VARIEDADES

Twitter Files Brasil: executivo tentou promover encontro entre Felipe Neto e chefe de segurança

Felipe Neto Rodrigues Vieira é um nome importante no espaço
público brasileiro desde que ascendeu no YouTube no começo da década de 2010
criticando o gosto musical de adolescentes e usando palavras muito duras contra
Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores. Em uma guinada
ideológica, tornou-se cabo eleitoral de Lula na corrida de 2022 que levou o
petista ao terceiro mandato como presidente.

Este realinhamento culminou no convite do governo Lula para
que Felipe Neto integrasse um grupo de trabalho do Ministério de Direitos
Humanos e Cidadania, em fevereiro de 2023, dedicado ao “combate ao discurso de
ódio e ao extremismo”, com foco especial na regulação de redes sociais. No
mesmo mês, Felipe falou à Unesco a respeito do mesmo tema. O grupo foi
apelidado de “Ministério da Verdade” por críticos do governo.

Neto é fundador do Instituto Vero, ONG parceira do Programa
de Enfrentamento à Desinformação do TSE. A instituição também patrocinou
eventos realizados pelo TSE contra a desinformação.

A Gazeta do Povo, em parceria com os jornalistas
Michael Shellenberger e David Ágape, revela que Felipe Neto tinha acesso
privilegiado ao Twitter, ao ponto de um funcionário sênior ter proposto uma
conversa particular entre ele e Yoel Roth, na época chefe de segurança da rede
social. Esse convite foi feito no contexto das sanções impostas pela moderação
de conteúdo do Twitter ao jornalista Allan dos Santos, hoje exilado nos Estados
Unidos.

Chefe de políticas públicas do Twitter pede a
chefe de segurança atenção especial a Allan dos Santos e encontro com Felipe
Neto

Em 14 de junho de 2021, o então chefe de políticas públicas
do Twitter, Fernando Gallo (que hoje ocupa cargo semelhante no escritório
brasileiro da rede social TikTok), mandou um email para Yoel Roth, chefe de
segurança da rede social. O assunto: Gallo pedia que Roth em pessoa
investigasse a conta do jornalista Allan dos Santos no Twitter, de forma
“holística”. O jornalista “tem sido muito problemático para nós no Brasil” e
cada vez mais complicado de lidar, comentou Gallo, detalhando que Santos
“insiste em postar coisas muito controversas sobre a Covid e outros conteúdos
abusivos”.

Gallo queria que Roth — envolvido na decisão de banir a
conta de Donald Trump — banisse permanentemente a conta de Santos e que mudasse
de ideia a respeito de manter no ar um tweet
em que o jornalista “especulava a respeito do estado de saúde de alguém,
fazendo uma conexão entre uma vacina e problemas de saúde, portanto criando
dúvidas a respeito da segurança da vacina”, nas palavras do chefe de políticas
públicas da rede social. O tema não é novo nos Twitter Files: nos Estados
Unidos, a rede social colaborou com o governo e think tanks para remoção de conteúdo crítico às políticas de
enfrentamento da pandemia, o que no país viola a Primeira Emenda da
Constituição.

A decisão de Roth de não apagar o tweet de Santos irritou sobremaneira Felipe Neto, que na época
cultivava uma imagem de defensor de lockdowns
e outras medidas sanitárias. Como um “pedido número 2”, no mesmo email, Gallo
disse que o youtuber “tem sido um antagonista e oponente do atual governo” de
Jair Bolsonaro e “um forte crítico do Twitter pelo que ele considera leniência
da nossa parte em aplicar as nossas regras sobre Covid”. Em outras palavras,
Felipe Neto fazia pressão por uma abordagem mais dura na remoção de conteúdo.

“Ele está bem bravo”, informou Gallo, se referindo a Neto,
“e ficando cada vez mais barulhento, ao ponto de começar a tuitar a respeito de
conversas dele conosco”. Há aqui, portanto, uma sugestão de acesso privilegiado
do influenciador para fazer lobby de suas causas dentro do Twitter, na
forma de conversas privadas que Gallo temia que fossem expostas.

Gallo então convidou Roth para mais uma conversa com Neto:
“embora haja alguns riscos, nós e a equipe de comunicações queríamos ver se
você estaria aberto a uma conversa em off com ele, para que ele sinta
que foi ouvido” e “tomara,
que as tensões se atenuem um pouco”.

Yoel Roth aceita o convite e analisa em detalhe
tweet de Allan dos Santos

Com cópia para a diretora jurídica Vijaya Gadde, Yoel Roth
respondeu seis horas depois. “A resposta fácil primeiro: ficaria contente em
conversar com o Felipe Neto”, disse o chefe de integridade do Twitter. “Vamos
seguir em um fio [de mensagens] separado a respeito da logística disso, mas se
você me disser que esta é uma conversa de alto valor para eu participar, faço
com prazer”, completou, adicionando um símbolo de sorriso.

