MUNDO

As fotografias que revelam passado oculto das favelas brasileiras

Como se estivesse em uma praia artificial, o bebê descansa sobre uma toalha estendida entre montes de areia, próximos a uma igreja em reforma.

Sua mãe, Ana Martins de Oliveira, tinha vergonha de ser fotografada, mas gostava de armar cenários para retratos.

Quando os cliques se sucediam dentro de casa, forrava com tecido as tábuas do barraco, emprestando novas cores aos flagras ali registrados.

Eram crônicas visuais, imersas em dezenas de monóculos – pequenas cápsulas, quase herméticas, em cujas bases se acondicionam imagens, acessíveis pela lente embutida na extremidade oposta, bem mais estreita.

Dona Ana, uma senhora negra, guarda os objetos em um armário, sem nunca perder o hábito de manuseá-los – ainda hoje, espia as fotografias no fundo daquelas superfícies plásticas.

O ritual evoca uma série de recordações: seu nascimento, em 1943; a infância e a adolescência numa fazenda, trabalhando em regime análogo à escravidão; a chegada a Belo Horizonte, no início da vida adulta; os encontros com amigos e familiares; as brincadeiras prediletas dos filhos; e o cotidiano no Aglomerado da Serra, favela em que reside há cinco décadas, na zona sul da capital mineira.

Habituada a narrar essas memórias aos netos, Dona Ana as examinaria junto a estudiosos interessados nas suas experiências pessoais.

Ao receber a visita de uma equipe que circulava pela comunidade em 2015, colhendo depoimentos dos moradores para um projeto de história oral, a ex-faxineira sugeriu aos integrantes que apreciassem seus tesouros.

Então, o ritual se repetiu. A caixa de monóculos foi retirada do guarda-roupa e, os artefatos circularam de mão em mão, sendo erguidos na direção dos olhos e posicionados contra a luz.

Uma após a outra, as lembranças ganhavam forma: festas de aniversário; jogos de bilhar; torneios de futebol; sete homens numa laje; uma garotinha prestes a chutar sua bola verde-amarela; José Teófilo, marido de Dona Ana, tomando cerveja e comendo petiscos num botequim.

“Foi uma epifania”, relata à BBC News Brasil o artista visual Guilherme Cunha.

“Em uma fração de segundo, vinte anos de pesquisa imagética se passaram como um filme dentro da minha cabeça. Em tudo que eu já havia estudado, não consegui identificar nada que se assemelhasse àquelas imagens.”

Os apetrechos eram janelas para um novo universo pictórico, até então negligenciado por instituições arquivísticas.

“Perguntei à Dona Ana de onde vinha aquilo tudo, e ela me disse que um grupo de homens perambulava com máquinas nas ruas da comunidade, oferecendo retratos aos moradores.”

Adão Serralheiro, fotógrafo indicado pela proprietária dos monóculos, recepcionou a equipe com café e biscoitos; entretanto, já havia abandonado o ofício – e, uma semana antes, jogara no lixo o próprio acervo.

Por indicação dele, Cunha abordaria João Mendes, dono de um pequeno estúdio na Serra, e seu amigo, Afonso Pimenta. Ambos tinham coleções preservadas.

“Eu me preocupava com as pessoas que vinham aqui”, declara Mendes à reportagem, sentado na mesma banqueta em que acomoda a clientela para retratos 3×4.

“Às vezes, o cara pedia uma nova cópia da foto que tinha feito comigo, e eu dizia que tudo bem. Era só ir lá no arquivo e caçar os negativos pra ele. Em algum momento, eu acabava achando.”

Na casa de Pimenta, dezesseis caixas armazenam todo o seu legado: “Isso se chama zelo profissional”, atesta o fotógrafo.

“Meu cliente se vai, e continuo trabalhando pra família. Trinta anos depois do cara ter morrido, ainda recebo encomenda. Por isso, nunca joguei um negativo fora.”

Estima-se que os acervos contenham ao menos 250 mil retratos, produzidos entre a década de 1960 e o início do século 21 – são cliques intimistas, eternizando matrimônios, batizados, velórios e celebrações.

Em conjunto, as fotografias estabelecem um panorama inédito da história recente brasileira, desnudando o Aglomerado da Serra pelo olhar dos próprios cidadãos que ali viveram.

O registro de suas identidades, lutas e conquistas é também um microcosmo das ânsias e desejos que impulsionam as favelas de todo o Brasil.

