VARIEDADES

Por que somos péssimos em prever o futuro (e não sabemos tanto assim sobre o passado)

Autor do best-seller ‘A Psicologia Financeira’ (2021), o investidor e escritor americano Morgan Housel costuma recorrer ao bom humor para dar lições atemporais sobre dinheiro, profissão, família, satisfação.

Em ‘O Mesmo de Sempre: Um Guia para o que Não Muda Nunca’ (2023), lançado no Brasil pela Editora Objetiva, ele dá outra dica valiosa: em vez de tentar prever o futuro, devemos olhar para as verdades universais que permaneceram consistentes ao longos do séculos.

No trecho a seguir, Housel elenca e analisa uma série episódios da História que pegaram de surpresa até os planejadores mais inteligentes do mundo.

Todo mundo sabe perfeitamente que as pessoas são péssimas em prever o futuro.

Mas
isso deixa escapar uma importante nuance: somos muito bons em prever o futuro,
exceto pelas surpresas — que tendem a ser tudo o que importa.

O
maior risco é sempre um evento que ninguém antecipa, por­que se não o
antecipamos não estamos preparados para ele; e, se ninguém está preparado para
ele, os prejuízos serão muito maiores quando ele chegar.

Eis
uma breve história sobre um sujeito que aprendeu isso da forma mais difícil.

Antes
de se lançar ao espaço a bordo de foguetes, os astronautas da Nasa realizaram
testes em balões de ar quente a altas altitudes.

Um
voo de balão no dia 4 de maio de 1961 levou o americano Victor Prather e outro piloto a quase 35 mil metros de
altura, to­cando
no limiar do espaço. O objetivo era testar o novo traje es­pacial da Nasa.

O
voo foi um sucesso. O traje funcionou às mil maravilhas. Enquanto o balão
descia, já em baixa altitude, Prather decidiu abrir o visor do capacete, ao que
parece pensando em tomar um pouco de ar fresco.

Ele
pousou no oceano como planejado, à espera do helicóptero que o içaria. Mas
houve um pequeno contratempo: no momento em que conectava o balão ao cabo do
helicóptero, Prather escorregou e caiu no mar.

Isso
não deveria ser nenhum problema, e ninguém no helicóptero de resgate entrou em
pânico. O traje espacial era à prova d’água e flutuava.

Mas,
como Prather abrira o visor, ficara exposto. A água entrou no traje e ele se
afogou.

Pense em quanto planejamento é necessário para lançar alguém ao espaço. Quanto conhecimento, quantas contingências. Quantas conjecturas e precauções. Cada detalhe é contemplado por milhares de especialistas.

Provavelmente nunca existiu uma organização mais centrada no planejamento do que a Nasa; ninguém vai para a Lua cruzando os dedos e torcendo pelo melhor. Todo risco concebível tem um plano A, um plano B e um plano C.

Mas,
ainda assim — a despeito de todo o planejamento —, um pequeno detalhe que
ninguém havia considerado se revelou um convite à catástrofe.

Como afirma o consultor financeiro Carl Richards, “risco é o que sobra depois que você acredita ter pensado em tudo”.

Eis
a verdadeira definição de risco: o que sobra depois que nos preparamos para os
riscos que conseguimos imaginar.

Risco
é o que não enxergamos.

Vejamos alguns exemplos de notícias de grande impacto: Covid-19, 11 de Setembro, Pearl Harbor, Grande Depressão. A caracte­rística em comum desses eventos não é necessariamente terem sido grandes e sim provocado surpresa, tendo escapado ao radar de praticamente todo mundo até acontecerem.

Dificilmente poderíamos formular melhor lei econômica do que “Depois da alta vem a baixa”. Basta estudar um pouco de História e as calamidades que se seguiram ao crescimento dos anos 1920, do fim da década de 1990 e da virada do milênio parecem mais do que óbvias. Parecem inevitáveis.

Em outubro de 1929 — auge da bolha financeira mais absurda da história e às vésperas da Grande Depressão —, o economista Irving Fisher afirmou a uma plateia que “os preços das ações atingiram o que parece ser um patamar permanentemente alto”.

Vendo
esse comentário hoje, achamos graça. Como um sujeito tão inteligente pôde ser
tão cego para algo tão inevitável? Se seguirmos a regra de quanto mais
descontrolado o crescimento, pior a recessão, a Grande Depressão deveria ter
sido óbvia.

Mas
Fisher era um cara inteligente. E não estava sozinho.

Em
uma entrevista anos atrás, perguntei a Robert Shiller, ven­cedor do prêmio
Nobel por seu trabalho com bolhas financeiras, sobre a inevitabilidade da
Grande Depressão. Ele respondeu:

Bom, ninguém previu. Zero. Ninguém. Claro que alguns diziam que o mercado de ações estava inflacionado. Mas isso significava que havia uma depressão a caminho? Uma depressão de uma década? Ninguém afirmou isso.

Pedi a alguns
historiadores da economia para mencionar o nome de alguém que tivesse previsto
a depressão, e o resultado foi zero.

