Daniel Kahneman, psicólogo israelense laureado em outra área, a economia, faleceu nesta quarta-feira (27) aos 90 anos. Radicado nos Estados Unidos, ele morava havia muitos anos na ilha de Manhattan, em Nova York, e lecionava principalmente na Universidade Princeton, desde 1993. Sua esposa, Barbara, preferiu não divulgar o local ou causa do óbito.
A quatro mãos, com seu colaborador Amos Tversky (1937-1996),
o principal feito intelectual de Kahneman foi derrubar, nos anos 1970, a ideia
do Homo economicus — o ser humano interpretado nas premissas da economia
como um ser perfeitamente racional ao tomar decisões, incluindo as econômicas.
Os dois são considerados pioneiros da área da economia comportamental, e seu
trabalho foi reconhecido em 2002 com um prêmio de ciências econômicas em
memória a Alfred Nobel, do Banco Central da Suécia.
O legado de Kahneman para a psicologia e a economia
No bestseller “Rápido e devagar: duas formas de
pensar” (Objetiva, 2012), Kahneman explica que até os anos 1970 os cientistas
sociais “na maior parte aceitavam duas ideias sobre a natureza humana”. A
primeira é que “as pessoas são geralmente racionais e seu pensamento é
normalmente são”. A segunda é que “as emoções como o medo, o afeto e o ódio
explicam a maior parte das ocasiões nas quais as pessoas rompem com a
racionalidade”.
Os dois israelenses lançaram dúvidas sobre ambas as ideias,
investigando erros sistemáticos, ou vieses, que fazem parte da estrutura da
mente humana. Então não seria o caso que as emoções são culpadas por turvar a
razão, mas que há “erros no projeto do maquinário da cognição”. Além disso, a
psiquê operaria em dois modos: um Sistema 1, mais rápido, automático,
instintivo, para primeiras impressões e mais sujeito aos vieses; e um Sistema
2, mais lento e dispendioso, que coincide com o que se chama popularmente de
“queimar as pestanas” e sai do habitual e do automático.
A ideia popular de que é possível influenciar o sexo de um
bebê em gestação, por exemplo, seria derivada de um viés cognitivo que nos leva
a interpretar padrões aleatórios como se tivessem um nexo causal com fatores
externos. Ao ver uma sequência de nascimentos de, por exemplo, seis meninos
seguidos da mesma mãe, tendemos a pensar (com o Sistema 1) que isso deve ter
uma causa diferente do acaso em comparação com uma sequência em que os sexos
parecem se alternar em intervalos variados.
Por que esses erros acontecem? Uma razão é que “presumir a
causalidade poderia ter vantagens evolutivas”, ou seja, vantagens para a
sobrevivência e a reprodução. “Estamos automaticamente atentos para a
possibilidade de que o ambiente mudou. Os leões aparecem na planície a tempos
aleatórios, mas seria mais seguro notar e responder a um aumento aparente na
taxa de aparecimento de bandos de leões”, ainda que o padrão real seja ao acaso
em vez de aumento, explicou o psicólogo — com esse tipo de explicação, além de
integrar a psicologia à economia, ele também contribuía para uma conversa
interdisciplinar com a biologia, algo raro para cientistas sociais.
“Os últimos dias me ensinaram que praticamente todas as
pessoas que eu sigo têm algo em comum: a admiração por Daniel Kahneman”,
resumiu o cientista da computação e ensaísta Paul Graham, no X. Um seguidor do
ensaísta relatou que a leitura de “Rápido e Devagar” salvou a vida de sua
esposa: “tínhamos que escolher entre dois tipos de cirurgias e estávamos
pendendo para escolher um tipo com base em aversão a riscos. Aí eu abri o livro
na página dedicada à tomada de decisões, foi crucial para procurar por uma alternativa
melhor”.
Em seu livro “Psych” (Ecco Press, 2023; sem edição no
Brasil), Paul Bloom, professor emérito de psicologia da Universidade Yale, diz
que a área do estudo dos vieses cognitivos “tem seu próprio Freud — na verdade,
dois deles: os amigos e colaboradores Amos Tversky e Daniel Kahneman”. A
influência de ambos levou trabalhos posteriores a proporem listas de até mais
de 100 vieses, mas Bloom não acredita que a lista é tão extensa. Em parte,
porque desde a década passada a psicologia sofreu
uma crise de fracasso de reprodução de resultados de estudos, quando eles
eram refeitos. O especialista reduz a lista de vieses para cinco, mas o
trabalho de Kahneman sobrevive à crise e ainda é relevante.
