VARIEDADES

Programa de educação sexual traz feminismo, aborto e até ditadura para crianças argentinas

Quase duas décadas após sua implementação, o programa de Educação Sexual Integral (ESI) continua gerando controvérsia em torno de sua necessidade e obrigatoriedade nas escolas da Argentina. Em seu início, consistia em apenas uma ou duas palestras ao ano, mas durante o governo de Cristina Kirchner e Alberto Fernández tornou-se a protagonista da grade curricular e ganhou ramificações. Além da capacitação de professores, projetos e aulas temáticas, vários livros sobre gêneros, minorias, direitos humanos, identidades, feminismo, aborto, meio ambiente, ditadura, entre outros assuntos, foram entregues aos alunos — desde o nível infantil — e docentes.

Oficialmente a ESI é definida como “um espaço sistemático de ensinamentos e aprendizados que promove informação, conhecimentos e habilidades para consolidar a autonomia na tomada de decisões responsáveis a respeito da sexualidade, do cuidado do corpo e das relações interpessoais”.

A Lei 26.150 que estabeleceu a sua obrigatoriedade foi promulgada em outubro de 2006. Segundo ela, “todos os estudantes têm direito a receber educação sexual integral nos estabelecimentos de ensino públicos, estatais e privados das jurisdições nacionais, provinciais, da Cidade Autônoma de Buenos Aires e municipais”.

Dois anos depois, o Conselho Federal de Educação (CFE) aprovou a Resolução 45/08 que estabeleceu as Diretrizes Curriculares da ESI e determinou os conteúdos que deveriam ser ensinados desde o Nível Infantil até a Formação Docente. 

Em linha com essas decisões, a CFE aprovou a Resolução 340/18 que deixa estabelecidas algumas prioridades como oferecer um espaço específico de ESI na formação inicial dos professores; aprofundar nas escolas o enfoque integral da ESI e também nas normas que regulam a organização institucional; promover em todas as escolas a organização de uma equipe de professores de ESI; incluir conteúdos da ESI nos concursos para docentes; realizar em todas as escolas do país jornadas “Educar em Igualdade”, para a “prevenção e erradicação da violência de gênero”. 

No entanto, esta ênfase por parte do Estado em querer implementar a ESI desde o primeiro ano na escola preocupa os pais e as famílias argentinas que alegam tratar-se de uma forma de promover ideologias para as crianças enquanto a Argentina se posiciona nos últimos lugares nos rankings de avaliação escolar. 

Os estudantes argentinos ficaram em 66º lugar entre 81 países em matemática, e na 51ª posição em leitura no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), de 2022. De toda a América Latina, a Argentina só superou Guatemala, El Salvador, Panamá, Paraguai e República Dominicana em matemática. Nesta disciplina, sete em cada dez alunos não atingiram os “níveis básicos”.

Espaço para “refletir sobre o prazer sexual”

Nos últimos quatro anos, antes da chegada de Javier Milei à presidência, uma série de livros e guias foram entregues pelo Ministério da Educação da Argentina aos alunos e professores para abordar em aula as temáticas exigidas pela ESI. 

Na introdução de um de seus livros, “O Gênero da Pátria”, o termo gênero é definido como “uma construção simbólica que regula e condiciona a conduta das pessoas e das relações sociais. (…) A diferença do sexo — que se refere à dimensão biológica de uma pessoa — o gênero refere-se a uma construção social que se traduz em preconceitos e estereótipos sobre o masculino e o feminino, que se expressa na vida cotidiana em práticas socialmente enraizadas e reproduzidas a partir de costumes e tradições”.

O mesmo livro explica que a “perspectiva de gênero busca contribuir à construção de uma nova configuração subjetiva e social a partir da ressignificação da história, da sociedade, da cultura e da política com mulheres, e desde as mulheres. Esta visão reconhece a diversidade de gênero como um princípio essencial na construção de uma sociedade mais diversa e democrática”.

O livro ‘Juventudes’ propõe que as escolas habilitem um espaço para refletir a respeito do prazer sexual, “habilitando a construção de imaginários que quebrem com as imposições e obstruções impostas pelos mandatos de gênero”.

