Uma visão mágica coroou o primeiro dia da conferência Psychedelic Culture 2024, do Instituto Chacruna, em São Francisco: o ato de dança Flor Perfeita, de Jodi Lomask. Entre acrobática e poética, ofereceu também metáfora eloquente das tensões e possibilidades que marcam o chamado renascimento psicodélico.
O encontro de dois dias no Brava Theater atraiu 446 inscritos. Um total de 87 palestrantes e debatedores se apresentaram em dezenas de painéis divididos em três salas. (A convite do Chacruna, ONG dirigida pela antropóloga brasileira Bia Labate, participei em duas das discussões.)
Lomask explicou que uma flor perfeita é aquela que possui tanto órgãos de reprodução femininos quanto masculinos. As linhas do aparelho que ela desenhou e usou para as evoluções evocam genitálias humanas esquematicamente fundidas, a representar uma autossuficiência que a dançarina e coreógrafa precisou encontrar durante o isolamento da pandemia, conforme narrou.
Será preciso bem mais que acrobacias para efetivar a proposta da conferência, um diálogo entre povos indígenas que fazem uso ancestral de plantas e fungos psicoativos e a biomedicina que retomou já no século 21 pesquisas sobre uso terapêutico de substâncias como dimetiltriptamina (presente na ayahuasca) e psilocibina (de cogumelos ditos “mágicos”).
Labate disse na abertura que está longe da realidade a ideia de uma “comunidade psicodélica global” abrangendo povos indígenas, grupos religiosos, xamãs, psiconautas e cientistas. Todos têm seus direitos e demandas, mas alguns parecem ter mais sucesso que outros em vê-los respeitados.
“Estigmatização, patologização e criminalização têm trabalhado de mãos dadas para ameaçar direitos de minorias, perseguir populações tradicionais e, com certeza, explorar seus territórios e recursos”, disse. “Isso também levou ao encarceramento em massa de não brancos [people of color].”
Para ela, o renascimento psicodélico não deve ter apenas uma versão medicalizada, ou um movimento de elite. Labate repeliu a noção de uma “indústria” psicodélica, “povoada de especialistas fajutos, oportunistas, charlatães, líderes de seitas, abuso potencial e mercantilização desavergonhada”.
A palavra mais pronunciada na conferência talvez tenha sido “diálogo”, sob a premissa de que povo indígenas, guardiões das plantas e fungos por séculos ou milênios, precisam tomar parte na conversa. Um intercâmbio difícil, decerto, pois ao que parece muitos grupos tradicionais estão mais abertos a ele do que as equipes acadêmicas e empresas de pesquisa com psicodélicos.
A conferência do Chacruna teve palestrantes indígenas como a brasileira Adana Omágua Kambeba, uma das mais aplaudidas. Na sua apresentação individual, uma das poucas na reunião, a médica formada pela UFMG contou que está finalizando dieta rigorosa de sete anos para se tornar também pajé.
Com essa bagagem, e apesar da delicadeza sugerida por sua figura delgada, ela pegou pesado com não indígenas que se autointitulam xamãs. Não é porque frequentaram rituais indígenas com ayahuasca na Amazônia, mesmo por meses a fio, que conquistaram o direito de pavonear-se como pajés, ou o que seja.
Na mesa sobre xamanismo indígena que moderei, ela emocionou a plateia narrando a situação que viveu no hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, quando um bebê indígena deu entrada com um quadro de sepse. Médicos tentavam convencer pais e pajé presente de que precisavam entubar a criança e dar-lhe antibióticos.
Diante da recusa terminante, mandaram chamar Adana. Ao entrar, todos voltaram os olhos para ela, a última esperança. Como médica, porém, ela sabia que o bebê estava para morrer.
Entoou então um “rezo” (oração) e, conversando “do jeito indígena”, conseguiu autorização dos pais e do pajé para os procedimentos da medicina ocidental. A criança, ao final, se salvou –os indígenas certos de que foi por causa do “rezo”, e os médicos, por força de sua intervenção.
São raros os casos de encontros felizes como esse, assim como são raros os indígenas com a dupla formação de Adana e a capacidade de transitar entre as culturas de cura. O movimento psicodélico precisa, sem dúvida, de mais hibridismos como esse. Com tal adubo, flores menos imperfeitas poderão vingar.
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AVISO AOS NAVEGANTES – Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.
Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem “Cogumelos Livres” na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.
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noticia por : UOL