Na mesma mensagem de 2021, Roth então estuda detalhadamente
o caso de Allan dos Santos. Ele admite que o caso estava “uma bagunça” porque a
equipe de moderação de conteúdo, utilizando um sistema de “bilhetes” (como se
faz em atendimento ao consumidor em sites), contou errado o número de violações
de Santos.

Sobre o tweet cuja
permanência online irritou Felipe Neto, Roth deu o contexto que a publicação se
referia à parada cardíaca que o jogador de futebol dinamarquês Christian
Eriksen sofreu em 12 de junho de 2021, dois dias antes da troca de mensagens.
Roth disse que “toda a narrativa” a respeito da parada cardíaca era
“desafiadora”. “Por um lado, as nossas políticas não cobrem a especulação a
respeito do estado de saúde de indivíduos ou efeitos colaterais individuais em
potencial da vacinação”, por outro lado, o jogador “não foi vacinado, então o tweet é enganoso a respeito de se há uma
possibilidade de que a vacinação
poderia ter contribuído para o problema”.

A publicação de Allan dos Santos cairia numa “área
cinzenta”, pois “o autor especula a respeito de coágulos sanguíneos e a
miocardite (ambas narrativas associadas às vacinas da Covid), mas nota
explicitamente que não há uma conexão direta à vacina. Não atende ao critério
estrito que temos para a incitação ao medo com base em uma alegação falsa
explícita”, explicou Roth, que termina sua análise do tweet recomendando
a aplicação de um rótulo nele e uma suspensão da conta por causa das outras
violações. Múltiplos estudos apontam a miocardite e coágulos
sanguíneos como efeitos colaterais verdadeiros das vacinas
,
geralmente em baixa frequência, com risco que varia de vacina para vacina e por
grupo demográfico. A palavra “narrativa”, portanto, especialmente como
justificativa para sanções à expressão de usuários nas redes sociais, não dá ao
assunto a seriedade merecida.

Yoel Roth expressa preocupação com a vitória judicial
temporária obtida por Allan dos Santos, na época, contra a censura no YouTube.
“Eu me preocupo que a desordem inerente desse problema poderia tornar um
desafio explicar a base de uma ação de suspensão, se o fizéssemos agora”.

Equipe jurídica do Twitter analisa o caso Allan
dos Santos

Após tratativas internas da equipe jurídica do Twitter, no
dia seguinte os consultores jurídicos sêniores Rafael Batista e Diego de Lima
Gualda emitiram seu parecer a respeito de Allan dos Santos e a proposta de
encontro com Felipe Neto.

Os especialistas recomendaram que era melhor deixar o
sistema de contagem de violações “seguir seu curso, especialmente porque temos
preocupações no Brasil no que toca o litígio questionando suspensões de contas,
dado o foco amigável aos consumidores das cortes locais”, ou seja, tribunais de
instância inferior, que tenderiam a favorecer os reclamantes e não a rede
social, sobre a qual imporiam “o ônus de apresentar em juízo cópias do conteúdo
infringente”.

Batista e Gualda acusaram Santos de manipular o sistema da
rede social com intenção de espalhar desinformação, “mas em um contexto no
qual, por alguma razão, falhamos em aplicar de forma estrita as políticas
relevantes de maneira apropriada”. Para ele, o jornalista “inclui em seus tweets mais controversos frases com um
ar de especulação, quando de fato são divulgadas de propósito para enganar”. Os
consultores também expressaram preocupação com a vitória de Santos contra o
YouTube e o que ela significava para o Twitter, que por isso tinha que dar um
forte fundamento de violação dos termos de serviço ao puni-lo.

Finalmente, os conselheiros jurídicos sêniores propuseram
que o Twitter podia “tirar vantagem” de decisões do Supremo Tribunal Federal
pela suspensão global de uma das contas de Allan dos Santos, além de aproveitar
“materiais midiáticos” que corroboravam “o perfil de teórico da conspiração” do
jornalista. Os especialistas fizeram também menção indireta a tirar proveito
das investigações da CPI da Covid contra Santos, expressando desconfiança de
que ele já estava morando nos Estados Unidos por “turismo de difamação” (libel
tourism
), ou seja, para escapar das leis de seu país de origem, e cogitam
se poderiam encaixar o comportamento dele de criar novas contas como “má fé no
uso do serviço”. Há, contudo, uma diferença de tratamento da liberdade de
expressão entre os dois países, como descobriu o Ministério da Justiça de
Flávio Dino em uma reunião com o FBI em que um representante disse que os
supostos delitos de Allan dos Santos eram “só palavras”, como noticiado pela
Folha de S. Paulo.

