Cada geração tem de se deparar com o momento em que a última testemunha ocular da geração anterior deixa de existir. É quando a história passa a ser contada inteiramente por terceiros: a última pessoa nascida no século 19. O último escravo. O último brasileiro a ter vivido sob a monarquia.
A geração dos pracinhas — os combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial — está se aproximando desse liminar.
Mais de 25 mil militares brasileiros embarcaram para lutar na Europa. Cerca de 450 morreram em combate. Hoje, menos de 60 ainda estão vivos, segundo a Casa da FEB. Ao que tudo indica, resta apenas um sobrevivente da tomada de Monte Castelo, a vitória mais emblemática dos brasileiros na guerra. A conquista completa 79 anos nesta quarta-feira (21).
Nesta data simbólica, a reportagem da Gazeta do Povo publica relatos em primeira mão de pracinhas brasileiros que tentam manter aceso o espírito de uma epopéia. Mais do que testemunhas, eles foram agentes da História.
O Brasil vai à guerra
O Brasil declarou guerra ao eixo em agosto de 1942, mas só enviou tropas para a Europa em julho de 1944. Incorporados ao 5º Exército dos Estados Unidos, mas com os próprios generais conduzindo suas tropas, os brasileiros participaram do teatro de operações da Itália, onde os aliados tentavam empurrar os nazistas de volta para a Alemanha. O exército de Hitler se aproveitava do terreno íngreme para resistir na chamada linha gótica, no norte do território italiano.
O Brasil vivia sob a ditadura getulista. O regime tentou tirar proveito dos dois lados da guerra antes de escolher um lado, pressionado pela opinião pública depois que submarinos alemães afundaram navios brasileiros. Mas os combatentes nada tinham com a dubiedade de Getúlio. Eles se portaram com honra em uma guerra que não era deles, em um território desconhecido, como parte da operação militar mais complexa da era moderna.
Os “pracinhas” fazem parte de um grupo que talvez tenha constituído uma das últimas unanimidades do Brasil. Há quem não goste de Pelé. Há quem não tolere Juscelino Kubitschek. Há quem torça o nariz para Ayrton Senna. Mas é difícil encontrar alguém que tenha algo negativo a dizer sobre os combatentes da FEB.
De certa forma, eles se tornaram um símbolo de que o Brasil pode ombrear as nações mais importantes do mundo.
A guerra como presente de casamento
Hugo Felisbino tinha 24 anos quando foi enviado para a guerra, na primeira leva de militares brasileiros a embarcar para Europa.
Hoje, aos 104 anos, ele leva uma vida tranquila em Camboriú (SC). Do outro lado da chamada de vídeo, em entrevista à Gazeta do Povo ele exibe uma voz firme e uma memória em pleno funcionamento.
Quando o Brasil decidiu enviar soldados à Europa, Felisbino estava prestes a se casar. Metade da sua unidade recebeu a missão de embarcar rumo à Itália. A outra metade, a dele, foi informada de que ficaria no Brasil. O jovem militar marcou o casamento. Mal deu tempo para a lua de mel: poucos dias depois, foi chamado para um treinamento em Curitiba. O treinamento na verdade era o embarque para a Itália. Ele só veria a esposa um ano e dois meses depois.
Felisbino chegou a se ferir em combate. Em um ataque de granada, seis de seus colegas morreram. Ele e outros 17 se feriram. O catarinense passou 30 dias internado. Assim que saiu do hospital, voltou para o front e permaneceu até o fim da guerra.
O sargento Felisbino se lembra de ter feito incontáveis viagens para levar prisioneiros alemães. Ao todo, as tropas da FEB capturaram cerca de 20 mil inimigos, incluindo dois generais alemães.
Para ele, o legado dos pracinhas é o exemplo de bravura. “O brasileiro tem coragem. O brasileiro é corajoso. O brasileiro diz que vai, vai mesmo e vence”, diz ele, antes de fazer uma menção à “Guerra de 1868” — a Guerra do Paraguai, vencida pelos brasileiros. “O Brasil tinha 13 mil homens e o Paraguai tinha 30 mil”, ressalta.
“O brasileiro tem coragem. O brasileiro é corajoso. O brasileiro diz que vai, vai mesmo e vence”
Veterano Hugo Felisbino
Felisbino não costuma exaltar os próprios feitos, e nem superdimensionar os méritos da FEB. Não é necessário. Ele tem mais de 20 condecorações militares, incluindo três de guerra.