“Tradicionalmente, essas populações eram retratadas apenas em documentos civis”, afirma Cunha.

“Mas na foto do RG e da carteira de trabalho, os sujeitos se limitam aos papéis exercidos dentro de uma hierarquia social.

A obra de João Mendes e Afonso Pimenta se baseia num processo oposto, embora se aproprie das mesmas ferramentas.

Cada retrato deles é uma exaltação do indivíduo, de suas dimensões culturais e afetivas”.

Em março, tais imagens serão compiladas no livro Retratistas do Morro (Editora Primata).

O volume, organizado por Cunha, abrange 146 trabalhos e surge na esteira de um reconhecimento artístico internacional.

Depois de uma exposição no Sesc Pinheiros, em São Paulo, e outra na Fundação Clóvis Salgado, no Centro de Belo Horizonte, Mendes e Pimenta chegaram ao Peabody Essex Museum, nos Estados Unidos, e à Aperture Magazine, uma das mais tradicionais revistas de fotografia do mundo, editada em Nova Iorque.

Nos últimos meses, a dupla teve obras adquiridas pela Pinacoteca de São Paulo, pela Biblioteca Nacional Francesa e por Kenneth Montague, o maior colecionador de arte afrodiaspórica do Canadá.

“Defendemos que essas imagens não se tornem um fetiche”, observa Cunha.

“São visões da realidade brasileira que permaneceram ocultas por séculos. Quando elas vêm à tona, a gente fica paralisado por sua beleza, e um grande encantamento inunda todos nós. Mas o apelo visual não é a única dimensão desse trabalho. Os retratos formam um campo em torno do qual orbitam inúmeras memórias pessoais. Juntas, elas formam um gigantesco imaginário coletivo.”

O mistério da Kodak

Cerca de 50 mil pessoas habitam o Aglomerado da Serra, segundo estatísticas da Prefeitura de Belo Horizonte.

É a maior favela de Minas Gerais, tendo surgido no final do século 19, com a chegada dos trabalhadores que ergueram a capital do Estado.

Desde então, uma parcela significativa de seu contingente populacional é formada por imigrantes.

Eles chegam pelo norte de São Paulo, pelo sul da Bahia ou, como ambos os fotógrafos, pelo interior mineiro.

Afonso Pimenta nasceu em São Pedro do Suaçuí, pequeno município no Vale do Rio Doce, e vive em Belo Horizonte desde 1963.

Aos 9 anos, assentou-se com a madrinha no Cafezal, uma das oito vilas que compõem a favela.

Por toda a vida, exerceu ofícios paralelos à fotografia: inicialmente, vendia esterco pelas ruas da cidade; depois, foi gari, feirante, metalúrgico, leão de chácara, instrutor de artes marciais e operário da construção civil.

O primeiro contato com a fotografia se deu na adolescência, quando um colega de escola lhe apresentou uma Kodak Instamatic, câmera de baixo custo voltada ao público amador. O rapaz abriu a portinhola do aparelho, deixando seu diafragma à vista. “Nem flash dava para colocar”, lembra Pimenta.

“Mas naquele tempo, quem tinha máquina, fosse qual fosse, era intitulado rei. E como os mistérios de Deus são grandes e inexplicáveis, pouco depois conheci um cara que furtava coisas. Ele disse que eu estava muito bonito, na crista da onda, e que ia vender umas roupas para mim.”

A transação envolvia uma jaqueta jeans e três calças boca de sino.

“Elas batiam aqui em cima, cobrindo o umbigo, quase chegando no peito. Mal precisava vestir camisa, só as pantalonas já davam conta de todo o figurino. Era uma vermelha, uma amarela e uma preta, a única que servia para o meu tamanho. O cara me garantiu que eu ia ficar boy demais.”

Um brinde, contudo, surpreenderia o jovem freguês – uma Kodak idêntica à que vira no colégio.

“Quitei as roupas direitinho, e ele disse que eu podia pegar a máquina para mim. Isso me deixou eufórico, porque o outro rapaz tinha falado que todo fotógrafo ficava milionário, que eles compravam carro, casa, apartamento. E meu maior sonho era dar um bom padrão de vida para minha mãe, que ainda estava no interior”.

À noite, Pimenta não conseguiu dormir. Por toda a semana, aguardaria ansiosamente pelo embolso do salário. Nas horas de folga, frequentava parques, observando o trabalho dos futuros colegas.