Teoria Queer

O feminismo ganha destaque nos livros ‘Identidades’ e ‘Gênero’, que fazem um apanhado sobre as ”três ondas” do feminismo fazendo menção à Gayle Rubin, Judith Butler, e Simone de Beauvoir, que defende a ideia de que “as mulheres são o produto de um processo sutil e invisibilizado que faz parecer como naturais e essenciais características e atributos que são o resultado de uma socialização transformada em corpo”.

Segundo o texto de ‘Identidades’, “a distinção entre gênero e sexo implica que a sexualidade é uma construção cultural”, e distingue as pessoas “cis” — as que se identificam com o sexo que lhes “designaram” ao nascer — das pessoas “trans” — as que desejam uma modificação com a ajuda de procedimentos técnicos, performativos o legais.

A masculinidade é um dos assuntos trabalhados em ‘Gênero’. Segundo o livro, “as definições patriarcais de ‘masculino’ também geram nos homens situações de desigualdade e dor”. Por isso, falam da teoria queer que “questiona a noção de gênero para propor uma matriz sexual e de gênero que tente desafiar a existência das identidades sexuais monolíticas e inamovíveis” e incitam as escolas a se queerizar para permitir e fomentar a que cada aluno “decida quem deseja ser, sem uma necessária captura identitária”.

Outra pauta é a do uso da linguagem neutra, “inclusiva” ou não binária que, de acordo com o texto, é uma forma de “garantir os direitos” permitindo que aqueles que não se identificam com algum gênero sintam-se confortáveis ao se comunicar. 

Ditadura e Agenda 2030

O livro ‘Memórias’, sob uma clara linha política, fala das ditaduras militares na Argentina e sobre o terrorismo de Estado fazendo ênfase em como, a partir de 2003, com o governo de Néstor Kirchner, houve um árduo trabalho em recuperar as memórias sobre as vítimas do golpe de Estado enquanto no governo de Mauricio Macri, de 2016 a 2019, houve esforços por “esconder” essa parte da história. Também acusam Macri de apoiar ideias “minoritárias” sobre a “distorção e negação dos crimes de lesa humanidade que ocorreram durante o terrorismo de Estado”.

Outra área abarcada pela coleção de livros da ESI é a do meio ambiente. O livro ‘Ambiente’ fomenta a aderência à Agenda 2030 e o cumprimento de seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre eles, “igualdade de gênero; energia limpa e acessível; redução das desigualdades; cidades e comunidades sustentáveis; consumo e produção responsáveis; ação contra a mudança global do clima”.

Por sua vez, o documento cita os incêndios na Amazônia, entre 2019 e 2020, durante a presidência de Jair Bolsonaro, e até propõe realizar uma análise com alguns artigos selecionados por eles.

“Micromachismos”

O Ministério da Educação da Argentina também publicou alguns livros de ESI em colaboração com a Iniciativa Spotlight, “uma aliança global da União Europeia e das Nações Unidos para eliminar a violência contra as mulheres e meninas de todo o mundo”. Esses textos, igual aos demais já mencionados, trabalham sobre a equidade de gênero questionando os “tipos de brinquedos, roupas e atividades que nos designam de acordo com nossos genitais”.

A questão dos “micromachismos” também é abordada e refere-se aos “comportamentos masculinos que buscam reforçar a ideia de superioridade em relação às mulheres e que, portanto, são machistas e constituem violências por motivos de gênero”.

Outro capítulo discute a Lei 27.610, que entrou em vigor em janeiro de 2021 e que permitiu o aborto, no livro descrito como “interrupção voluntária da gravidez (IVE, na sigla em espanhol)”. Com base nela, “as mulheres e pessoas com outras identidades de gênero têm o direito de interromper a gravidez até a décima quarta (14ª) semana, inclusive, sem necessidade de explicar os motivos de sua decisão”. A autorização por parte dos progenitores para realizar a IVE só será solicitada no caso de meninas menores de 13 anos. O capítulo inclui ainda jogos e dinâmicas que enfatizam o aborto como um direito que deve ser respeitado e normalizado.

A atual implementação da ESI na Argentina e no Brasil

Apesar dos rumores de que o presidente argentino Javier Milei iria eliminar a ESI, ainda não houve até o momento um pronunciamento oficial a respeito deste tema. Porém, desde a chegada do libertário à Presidência, a Secretária da Educação da Argentina — atualmente sob a organização do Ministério de Capital Humano — deixou de publicar a coleção de livros e materiais destinados às escolas.

