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Livro 'Puro' revive um Brasil que quase mergulhou na eugenia

Entre as alucinações do presente e fantasmas do passado nasce “Puro”, um romance curtíssimo que pesa uma tonelada. Ambientado nos anos 1930, a obra faz questão de nos lembrar que a história não é uma linha reta em direção à irrevogável civilização.

Nara Vidal conta a história de uma pacata cidade fictícia do interior de Minas Gerais, onde notáveis cidadãos estão decididos a fazer história com H maiúsculo. A ideia é transformar Santa Graça em modelo para o resto do país nos quesitos higiene e pureza racial.

Construído quase como um roteiro, o texto revela o que algumas personagens pensam e, a depender da posição social que ocupam, falam. O recurso lança luz sobre a hipocrisia conservadora e traz à tona o verdadeiro protagonista: o desejo missionário da burguesia da cidadezinha de salvar o mundo dos negros e doentes, seja como for.

No Brasil de Getúlio Vargas, no caldo da disseminação das teses racialistas, da ascensão do fascismo europeu, do crescimento da Ação Integralista Brasileira (AIB) e do Movimento Eugênico Brasileiro, a falácia da raça pura se une ao ideal de construção do país do futuro, para o qual a mistura racial e a existência de pessoas com deficiência seriam um grave impeditivo.

Para quem não sabe o que foram esses movimentos; a ação integralista nasceu em 1932 da junção de partidos e grupos de extrema direita que flertavam desde o final da Primeira Guerra. Assustadoramente popular, seu foco era combater o comunismo e a democracia, demandas que, segundo eles, enfraqueciam a nação —que estaria melhor se todas as raças cooperassem ao invés de “brigar entre si”.

Essa cooperação, no entanto, caberia sempre e apenas quando cada uma das “raças” obedecessem ao seu lugar “natural” na sociedade. O famoso lema da AIB, “Deus, Pátria e Família”, foi copiado mais tarde, em mais de uma ocasião da história política brasileira.

Além das diretrizes da AIB, aparecem no livro menções ao Boletim Eugenista, publicado pelo Movimento Eugênico, que se tornou famoso na mesma época e teve grande influência política, chegando a pautar um artigo na constituição de 1934, pela defesa da “educação eugênica” e a “luta contra os venenos sociais”, que abre o livro.

Entre as ideias mais absurdas dos ditos intelectuais envolvidos, estava a esterilização de mulheres não brancas. Uma prática médica racista cujos resquícios perambulam até hoje pelo Brasil e que é costurada com genialidade pela autora, no decorrer da trama.

Mulher branca, nascida em Guarani (MG), Vidal é formada em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Nesta obra, ela faz o caminho inverso de quem por aí afirma confortavelmente não ter lugar de fala para destrinchar as agruras do racismo e… fala.

Em entrevistas, a escritora defende o direito de tratar o tema na literatura, já que essa é uma questão que a incomoda como cidadã atenta aos caminhos do país. A atitude —que deveria ser o mínimo em espaços e trabalhos preocupados em construir um mundo melhor para todos, mas não é —vira ponto importante a favor de Vidal e principalmente, do romance.

Às pessoas que não estão familiarizadas com os horrores da história brasileira, o roteiro que se desenrola na cidade mineira pode chocar um bocado, mas a verdade é que as narrativas mais incômodas vêm de um fio puxado da realidade, seja da sua infância, das suas pesquisas ou da vergonhosa história passada e, infelizmente, também recente do país.

Ainda que, logo no começo, seja possível pressupor alguns rumos que a narrativa deve tomar, a autora faz viradas inteligentes e cortes bruscos garantindo desconforto e surpresa, asco e ódio, risadas sarcásticas e lágrimas.

É muito difícil tirar a cara do livro, uma vez que você mergulhou na história. As pouco mais de 90 páginas de “Puro” são capazes de grudar você no sofá, fazer você se esquecer debaixo de um sol quente, tropeçar na caminhada apressada até o metrô. Leitura classuda.

noticia por : UOL

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