Isso não saiu da minha cabeça. Eis-nos aqui atualmente, desfru­tando da visão em retrospecto, sabendo que a quebra após os vibran­tes anos 1920 era óbvia e inevitável.

Mas, para os que vivenciaram o período — pessoas para as quais a década de 1930 era um futuro ainda por ser descortinado —, ela foi tudo menos isso.

Duas coisas podem explicar
algo que parece inevitável mas não foi previsto por quem viveu na época:

• Ou todos no passado eram ofuscados pela ilusão.

• Ou todos no presente se iludem com a visão em retrospecto.

Somos loucos de achar que só a primeira é
verdadeira.

A Economist — uma revista que admiro — publica todo mês de janeiro uma previsão do ano. O número de janeiro de 2020 não menciona uma palavra sobre a Covid-19. Seu número de janeiro de 2022 não menciona uma palavra sobre a invasão russa da Ucrânia.

Isso
não é uma crítica: em ambos os casos, foram eventos impos­síveis de antecipar
no momento em que as edições foram planejadas, nos meses anteriores à
publicação.

Mas
essa é a questão: as maiores notícias, os maiores riscos, os eventos mais
significativos são sempre os que não esperamos.

Em outras palavras: a incerteza econômica raramente é maior ou menor; o que muda é apenas o grau de ignorância das pessoas em relação aos potenciais riscos.

Perguntar quais são os maiores riscos é como perguntar o que você espera que irá surpreendê-lo. Se tivésse­mos conhecimento disso, faríamos algo a respeito e os tornaríamos menos arriscados

Os maiores perigos são aqueles que a imaginação é incapaz de conceber, e é por isso que o risco não pode jamais ser dominado.

Posso garantir que as coisas vão continuar assim no futuro. O maior risco e a notícia mais importante dos próximos dez anos serão algo sobre o qual ninguém está falando hoje.

Não importa em que ano você esteja lendo este texto, essa verdade permanecerá. Posso dizê-lo com confiança porque sempre foi assim. Nossa incapacidade de prever as coisas é justamente o que as torna arriscadas.

Até para algo tão imenso
quanto a Grande Depressão, muitos permaneceram cegos diante do que estava
acontecendo, mesmo com o processo já bem encaminhado.

A Depressão, como sabemos
hoje, começou em 1929. Mas, quando consultados em 1930 sobre o que consideravam
ser o maior problema dos Estados Unidos, os bem informados membros da Liga
Econômica Nacional citaram, nesta ordem:

  1. Administração da Justiça
  2. Lei Seca
  3. Desrespeito à lei
  4. Crime
  5. Aplicação da lei
  6. Paz mundial

E em 18º lugar… desemprego.

Um
ano depois, em 1931 — dois anos após o início do que hoje chamamos de Grande
Depressão —, o desemprego subira para o quarto lugar apenas, atrás da Lei Seca,
da administração da Justiça e da aplicação da lei.

Foi isso que tornou a Grande Depressão tão pavorosa: ninguém estava preparado para ela porque ninguém a esperava.

Assim, foi difícil para as pessoas lidarem com ela tanto em termos financeiros (pagando suas dívidas) quanto em termos psicológicos (o choque e a tristeza da perda súbita).

Grande
parte dessa ideia reside em aceitar quão limitada pode ser nossa visão do que
acontece no mundo.

Em 1941, durante a inauguração de sua biblioteca presidencial, Franklin Delano Roosevelt olhou para as prateleiras e riu.

Um re­pórter perguntou qual era a graça. “Estou pensando em todos os historiadores que virão aqui em busca de respostas para suas per­guntas”, disse ele.

Há tanta coisa que não
sabemos. E não apenas sobre o futuro, mas também sobre o passado.

A História conhece três coisas: 1) o que foi fotografado, 2) o que alguém escreveu ou registrou e 3) as palavras ditas por aqueles que os historiadores e jornalistas quiseram entrevistar (e que concor­daram em ser entrevistados).

Qual porcentagem de tudo
importante que já aconteceu se en­quadra numa dessas três categorias? Ninguém
sabe. Mas é minús­cula. E todas as três sofrem de interpretação equivocada,
incom­pletude, maquiagem, mentiras e memória seletiva.

Quando nossa perspectiva
sobre o que acontece e aconteceu no mundo é limitada desse jeito, subestimamos
facilmente o que não sabemos, as demais coisas acontecendo no momento e o que
poderia dar errado e não estamos sequer imaginando.

Pense numa criança feliz,
alegremente entretida com seus brin­quedos, sorrindo ao sol que banha seu
rosto.

Na cabeça dela, está tudo ótimo. A seu ver, o mundo começa e termina no ambiente imediato — tem a mamãe por perto, o papai também, os brinquedos à mão, a barriguinha cheia.

Até onde ela sabe, a vida é perfeita. Ela dispõe de toda informação de que precisa.

As coisas de que não faz ideia são incalculavelmente maiores. Na mente de uma criança de três anos, um conceito como geopolítica é simplesmente inimaginável.

