VARIEDADES

“A Sociedade da Neve” e a imoralidade da sobrevivência a qualquer custo

Faz tempo que estou para escrever sobre “A Sociedade da Neve”. Espero que não seja tarde demais. Afinal, hoje em dia esses fenômenos culturais surgem e desaparecem muito rápido. Num dia está todo mundo discutindo e no outro já mudaram de assunto. Não tenho mais idade para acompanhar esse ritmo. Aliás, só o Francisco Escorsim tem.

Na verdade não quero falar sobre o filme em si, que é bastante bom e cumpre o papel de deixar o espectador agoniado, se perguntando o tempo todo como é possível que alguém sobreviva tanto tempo naquelas condições. Isto é, a 3.500m de altitude, sem comida, passando frio e principalmente com a esperança o tempo todo desafiada. Imagine passar dois dias soterrado pela neve depois de uma avalanche e ainda acreditar na possibilidade de sobrevivência!

É preciso muita fé. E nesse sentido é que “A Sociedade da Neve” se diferencia de “Vivos!” (1993) e “Os Sobreviventes dos Andes” (1976): a ênfase na fé dos personagens. Enquanto os filmes que o precederam causavam nojo no espectador que assistia ao necessário canibalismo das 27 pessoas que sobreviveram ao acidente aéreo, a produção espanhola questiona se é moralmente correto sobreviver assim, à base de carne humana.

Hoje em dia a pergunta parece descabida e um tanto forçada. Claro que é moralmente aceitável apelar ao canibalismo para sobreviver! – disseram todos aqueles para os quais perguntei. Mas em 1973, no ano seguinte à catástrofe, a questão ainda não estava pacificada. Tanto que Nelson Rodrigues escreveu uma crônica enfática sobre o assunto, argumentando que era indigno continuar vivendo depois de provar um filé-de-bumbum.

Antropófagos

Estão duvidando? Calma lá que eu vou procurar o livro em meio à bagunça para mostrar aos senhores. (…) Voltei! Não achava em nenhum lugar! Mas estava bem na minha frente. Os trechos aqui citados estão na coletânea “O Reacionário”, mais precisamente na crônica “Degradação da vida e da morte”. Nelson Rodrigues começa dizendo que “hoje tudo se faz para degradar a vida e, pior, para degradar a morte” e em seguida explora o caso dos “antropófagos dos Andes”.

Aí ele parte não para exaltar a coragem dos sobreviventes, como estavam fazendo na época todos os colegas de imprensa dele. Não! Nelson Rodrigues trata de exaltar “um, entre tantos, que disse: – ‘Eu não faço isso. Prefiro morrer, mas não faço isso!’ E não fez”. E continua: “Mas reparem num detalhe desesperador: – aquele, que preferiu morrer a devorar o seu semelhante, não merece nenhum interesse jornalístico. A reportagem dedica-lhe, no máximo, três linhas frívolas e estritamente informativas. Por sua vez, o público ignora o belo gesto que preservou, até o fim, a condição humana. Era homem e morreu homem”.

E eis que Nelson Rodrigues conclui dizendo que “o pior são os que não sofreram nada”. Isto é, nós que também assistimos a “A Sociedade da Neve”. Ou, nas palavras dele, “os que estão aqui, bem comidos e bebidos, felizes da vida e, limpando um imaginário pigarro, suspiram: – ‘Se eu estivesse lá, faria o mesmo’”. Nelson Rodrigues, então, resolve fazer uma enquete entre jornalistas e se espanta com a unanimidade a favor dos antropófagos. Palavras dele: “Os que falam assim não sabem que a vida pode ser o mais degradado dos bens”.

A digressão continua e eu espero que você esteja achando interessante. Sobra para os “teólogos de passeata”, que diziam que comer carne humana era uma imitação de Cristo. Depois de citar “Os Demônios”, de Dostoiévski, conclui Nelson Rodrigues: “Todo mundo é cego para o óbvio ululante. Ora, se a maioria, a quase unanimidade, está com os antropófagos, uma coisa é certa: – estamos realmente numa época de antropófagos. Se ninguém vê o horror como tal, se não se espanta e, pelo contrário, se solidariza, vamos tremer em cima dos sapatos. Somos muito mais do que simples comedores de orelha”.

Como eu tinha lido essa crônica antes de assistir ao filme, foi com outros olhos que vi o martírio daqueles jovens. Não sei se concordo com Nelson Rodrigues. Mas é que, à semelhança da maioria dos que me leem aqui, fui criado já numa cultura que tem sempre o homem, o indivíduo, em primeiro plano. Uma cultura que acredita que vale tudo – até recorrer ao canibalismo – não apenas para sobreviver, mas principalmente para fazer sucesso. Uma cultura centrada no aqui e no agora, e que dá de ombros para o Eterno. Virar a chavinha é difícil. Talvez seja impossível. Quem sabe um dia.

noticia por : Gazeta do Povo

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