mandato estão em construção, ainda segundo a assessoria.
Amon Mandel (Cidadania), deputado federal: O deputado propõe soluções integradas, por entender que a expansão das favelas e a ocupação de igarapés têm como razão a falta de programas habitacionais. O pré-candidato diz que, caso seja eleito, usará instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, como criação de conselhos e comitês com representantes da sociedade civil, empresariado e esferas de governo.
Mandel propõe regularização fundiária por meio de programas de usucapião urbano, com acesso a água potável, energia e saneamento. Outras medidas: reflorestamento dos igarapés, formação de corredores ecológicos e integração da vegetação aos espaços públicos. Ele defende ainda arborização da cidade e um “plano de ação climática” que busque zerar emissões.
Marcelo Ramos (PT), ex-deputado federal: O ex-deputado afirma que o crescimento desordenado de Manaus é resultado da falta de uma política de habitação e que muitas pessoas vivem em habitações precárias e em áreas de risco. Segundo ele, caso seja eleito, haverá parcerias com o governo Lula (PT) para o enfrentamento do problema.
Como solução para uma “cidade sem árvores”, o pré-candidato propõe o modelo de Medellín, na Colômbia, “que plantou 880 mil árvores e reduziu a temperatura da cidade em 2 graus”. Outra proposta é priorizar o transporte coletivo, dobrando a velocidade média da frota com obras para corredores exclusivos, sinalização inteligente e embarque mais tecnológico.
noticia por : UOL