O veterano prefere falar sobre como a boa estrutura oferecida pelo Exército dos Estados Unidos foi importante para permitir as condições de combate adequadas. “O mais difícil foi o frio. Nós pegamos uma temperatura de 20 graus abaixo de zero. Mas nós éramos muito bem amparados pelo Exército Americano. Nós levamos uns capotes de pano e o americano mandou botar no lixo. Eles nos deram umas capas de borracha para todo mundo”, conta.
Com os suprimentos fornecidos pelos americanos (como carne de frango e peru), os brasileiros acrescentavam o arroz com feijão.
Solidariedade com italianos
O sargento Felisbino aprendeu italiano e alemão o suficiente para dizer “Rendam-se, senão eu mato todos!”.
Mas, entre os civis dos vilarejos italianos, os brasileiros eram vistos como libertadores. “Sempre que nós tomávamos uma vila ou um povoado, nós éramos muito bem-recebidos”, conta ele.
Com frequência, os militares se hospedavam nas casas de famílias italianas. Em uma delas, em Castelnuovo Della Scrivia, a matriarca da família passou a chamar Felisbino de “meu filho brasileiro”. “E quando nós nos despedimos para vir embora, eles ficaram num choro tremendo”, relembra o veterano.
No retorno ao Brasil, o sargento teve de conviver com a desconfiança sobre sua sanidade mental. Uma das sequelas dos combates sangrentos foi o surgimento dos “malucos de guerra” — que, hoje se sabe, sofriam de Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Mas o veterano diz que, nos últimos anos, não pode reclamar da falta de reconhecimento por sua participação na guerra. “Eu pensava que no futuro nós seríamos abandonados”, Felisbino afirma.
O último sobrevivente de Monte Castelo
O potiguar Severino Gomes de Souza já contou sua história milhares de vezes. Mas, quando concedeu uma entrevista em vídeo para a Gazeta do Povo, parecia que estava relatando suas aventuras na Itália pela primeira vez.
“A minha motivação em conceder essas entrevistas é em memória daqueles que perderam a vida na Itália e também daqueles que sobreviveram e depois foram indo embora aos poucos”, diz o Capitão Souza.
Souza, hoje com 99 anos, vivenciou a guerra ainda no Brasil. Nascido em Natal, ele vivenciou as movimentações das tropas americanas, que mantinham uma base em Parnamirim (RN). Participou da vigilância no litoral. Ele vivenciou, em Ponta Negra, o ataque entre um avião americano com um submarino alemão.
Depois de embarcar para o front europeu, o capitão ficou onze meses na Itália e chegou a comandar um pelotão.
Em 21 de fevereiro de 1945, ele e seus colegas obteriam sua maior vitória: a tomada de Monte Castelo, na Itália, depois de um combate renhido com as tropas alemãs.
“A maior dificuldade foi a disposição alemã em defender Monte Castelo, porque havia um objetivo: por ali passavam os suprimentos aliados para as tropas dos Exércitos aliados que estavam lutando no Norte”, ele relembra.
As palavras são de um ex-combatente que, ao que tudo indica, é o único sobrevivente da tomada de Monte Castelo.
A anotação no histórico militar de Souza, feita por um superior ainda na época, exalta a conduta dele em combate: “O sangue frio com que manteve sob os fogos de artilharia, morteiros e metralhadoras a que foi submetido na última fase da luta na Itália, bem diz de sua coragem, que revelou em todas as ações onde tomou parte”, diz o registro.
Para boa parte dos combatentes, afirma Souza, a vitória na Europa era uma forma de exaltar o Brasil. “Havia disposição, coragem, sacrifício. E era o nome do Brasil que estava em jogo. Quando avançava uma tropa brasileira, não éramos nós que estávamos atacando, mas o Brasil.”
Era o nome do Brasil que estava em jogo
Capitão Severino Souza
A guerra proporcionou uma aventura fantástica para um jovem nordestino. Entre as movimentações das tropas e a folga pós-vitória, Souza subiu na Torre de Pisa, viu o vulcão Vesúvio, conheceu o Coliseu e, no Vaticano, foi recebido pelo Papa Pio XII com um pequeno grupo de outros cinco soldados. “Até então, nós não tínhamos a menor ideia de como eram as povoações na Europa”, conta.
Assim como Felisbino, ele tem apenas memórias positivas da interação com os civis italianos. Os alemães, em retirada, saqueavam roupas e comida. Os americanos e ingleses descartavam alimentos não utilizados pelas tropas em vez de doá-los. Já os brasileiros compartilhavam o que tinham. “Eu cheguei várias vezes a dividir o meu almoço com crianças italianas famintas”, diz Souza.