“Eles punham as crianças num burrinho e tiravam fotos, tipo lambe-lambe. Aí, meu filho, eu ia só pensando comigo mesmo… Com essa Kodak aqui, as calças que comprei, bonito do jeito que eu estou, vai ser sucesso!”.

No quinto dia útil, a espera chegou ao fim. Pimenta obteve dois ou três caixotes de filme 126mm, e graças a eles um novo hábito se instituiu: andar a esmo com a máquina na mão, apresentando-se como fotógrafo aos transeuntes das avenidas. Ocasionalmente, arranjava serviço na porta de alguma igreja.

“O pessoal olhava para mim com aquela cara de quem não gostou, e eu ali, insistindo, até ser contratado. Batia a foto na entrada e marcava de entregar depois.”

A Kodak Instamatic, explica ele, é uma câmera leve, compacta, ideal para dias ensolarados e retratos ao ar livre. Na falta de um tripé, recomenda-se o improviso – muros, postes, árvores e carros são válidos como bases de apoio.

“O segredo todo tá aí, no enquadramento”, diz. “Tem que segurar a maquininha bem firme, não pode tremer. Para mim, cada pose perdida era um desastre.”

Esforços à parte, a fotografia ainda não passava de um hobby.

“Eu era da resenha, ficava na ‘malocagem’. Saía do expediente de varrição lá na prefeitura e ia direto para esquina, vendo o que de errado eu podia fazer”.

Só então, Pimenta voltava para casa – um barraco de cômodo único e 48 metros quadrados. Dali a alguns meses, os quinze ocupantes seriam expulsos numa violenta ação de reintegração de posse.

“E nisso, fui acolhido pela mãe do João. A gente já se conhecia de vista, e aquele cara era uma unanimidade, todo mundo gostava dele. Mas ele não queria estar perto de ninguém, pois não se misturava com os avacalhados feito eu.”

Mensagem no fusquinha

Filho de agricultores, João Mendes nasceu em Iapu, município de 12 mil habitantes a 250 quilômetros da capital mineira.

Aos 11 anos, mudou-se com a família para a cidade de Ipatinga, no Vale do Aço – ali, fixaram-se na rua do Buraco, o primeiro núcleo de pobreza urbana da região.

Mendes subsistia como ambulante, vendendo laranjas e picolés nos arredores da Usiminas, uma das principais siderúrgicas do país.

Em 1965, conseguiu seu primeiro emprego numa loja de serviços fotográficos, o Foto Badi. “Foi graças a essas 3×4 que tudo começou”, diz.

“Meu patrão me explicou no estúdio como fazia e tal. Era revelar o filme, botar as fotos na arara e deixar escorrendo, até secar. Aí ele dava umas retocadas e vinha com os negativos. Eu ficava na câmara escura, tentando, tentando. Uma hora, deu certo”.

Os primeiros cliques, porém, ocorreram numa cerimônia de casamento.

“Eu estava na loja, o patrão tinha saído para almoçar. Um cara veio sem avisar, me chamando para bater foto de noiva. Perguntei se era urgente, ele disse que sim, que estava todo mundo na casa do rapaz, o juiz só me esperando para começar aquilo tudo. Tirei 24 chapas e não perdi nenhuma, pois cuidava para focalizar direitinho. Uma foto sem foco não vale nada.”

Logo, as tarefas se diversificaram: Mendes era enviado para registrar aniversários, shows, bailes carnavalescos – e gente morta.

“Isso é muito doloroso”, afirma. “O patrão tinha convênio com a delegacia e mandava eu sair com os homens para fotografar os acontecimentos tristes do pedaço. Eu via acidente, batida de carro, arrancava uns caras do fundo do rio. O primeiro cadáver que peguei estava todo acabado, só na pele. Por causa de um incômodo com o cheiro, o posto médico enviou aquele corpo para o necrotério. Foi lá que tirei as chapas.”

Em 1968, Mendes chegaria a Belo Horizonte. Com dezessete anos e alguma experiência, integrou-se ao Foto Industrial, na região do Barreiro, sudoeste da cidade. Para complementar sua renda, oferecia serviços às trabalhadoras da Rua Guaicurus, a maior zona de prostituição do estado.