O filósofo canadense Joseph Heath, no livro “Enlightenment 2.0” (“Iluminismo 2.0”, em tradução livre, 2014, sem edição no Brasil), faz um esforço de recuperar o ideal de racionalidade humana após as revelações de Kahneman. “A natureza traiçoeira do viés cognitivo é que é teu próprio cérebro que está fazendo isso contigo”, reconhece Heath, “de forma que não é possível discernir pela introspecção quando está acontecendo” a indução ao erro. Só saber que temos vieses, e quais eles são, não é suficiente para sermos mais sábios ou racionais, ele aponta. A solução de Heath é conhecida de terapeutas cognitivo-comportamentais: mudar o ambiente. Assim como lápis e papel nos tornam mais racionais e menos sujeitos a erro na matemática, podemos criar ambientes mais condutivos à racionalidade, que depende de processos lentos no cérebro individual e macetes culturais acumulados em comunidades comprometidas com o pensamento rigoroso.
A juventude de Daniel Kahneman
Quando Kahneman nasceu em Tel Aviv, em 1934, não havia um
Estado de Israel, mas um Mandato Britânico da Palestina. Seus pais, judeus
lituanos, estavam apenas visitando, o lar da família era em Paris. O pai
pesquisava química para uma indústria. O psicólogo contou que as raízes da
família na França eram rasas, pois não se sentiam seguros — o que só foi
confirmado com a invasão de Hitler nos anos 1940.
Foi quando a Segunda Guerra ainda rugia, em 1941, que o
menino de sete anos desenhou seu primeiro gráfico. Eram números da fortuna da
família, em declínio vertiginoso na esteira do Holocausto. “Nunca saberei se
minha vocação como psicólogo resultou da minha exposição precoce à fofoca
interessante”, brincou Kahneman em um
artigo autobiográfico para a página do Prêmio Nobel, “ou se meu interesse
na fofoca era uma indicação de uma vocação que estava brotando. Como muitos
outros judeus, suponho, cresci num mundo que consistia exclusivamente de
pessoas e palavras, e a maior parte das palavras tratavam de pessoas”.
Nas fofocas da mãe, algumas pessoas eram melhores que
outras, “mas as melhores estavam longe de perfeitas e ninguém era simplesmente
ruim”. As histórias eram cheias de ironia e todas tinham dois lados ou mais.
Na França invadida, quando menino, ele era obrigado a usar
uma estrela de Davi na lapela e respeitar o toque de recolher às 18 horas. Uma
vez, topou por acaso com um soldado da SS nazista, após a hora limite, porque
se distraíra demais brincando com um amiguinho cristão. O soldado usava um
uniforme preto que ele aprendeu a temer. Ao se aproximar, com passo apertado,
foi abordado pelo nazista. O homem o pegou no colo, lhe deu um abraço, e falava
emocionado em alemão. Ele abriu a carteira, mostrou a foto de seu filho, e lhe
deu dinheiro. “Fui para casa com mais certeza que nunca que minha mãe tinha
razão: as pessoas eram infinitamente complicadas e interessantes”, refletiu.
Aos 17 anos, Israel já existia e lhe cobrou que servisse às
forças armadas. O rapaz, mais inclinado ao intelecto que à fisicalidade, conseguiu
conciliar o serviço à sua paixão pela escrita. Foi então que decidiu que seria
psicólogo. O teste de orientação vocacional confirmou: psicologia era a
primeira recomendação — economia era a segunda. Em dois anos, Kahneman
completou a graduação em psicologia na Universidade Hebraica de Jerusalém, com
uma importante especialização em matemática que marcaria o rigor quantitativo
de suas pesquisas depois, mas “era medíocre em matemática”, confessou.
Com 20 anos, ele já estava aplicando seus conhecimentos como segundo-tenente nas Forças de Defesa de Israel. Mas foi no final da década seguinte, nos anos 1960, quando lecionava na universidade onde se formou, que Kahneman conheceu seu colaborador mais novo, Amos Tversky. Dos oito artigos conjuntos que publicaram durante a década de 1970, cinco foram citados por outros pesquisadores mais de mil vezes. Tversky morreu de câncer em 1996. Sua esposa era a mesma Barbara, agora viúva duas vezes. Kahneman deixou também dois filhos de seu primeiro casamento, quatro enteados e sete netos.
noticia por : Gazeta do Povo