Liguei a TV, entrei na Netflix, procurei “Um Tira da Pesada 4” na minha lista, apertei o play e vim correndo para o computador para dizer que começo a assistir ao filme determinado a gostar dele. Por mais que tenha lacração politicamente correta. Porque a trilogia original com Eddie Murphy no papel do detetive Axel Foley vive na minha memória como um momento especialmente feliz numa infância no geral melancólica. E ninguém vai me tirar isso. The heat is TUM TUM TUM TUM on!
Dez minutos mais tarde…
Primeira cena de perseguição. Eletrizante e deliciosamente inverossímil. Pausei o filme para vir aqui dizer isso e também para evocar a lembrança do meu pai e eu assistindo a “Um Tira na Pesada” (provavelmente o de 1987), os dois sentados no chão acarpetado da casa hoje em ruínas no Bairro Alto, ambos rindo e se empolgando verdadeiramente com a história. Meu pai não é muito de rir. Nem de se empolgar. Para você ter uma ideia de como o filme é bom e também do quão importante ele é para mim.
Meia hora mais tarde…
Ainda determinado a gostar de “Um Tira na Pesada 4”, neste momento interrompo o filme para vir aqui anotar que há algo de errado com ele. E não é a lacração – até aqui discreta e inofensiva. Mas ainda não sei identificar direito o que é. Tudo parece encaixadinho no lugar, e no entanto falta alguma coisa. Ou sobra alguma coisa?
Trinta segundos mais tarde…
Já sei!
Um segundo mais tarde…
Alegria. É isso o que está faltando no filme – do qual ainda estou determinado a gostar. O sorrisão canalha do Axel Foley. Aquele jeitão de levar a vida na maciota. O lado “malandro do bem”. Como se o detetive não estivesse correndo riscos nem caçando bandidos e fosse uma criança destemida se aventurando nos galhos mais altos da árvore. Em vez disso, o personagem virou não só uma cópia mais velha do original – o que explicaria a interpretação cansada de Eddie Murphy –; o personagem virou também um amontoado de arrependimento e ressentimento.
Uma hora e cinco filme adentro…
Ora, ora, se não é o adorável Serge! Num primeiro momento, a referência me faz sorrir. Mas o sorriso rapidamente dá lugar a um inegável constrangimento. Vergonha alheia, como dizem os jovens. Nada contra apelar para a nostalgia do espectador. Mas a repetição das mesmas piadas, inclusive com as mesmas palavras e entonações, soa como uma confissão de derrota. É como esses remakes de novelas que andam fazendo por aí: a indústria cultural agora vive de produtos reciclados.
Não dá para ignorar também o esforço de Bronson Pinchot, que interpreta o afeminado Serge, para conter os trejeitos do personagem. Trejeitos caricatos que há 40 anos rendiam risadas gostosas e óbvias, e que hoje em dia renderiam no mínimo um processo por homofobia.
Dez minutos mais tarde…
Não dá. Taylor Paige, a atriz que faz Jane, filha de Axel Foley, é ruim demais. Aliás, todas as interpretações de “Um Tira da Pesada 4”, até mesmo a dos atores veteranos, são no máximo nota 5. Joseph Gordon-Levitt é nota 2 – e isso só porque me lembro dele em “Third Rock from the Sun”. Kevin Bacon também está péssimo e, para piorar, agora estou com “Footloose” na cabeça (I’m turning loose, footloose, kick off the Sunday shoes).
A direção é preguiçosa. Conservadora no mau sentido. Os diálogos são duros, artificiais, burocráticos. Parece haver uma barreira entre os personagens. Mas já disse que estou determinado a gostar do filme e não mudei de ideia. Ainda.
Enquanto escrevo isso vejo mais uma cena em que o ressentimento entre pai e filha transborda. Penso no Zeitgeist, o espírito do tempo que Jung chamou de “inconsciente coletivo”. Então me ocorre que talvez seja assim que se relacionam as diferentes gerações que habitam este mundão doido ao mesmo tempo: na base do ressentimento, do rancor, do sacrifício que se faz a contragosto, prometendo vingança. Ou melhor, na base da incapacidade de perdoar. Claro que até o fim do filme esse conflito emocional vai se resolver. Vai, né? Diz que vai, por favor.
Cinco minutos mais tarde…
— Eu sou um homem cheio de camadas e complexo — diz o traficantezinho de araque. Finalmente uma piada excelente.
Digo, ótima.
Digo, boa.
Digo, razoável.
Digo, meh.
Vinte minutos mais tarde…
Pelo menos a mira dos bandidos continua tão ruim quanto nos três primeiros filmes. E antes que eu precise interromper o filme novamente, quero deixar registrado que até aqui a rancorosa Jane não deu uma risadinha sequer. Como podem ter criado uma personagem tão amarga para ser filha de Axel Foley?!
Dez minutos mais tarde…
Finalzinho melodramático, sentimentaloide e novelesco, seguido por mais uma daquelas homenagens que, malfeita, até parece um insulto: Axel Foley entra no carro com Taggart e Rosewood e convence os policiais outrora certinhos & caretas a irem a um bordel. A piada não funciona mais. Mas disse que estava determinado a gostar do filme e sou teimoso. Então.
noticia por : Gazeta do Povo