“Eu saía ao deus-dará e acabava fotografando as meretrizes, coisas meio perversas nas boates do centro. Até que baixou a polícia. Os homens estavam querendo descobrir quem é que fazia esses retratos por lá.”

Cinco anos depois, pediu demissão e abriu seu próprio estúdio – o Foto Mendes, ainda em funcionamento. Trata-se do mais antigo estúdio do gênero nas proximidades da Serra.

“Estou há meio século no mesmo endereço”, diz. “Você não faz nem ideia de quanta gente já sentou nesse banco. O cara fica aqui, na parede, e eu do lado de lá, com a máquina. Essa favela tinha duas mil famílias segurando meu comércio.”

Hoje, as demandas se atrelam à documentação civil – cédulas de identidade e carteiras de trabalho, principalmente.

Um discreto sorriso costuma brotar no rosto dos fregueses que Mendes fotografa para tais registros.

“Quando chega algum adulto por aqui, sempre pergunto se tirei retrato dele na creche. Quase todos dizem que sim”.

Por décadas, Mendes atendeu às escolas públicas da comunidade, produzindo fotos de beca. Nelas, crianças de fisionomia alegre ostentam canudos para celebrar o momento da formatura.

“Você bate um papo com o menino, pede para ficar quietinho. O diploma às vezes cai, escorrega, nem todos conseguem segurar na posição certa. Mas a gente vai levando no banho-maria, e o resultado sempre sai bom”.

O esmero e a paciência lhe valeram, durante os anos 1970, solicitações inspiradas no star system da época: as mulheres desejavam se parecer com atrizes do cinema e da TV; Roberto Carlos, Jerry Adriani e outros cantores românticos eram os preferidos da clientela masculina.

“Isso acontecia demais”, explica. “O sujeito vinha aqui e me pedia foto de perfil. Eu sentava ele de lado, o cara ajeitava o cabelinho, as sobrancelhas e o bigode. Daí fazia pose de galã, imitando capa de disco. Dizia para eu caprichar, que a foto era para a namorada.”


Mendes utilizava uma Yashica Mat, câmera japonesa de preço mais acessível, e tripés improvisados com sarrafos de madeira; sem dinheiro para comprar refletores, os substituía por tochas de papelão.

“O Afonso era meu vizinho, passava sempre por aqui. Tinha um jeitão diferente, cabelo black power. E a polícia não gostava desses caras, né? Aí minha mãe pediu que eu desse uma chance pra ele. Mas o Afonso machucava as fotos tudo, com aquela mão cascuda. Quando trabalhou no primeiro casamento, foi uma amargura danada. Bateu um filme de 36 poses, e o padre não saiu em nenhuma.”

A prática, contudo, elevaria a autoestima do jovem assistente.

“Quando me chamavam de fotógrafo, eu só faltava botar um ovo”, lembra Afonso Pimenta. “Eu ficava assim, acelerado. E aos poucos, fui percebendo que ganharia minha sobrevivência dignamente, mas rico eu não tinha condições de ficar.”

Foi numa igreja, observando um colega mais velho, que a realidade veio à tona.

“O homem devia ter uns 65 anos, e pensei que fosse milionário, depois de tanto tempo mexendo com isso. Quando ele saiu, resolvi espiar do lado de fora. Naquela época, o carro melhor que tinha na praça era o Alfa Romeo, o top dos tops. Mas o cara entrou nervoso num fusquinha amarelo, a lataria balançava toda.”

Sobre o vidro traseiro do automóvel, um adesivo advertia Pimenta com a seguinte epígrafe: “Mesmo sendo fotógrafo, hei de vencer”.

Pausando o tempo

À caça da própria clientela, Pimenta largou o Foto Mendes para trabalhar como autônomo.

“Parti pro corpo a corpo”, diz. “Não aguento ficar quieto, esperando. Sou muito ansioso e gosto de ver o resultado acontecer”.

Trazendo a máquina sob o pescoço e uma reserva de filmes na bolsa, dirigia-se a botecos, onde clicava partidas de sinuca – durante o trajeto, era convidado por moradores a fotografar o interior de suas residências.

Assim, um burburinho se espalhou pela comunidade: donas de casa exibiam retratos às amigas, e maridos contratavam o serviço para honrar a gravidez das esposas.