De fato, foi possível tirar vantagem mais tarde de decisões
vindo do STF, como mostra um email de uma advogada do Twitter (não sênior, por
isso aqui anonimizada), de 6 de junho de 2022, em que ela contou que o ministro
Alexandre de Moraes havia ordenado a suspensão de seis contas de Allan dos
Santos, além da coleta de dados associados a elas. Moraes também queria
monitoramento para evitar criação de novas contas. A advogada não questionou a
ordem e disse que “vamos informar que, se identificarmos quaisquer novas contas
relacionadas, vamos denunciá-las para o Supremo Tribunal Federal”. Até hoje, as
contas de Santos permanecem suspensas no Brasil, apesar da promessa de Elon
Musk, dono do X (antigo Twitter), de reverter as ordens de Moraes. A mesma
mensagem inclui o caso da censura imposta por Moraes ao partido comunista PCO
no contexto do Inquérito das Fake News.

“Felipe Neto é alguém em quem não podemos
confiar para manter conversas em off

Batista e Gualda terminaram seu email de 15 de junho de 2021
recomendando que Yoel Roth não encontrasse Felipe Neto. O encontro “apresenta
riscos adicionais na nossa estratégia”, pois “Felipe Neto é alguém em quem não
podemos confiar completamente para manter uma conversa em off” (fora dos registros oficiais e dos olhos do público). Os
consultores alertaram que o influenciador poderia tentar tirar proveito tanto
do cenário do banimento de Allan dos Santos quanto da permanência do perfil.

Os dois conselheiros jurídicos expressaram estar cientes de
que o encontro, caso acontecesse, criaria “uma oportunidade para qualquer
narrativa que alegue que o Twitter é enviesado por abrir um canal específico de
comunicação com Felipe Neto que não está aberto ‘para o outro lado’, que o
Twitter não está seguindo seus próprios procedimentos/políticas de maneira
consistente”, em vez disso “respondendo a uma pressão” de um usuário famoso.
Também alertaram que o encontro poderia ser usado por Allan dos Santos em juízo
contra eles. “Então, na nossa opinião, os riscos de ter essa conversa com ele
[Neto] ultrapassam os benefícios em potencial”, concluíram. Como deixou clara a
mensagem inicial de Fernando Gallo, contudo, o canal de comunicação com Felipe
Neto já estava aberto.

Pelos arquivos do Twitter, não foi possível determinar se o
encontro entre Yoel Roth e Felipe Neto aconteceu.

Gallo agora trabalha para o TikTok, que firmou acordo com o TSE para
remoção de conteúdo

Fernando Gallo deixou o Twitter e agora é diretor de
políticas públicas do TikTok no Brasil. Em artigo publicado no blog do
aplicativo chinês em fevereiro de 2022, Gallo noticiou uma parceria com o
Tribunal Superior Eleitoral “para combater a desinformação”. A parceria rendeu
frutos: como noticiou a agência Reuters, entre 8 e 15 de janeiro de 2023,
na esteira do vandalismo à Praça dos Três Poderes, o TikTok removeu mais de 10
mil “conteúdos golpistas” de seus servidores. O TikTok sofre agora um
escrutínio dos parlamentares americanos, e é possível que a empresa controladora
do aplicativo, ByteDance, seja obrigada a mudar o aplicativo de mãos pela
relação de rivalidade entre a ditadura comunista da China e a democracia
liberal americana.

A reação de Allan dos Santos e o outro lado

A Gazeta do Povo conversou com Allan dos Santos,
antecipando as revelações desta edição dos Twitter Files Brasil. O
jornalista comentou que ele foi “o único jornalista brasileiro que Trump
retuitou. Não duvido que essa perseguição tenha aumentado após isso”.

A respeito de tweets que provocaram repetidas sanções do
Twitter por suposta violação dos termos de serviço, Santos explicou que “eu sei
bem quando uso um discurso retórico, dialético, apodíctico ou apenas faço uma
piada. Não me arrependo do que digo, pois sei bem como usar a linguagem, mesmo
ciente de que os jornalistas hoje em dia não sabem diferenciar qualquer dos
quatro discursos humanos. Não há com o que me arrepender”.

De fato, um dos tweets de Santos que chamou a atenção de
Gallo era uma piada chula, mas comum nas redes sociais, que funciona como uma
“pegadinha” para curiosos. Outro tweet, contudo, parecia ridicularizar Jean
Wyllys por sua homossexualidade. Porém, não são todos os LGBT que concordam com
a criminalização de palavras ofensivas a eles. O escritor desse segmento Jamie
Paul, em artigo publicado pela Gazeta do Povo, por exemplo, defendeu que
o
Brasil erra ao querer prender e censurar os homofóbicos
”. O artigo original
de Paul foi publicado pelo site do Instituto Americano de Bissexualidade,
fundado nos EUA em 1998.

A reportagem entrou em contato com Felipe Neto, Gallo,
Batista e Gualda, que ainda não se manifestaram. O espaço permanece aberto para
sua manifestação.

Contribuiu para esta reportagem o jornalista David Ágape.

Confira as capturas de tela dos emails internos do Twitter aqui.

noticia por : Gazeta do Povo

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