A ideia de que a elevação das taxas de juros prejudica a economia, os motivos que levam alguém a precisar de um salário, o que significa uma carreira e até mesmo os riscos do câncer estão todos bem longe dos olhos e do coração.

Como afirma o psicólogo Daniel Kahneman, “A ideia de que as coisas que não enxergamos possam refutar tudo aquilo em que acreditamos simplesmente não nos ocorre”.

O mais louco é que os adultos
são igualmente cegos para o que acontece no mundo.

Há um vídeo perturbador de um
noticiário local de Nova York na manhã de 11 de setembro de 2001, minutos antes
dos ataques terroristas. Começa assim:

Bom dia, são oito horas da manhã e a temperatura é de 18 graus. Terça-feira, 11 de setembro. […] Vai fazer um belo dia de muito sol em toda a cidade. Um esplêndido dia de setembro, sem dúvida. A tempe­ratura à tarde será de 27 graus…

O risco era o que eles não esperavam.

***********

Por definição, não há muito
que possamos fazer a respeito. É uma dessas coisas que simplesmente são o que
são.

É impossível se precaver
contra algo que não somos capazes de imaginar, e, quanto mais acharmos que já
imaginamos tudo, maior será o nosso choque diante de uma situação que não
consideramos.

Mas duas coisas podem nos pôr
numa direção mais útil.

Primeiro, pense no risco da mesma forma que o estado da Ca­lifórnia pensa nos terremotos. Eles sabem que um dos grandes vai acontecer, mas não exatamente quando, onde ou em que grau.

As equipes de emergência permanecem a postos a despeito de não haver nenhuma previsão específica. Os edifícios são projetados para suportar terremotos que podem demorar ainda um século ou mais para ocorrer.

[O analista de riscos] Nassim Taleb afirma: “Invista em se preparar, não em prever”. Isso vai ao âmago da questão.

O risco é um perigo quando pensamos que exige uma previsão específica antes de começarmos a nos preparar para ele.

É melhor ter expectativas de que o risco chegará, embora não se possa saber quando ou onde, do que se fiar exclusivamente em previsões — em geral absurdos completos ou comentários sobre fatos bem conhe­cidos.

Expectativa e previsão são coisas diferentes, e, num mundo onde o risco é o que não enxergamos, a primeira é mais valiosa.

Segundo, perceba que, se estiver se preparando apenas para os riscos que consegue conceber, você sempre estará despreparado para os que não é capaz de enxergar.

Assim, nas finanças pessoais, a quantidade certa de poupança é quando nos parece ser um pou­co demais — quando parece excessiva, quando nos traz um ligeiro estremecimento.

O mesmo vale para a quantidade de dívidas que você acha que é capaz de administrar — seja qual for a quantia que você imagina, na realidade ela é provavelmente um pouco menor.

Sua preparação não deveria fazer sentido em um mundo no qual os maiores eventos históricos teriam soado absurdos antes de acontecerem.

Na maior parte das situações, quando alguém é pego despre­venido, não é por falta de planejamento.

Às vezes os planejadores mais inteligentes do mundo, mesmo trabalhando incansavelmente, mapeando todos os cenários imagináveis, acabam por fracassar.

Eles se planejaram para tudo que fazia sentido antes de serem atingidos por algo que jamais teriam imaginado.

Em seus espetáculos, Harry
Houdini costumava convidar o homem mais forte da plateia a subir ao palco para
dar o soco mais forte que conseguisse em sua barriga.

Houdini era um boxeador
amador e dizia ao público ser capaz de aguentar o soco de qualquer homem
praticamente sem piscar.

O truque combinava com aquilo
que as pessoas adoravam em seus números: a ideia de que seu corpo pudesse
sobrepujar a física.

Após uma apresentação, em
1926, Houdini convidou um gru­po de estudantes aos bastidores para conhecê-lo.
Então um deles, chamado Gordon Whitehead, aproximou-se sem aviso e desferiu
vários socos em sua barriga.

Ele não pretendia machucar
Houdini. Apenas achou que repro­duzia o desafio que acabara de ver o
ilusionista realizar.

Mas Houdini não tinha se
preparado como fazia no palco, onde flexionava o plexo solar, firmava a postura
e prendia a respiração. Whitehead pegou-o desprevenido.

No dia seguinte, Houdini
acordou dobrando-se de dor. Seu apên­dice rompera, muito provavelmente devido
aos socos de Whitehead.

E foi assim que Houdini
morreu.

Talvez nunca tenha havido em toda a história alguém com maior talento para sobreviver a grandes riscos.

Preso por correntes e ati­rado em um rio? Sem problema. Enterrado vivo? Brincadeira de criança.

Houdini podia escapar em segundos, pois sempre tinha um plano. Mas ser golpeado por alguém sem estar preparado? Esse era o maior risco.

O que não antecipamos sempre é.

Conteúdo editado por:Omar Godoy

noticia por : Gazeta do Povo

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