Nessas imagens, mulheres amamentam os filhos, casais se abraçam na cama, famílias inteiras se reúnem na cozinha ou na sala de estar. Móveis e eletrodomésticos eram propositalmente enquadrados para criar uma atmosfera de abundância – estantes, vitrolas e aparelhos televisivos são alguns dos elementos mais recorrentes nas composições visuais.

Gradualmente, surgia um modus operandi.

“Procuro conversar com o cliente primeiro, para saber se tem um sorriso preso ou espontâneo, se fotografa melhor do lado direito ou esquerdo. Cabe ao fotógrafo capturar a aura positiva de cada pessoa, para que ela se torne linda.”

Em 1986, buscando negativos num laboratório, Pimenta encontrou Misael Avelino, fundador da Rádio Favela. Dele, recebeu a incumbência de fotografar bailes black na Pontifícia Universidade Católica (PUC).

Os eventos, promovidos pelo líder comunitário aos sábados, tinham início às 11h da noite e se estendiam até as 5h da manhã, atraindo centenas de jovens da periferia ao Diretório Central dos Estudantes.

“Aquela música bate forte, ecoa no ouvido”, relata o fotógrafo. “Ficavam as ruas tudo cheio de gente, dançando, namorando, e tinha o caminhão que eles punham lá fora para fazer dublagem, desfile de moda, essas coisas.”

Pimenta levava, semanalmente, quatro filmes de 36 poses, vendendo por três cruzeiros os retratos que produzia ao som de funk, soul e disco music. Logo nas primeiras semanas, dezenas de garotas o procurariam para adquirir fotos de um sósia de Michael Jackson que se apresentara no caminhão. O astro de Thriller era um dos cantores favoritos do público, quase empatando com James Brown; ao fim da noite, predominavam Tim Maia e Marvin Gaye.

“Aí o DJ punha uma seletiva de músicas lentas, e cada um procurava seu cacho. Era a hora do argumento, né? Os amores nasciam ali, naquela hora dançante. O casal se beijava? Eu batia o primeiro flagra. O cara fazia um passinho bom no meio da pista? Mais um flagra! Hoje, fotografo a quinta geração.”

Pimenta sente-se envaidecido ao ser abordado por filhos e netos de velhos clientes. Em sua memória, permanecem cristalinas as circunstâncias que envolvem certas imagens.

O casamento de Mariângela, por exemplo, ocorreu num sábado. A noiva, entretanto, quis ser fotografada no domingo, sozinha – já na segunda-feira, devolveria o vestido, e precisava de um retrato individual para enviar a familiares no interior.

Ela aparece no centro do quadro, sobre o chão de terra batida, a brancura da sua roupa se opondo ao céu anil. Em meio a cercas e telhas, nove crianças, três mulheres e um vira-lata caramelo a observam.

“Ela casou assim, na parafernália, tudo emprestado”, recorda Pimenta. “Na entrada do beco, falei pra gente ir até o parque, mas ela não quis, pois as cocotas de famílias conceituadas estavam lá embaixo e iam ficar de gozação. Então, falei que a gente ia tirar a foto ali mesmo.”

Também num sábado, Renatinha completou seis anos. Chovia, porém. Mais de vinte pessoas se acotovelaram na minúscula sala de seu barraco, cantando Parabéns a Você, antes que ela soprasse a vela do bolo, ladeado por uma garrafa de Coca-Cola, outra de Guaraná Antarctica, e uma porção de pastéis.

Ao redor da mesa, todos parecem felizes – especialmente a aniversariante, com laços azuis no cabelo.

“Desde pequena, a Renatinha tem boa conversa. Ela disse pra mãe oferecer arroz com feijão pros convidados, que todo mundo ia ficar satisfeito. A mãe se sensibilizou, conseguiu um dinheiro e falou pra eu ir lá, que me pagaria depois. Naquela foto, só quem morreu foi o pai dela e as duas avós, que aparecem de canto.”

Não é a única imagem a conter visualmente a presença de finados.

Cristina, moça sonhadora que frequentava a casa de Pimenta, morreu aos 16 anos, no parto do primeiro e único bebê. Carmencita, jovem vaidosa que exibia figurinos extravagantes nos bailes black, sucumbiu a um feminicídio. Sônia, criança risonha fotografada no estúdio da Serra, morreria aos 23 anos, de cirrose hepática, após uma desilusão amorosa.

“A gente sente saudades, fica lembrando das coisas”, declara Mendes. “A cada dia que passa, a vida vai se fechando mais e mais pro lado da morte, até que uma hora chega a nossa vez.”