Contudo as províncias também têm a obrigação de implementar os conteúdos e gerar os espaços necessários para o trabalho da ESI nas instituições educacionais. Elas podem optar pelos materiais que vão utilizar para este fim.

Em 16 de abril deste ano, a província de Buenos Aires, durante um dia inteiro, suspendeu todas as matérias para que os professores pudessem ensinar apenas os conteúdos da ESI e criou, em 2022, a Diretoria de Educação Sexual Integral (DESI), que já produziu mais de 21 livros — com mais de um milhão de exemplares cada — para distribuí-los por todas as escolas. O mesmo ocorre com as demais províncias, apesar da forte rejeição por parte da população.

No Brasil, o debate sobre a sexualidade nos materiais didáticos também se converteu em uma grande preocupação. De fato, este foi um dos assuntos mais comentados durante a campanha eleitoral de 2018, quando o então deputado Jair Bolsonaro denunciou alguns livros que estavam sendo utilizados nas escolas.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Ilona Becskeházy, mestre e doutora em política educacional, e ex-secretária de Educação Básica do MEC, confirmou que no Brasil existe já algo semelhante à ESI apesar de não ter esse nome. “Aparece bastante conteúdo de sexualidade, e não de aparelho reprodutor ou de cuidados com o corpo, saúde física e mental e higiene pessoal, que é o máximo que deveria ser incluído em materiais para a educação básica, nos materiais didáticos e paradidáticos do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) e das escolas públicas e privadas. Nas livrarias, já se vê também muito material supostamente para idade escolar, com conteúdo sexual que não deveria ser ofertado para essa faixa etária”, comentou.

A respeito do protagonismo que a educação sexual tem hoje em dia, cada vez mais, nas escolas, Becskeházy acredita que, “em primeiro lugar, para se ensinar a ler, escrever e a operar a matemática, são precisos textos, sequências didáticas, problemas e explicações diretas, sem distrações, sem ambiguidades conceituais. Assim, conteúdos polêmicos, ofensivos à moral, às opções sexuais e religiosas, por exemplo, nem deveriam estar incluídos no dia a dia escolar, para justamente não provocarem distração e discussões paralelas em sala de aula, como provocações e gozações”.

Para a doutora em política educacional, “quando for o caso de se fazer uma discussão, apresentação ou debate mediado pelo professor, os textos devem ter propósito, estrutura e vocabulário adequados para os fins pedagógicos a que se propõem. Mas é muito difícil, no Brasil, haver esse tipo de preocupação com a estruturação das aulas — objetivo, tarefa e avaliação. Aí é mais fácil trazer textos e assuntos polêmicos, deixar os alunos debaterem entre si de forma livre, supostamente desenvolvendo o espírito crítico. Além disso, a tentação para doutrinar mesmo, avançar com a agenda antifamília e promotora da doença mental e da dependência do estado é grande. Juntando-se a falta de capacidade didática dos docentes com a vontade de doutrinar, temos a receita perfeita para manter os alunos na mais completa ignorância”.

Para Becskeházy a abordagem desses temas deve ser realizada pelas famílias e de forma objetiva e científica, pela escola. “Os alunos já têm acesso a conteúdo sexual em seus aparelhos digitais. (…) As famílias devem estar atentas para orientar seus filhos sobre o mal que faz à saúde mental deles. Além disso, devem orientar explicitamente seus filhos a protegerem-se de assédio sexual de qualquer forma e a reportar imediatamente todos os casos que sofrerem ou que testemunharem”, alerta. 

“A escola deve se limitar a fazer o mesmo, e a ensinar aspectos científicos e neutros sobre aparelho reprodutor, saúde e afins, sempre combinando com os pais antes e jamais exibindo conteúdos, imagens ou narrativas com atos sexuais. Simplesmente esse tipo de conteúdo não é apropriado para o ambiente escolar, não ajuda ao aprendizado, não protege os alunos de oportunismo sexual, nem de gravidez indesejada ou de doenças sexuais”, explica a ex-secretária de Educação Básica do MEC.

noticia por : Gazeta do Povo

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