MUNDO

O conselho que Nelson Motta me deixou de gorjeta

Era 1999 e eu servia mesas em Nova York. Fui para lá estudar roteiro de cinema. Trabalhava como garçonete para me sustentar mas o que queria mesmo era arranjar um emprego como roteirista. Ou assistente de roteirista. Ou secretária de roteirista, assim pelo menos gravitaria no universo em que queria entrar.

Eu estava com 23 anos. A cabeça cheia de sonhos e planos. Mas a língua dificultava um pouco as coisas. Entre eu e um falante nativo, que poderia escrever diálogos melhores, todos acabavam, compreensivelmente, escolhendo o segundo. E assim se prolongava a minha rotina, cujo roteiro era entregar o cardápio, tirar o pedido e trazer os pratos.

Eu trabalhava no The Coffee Shop, um restaurante no West Village onde as mesas viviam cheias de artistas, jornalistas, gente da mídia. Um dos meus clientes era Nelson Motta. Eu não era das melhores garçonetes. Estabanada, derrubava bandejas. Sacava mal as rolhas. Esquecia de comandar um ou outro prato que depois acabava chegando atrasado até o cliente.

Acho que o Nelson não reparava. Ou reparava e relevava, dando um desconto para a compatriota que dava as costas para as suas outras mesas para bater papo com ele —e nisso, atrasar mais alguns pratos.

Numa dessas conversas, me lamentei. Dividi com ele a angústia que sentia de estar em outro país, distante da área em que queria atuar, dia após dia num emprego que não me aproximava, nem que fosse um pouquinho, do caminho que desejava.

Nelson perguntou quantos anos eu tinha. Depois deu aquela sua conhecida risada, a de um menino. Por que tanta pressa? Me perguntou, lembrando que a vida era longa. Eu deveria relaxar e curtir o que a vida me trouxe.

Um tempo depois, acabei arrumando um emprego de redatora numa agência perto da Sexta Avenida. Aprendi muito escrevendo roteiros de propaganda em inglês mas nada que eu não tenha aprendido logo depois, quando voltei ao Brasil e me empreguei, sucessivamente, como redatora e roteirista de tevê.

Hoje, quando faço aquele exercício tão comum na vida adulta, o “olhar para trás”, penso que não foi nada mal ser uma péssima garçonete no West Village.

Na época, além de alimentar o sonho de ser roteirista, também alimentava o de ser escritora. E foi graças à minha experiência como garçonete, somada ao que aprendi na infância, no restaurante dos meus pais, que pude criar a protagonista do meu primeiro romance, a garçonete ladra de “Tudo pode ser roubado” —não que seja preciso viver para fabular, mas às vezes ajuda.

Esse romance me deu muito mais do que eu podia imaginar. Me abriu as portas de uma grande editora. Me trouxe alguns prêmios e, veja só, me ofereceu a perspectiva de ser roteirista na sua adaptação para o cinema.

Sem falar no Nelson que, depois que deixei o The Coffee Shop, nunca mais vi. Só fui reencontrá-lo 20 anos depois, quando ele me procurou, contando que leu um dos meus livros. Mais um ponto para a garçonete, me trazendo seus inesperados louros.

E mesmo que a garçonete não tivesse me trazido nada. Mesmo que, na prática, ter trabalhado tanto tempo no restaurante só tivesse garantido o meu ganha-pão, o que já é muito.

O despretensioso conselho de Nelson de despretensioso não tinha nada: carregava no seu âmago um não à vida utilitária, à ideia de que tudo deve ter um propósito o tempo todo. Distraídos venceremos, escreveu Leminski. Errando pedidos, atrasando pratos e chorando no banheiro, de certa forma, a minha garçonete venceu.


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noticia por : UOL

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