O decano dos ex-combatentes
O mais velho dos ex-combatentes tem 106 anos de idade. O tenente-coronel Nestor da Silva também é uma das figuras mais conhecidas entre os veteranos da Segunda Guerra. Morador de Brasília, ele costuma participar dos desfiles de Sete de Setembro na Esplanada dos Ministérios.
Ainda durante a guerra, Silva foi promovido por ato de bravura de segundo sargento a segundo tenente. Com a intermediação do filho, que herdou o primeiro nome do pai, Silva respondeu algumas perguntas da Gazeta do Povo.
“O principal legado da FEB foi participar em um teatro de operações europeu junto com os principais Exército do mundo, e se portar de forma exemplar nas batalhas de que participou”, diz.
Ele reconhece que é difícil passar adiante o patriotismo da sua geração. “Nós estamos em outros tempos. É o tempo da informática. Na época em que eu fui convocado para a FEB, o Brasil ainda era um país rural”, diz ele, antes de continuar: “Mas eu procuro contribuir com o meu exemplo. Sempre que possível, dou palestras em locais como escolas e faculdades”.
No ano passado, ao completar 106 anos, Nestor foi homenageado com uma festa que reuniu autoridades militares e entusiastas da FEB na capital federal.
Desaparecimento das associações
A diminuição no número de ex-combatentes vivos também tornou mais raras as cerimônias com a participação de pracinhas. No Colégio Militar de Porto Alegre, na semana passada, a cerimônia de homenagem à tomada de Monte Castelo teve a presença do veterano Elmo Diniz, que se manteve em posição de sentido, de pé, apesar de ter 102 anos de idade. A participação dos pracinhas nestes eventos, comum até poucos anos atrás, se tornou raríssima.
Com a passagem de bastão nas Associações de Ex-Combatentes, muitas delas tiveram de fechar as portas.
Uma exceção é a unidade de Brasília, que mantém um museu aberto ao público. Em 1968, o então presidente Costa e Silva cedeu um terreno de 15 mil metros na capital federal para construir uma pequena vila de ex-combatentes. Hoje, são 34 casas — todas mantidas por descendentes de pracinhas. O local também abriga, além do museu, a sede da associação.
Diretora de relações públicas da entidade e filha de um pracinha, Laurinda Nazaré Alvarez Pacheco cresceu ouvindo o pai, que morreu em 1993, contar relatos detalhados sobre a guerra.
“O meu pai nasceu nas margens do Rio Amazonas, onde faz 40 graus na sombra. Ir para a Europa com temperatura negativa foi muito heroísmo da parte dele”, ela diz.
Laurinda conta que, com a documentação precária da época, seu pai “providenciou” uma certidão de nascimento em que ele aparecia com 18 anos em vez de 17. E assim embarcou para o front ainda menor de idade.
Enquanto a associação em Brasília se mantém estável financeiramente, com três empregados em tempo integral, outros núcleos de ex-combatentes não têm conseguido se manter. “Muitas associações estão fechando. Eu fiquei sabendo de uma que, mesmo depois de fechada, teve de vender uma peça de museu para pagar contas de água atrasada”, relata.
Voluntários mantêm memória
Os veteranos dizem que as gerações mais novas precisam retomar o amor pela pátria.
“Eu gostaria que a nova geração tivesse mais patriotismo”, diz o sargento Hugo Felisbino. O capitão Severino Gomes de Souza concorda: “Eu gostaria que nas escolas se ensinasse com mais ênfase sobre a disposição dos jovens daquela época em defesa do Brasil. Que se pensasse mais no Brasil e menos em frivolidades”, diz.
Nestor da Silva lamenta a pouca atenção dada pelo governo brasileiro à história da FEB. “O Exército tem se esforçado muito para preservar a memória da FEB e difundir essa história. Mas o governo do Brasil está muito longe de manter viva a memória da FEB. Na atual geração, a grande maioria não sabe que a FEB existiu”, afirma.
Entre os que mantêm a memória acesa, a maior parte é de entusiastas que se dedicam ao tema por amor à história.
Um deles é o gaúcho Sírio Fröhlich, um oficial reformado do Exército. Ele escreveu dois livros com depoimentos de ex-combatentes. O mais recente, “Vozes da Guerra”, pode ser acessado gratuitamente. Desde 2015, Fröhlich também mantém uma página no Facebook em que publica informações sobre a participação da FEB na Segunda Guerra Mundial.
Quando alguém lhe pergunta sobre o que o motiva a fazer este trabalho, Fröhlich não titubeia: “A gratidão pela liberdade que legaram para a humanidade e divulgar o exemplo dos pracinhas para os brasileiros, sobretudo depois de sentir o amor e o respeito dos italianos que conviveram com eles.”
noticia por : Gazeta do Povo