Dona Inês, mãe do fotógrafo, faleceu aos 78 anos; o pai, conhecido como Seu Mundinho, aos 83. Em 1967, o filho adolescente pedira a eles que se sentassem na varanda, apertando o botão da máquina sob o crepúsculo das 17h. De costas para um muro rabiscado, o casal ainda nos observa com olhos fixos e as mãos nos joelhos.

“Se eu falar muito dessa foto, eu engasgo”, confessa Mendes. “A luz está apagando, o Sol indo embora, e meus pais repousam na sombra, muito nítidos naquela tardinha. Parece até que vejo os dois vivos, e bate aquela vontade da gente se encontrar novamente. Agora, é contemplar o retrato que fiz.”

Pimenta se manifesta: “Não fossem os pais do João, talvez eu nem estivesse aqui. Eles me domaram, me puseram pra trilhar o caminho certo. Porque o fotógrafo é o único cara abaixo de Deus que consegue pausar o tempo”.

Apartheid simbólico

O ex-assistente do Foto Mendes revive agora um dia indeterminado de 1987, quando Tãozinho, assíduo frequentador de bares, e Graça, sua esposa, lhe encomendaram um clique. Eles sorriem num sofá com toalha xadrez, envoltos pela parede cor-de-rosa e por uma farta vegetação. Acanhada e de pernas à mostra, a mulher tenta, sem sucesso, esconder-se atrás do marido.

“Ele disse para eu não perder essa foto, que ela circularia o mundo”, lembra Pimenta. “Achei que o cara estava era doido. Quem ia extraviar o retrato de um candango daquele? Sempre achei que a foto ia ficar ali, parada, pegando poeira no barraco. Mas, para minha surpresa, a premonição veio a se cumprir.”

Hoje, a obra de João Mendes e Afonso Pimenta já não se restringe a becos e vielas. Sua descoberta, porém, evidencia um paradoxo: embora tal iconografia pareça insólita aos gestores de museus, ela traduz um universo familiar, com o qual a maioria dos brasileiros se identifica.

“Aqui, vigora um apartheid simbólico”, declara Guilherme Cunha.

“É necessário que a gente nomeie o fato, pois nossa desigualdade de representação imagética é tão profunda quanto a socioeconômica, e obedece a regras similares. Assim como o regime de segregação racial na África do Sul impedia a livre circulação dos corpos negros pelo espaço público, o Brasil obstrui a preservação de suas imagens. Historicamente, as produções periféricas têm sido apartadas dos institutos e centros de memória. Nesse momento, presenciamos novos esforços para transformar essa realidade.”

Segundo o curador, reações emocionais, como choro e alegria, têm sido comuns – sobretudo entre trabalhadores dos espaços em que as obras são expostas.

“A arte pressupõe um movimento sensível”, afirma.

“No caso desses fotógrafos, ela se expressa pela compreensão de seus iguais. A grandeza da existência humana é muito clara nas imagens que ambos constroem. É como se, ao fotografar alguém, eles fotografassem a si próprios.”

Mendes, no entanto, admite não compreender plenamente a euforia em torno de suas criações.

“O pessoal enxerga um monte de significado nesses retratos, mas eu só me preocupava se o cliente ia achar bom ou ruim”, diz. “Procuro executar do jeito certo, bem feitinho, pra dar um ibope de acordo, mas nunca achei que fosse ter repercussão. O problema da fotografia é que sinto medo de largar e cair em algo pior. Mas ainda dá pra segurar a barra, apesar das muitas dificuldades.”

Pimenta alega que o serviço está chegando ao fim, abreviado pela disseminação dos smartphones na esfera doméstica. Hoje, sua rotina de trabalho se limita a casamentos e bailes de debutantes. Ao migrar para o digital, adquiriu três novas câmeras e cinco cartões de memória – nunca utiliza o mesmo equipamento em duas festas consecutivas.

“O zelo que o fotógrafo nutre por seu equipamento é o mesmo que ele deve sentir pelo próprio corpo”, diz.

“O tempo passa e você vai se cansando, mas às vezes o colega não sabe que uma Canon tem vida útil. Outro dia, um cara da minha idade estava me falando que se sente tão bem hoje quanto aos vinte anos. Maior conversa fiada!”

Este texto foi publicado originalmente aqui.

noticia por : UOL

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