VARIEDADES

Um milhão de punidos ou ameaçados por opiniões: cultura do cancelamento já supera o macartismo

A cultura do cancelamento, um braço executor das crenças dos
movimentos identitários, já está comparável em resultados ao macartismo — um
movimento político de perseguição a comunistas que levou a injustiças na década
de 1950 nos Estados Unidos. No período conhecido como “Segundo Pânico Vermelho”
(1947-1957), entre 100 e 150 professores universitários perderam seus empregos
no país por acusações de comunismo, muitas vezes espúrias. Enquanto isso, no
período de ascensão do identitarismo, de 2014 a 2023, quase 200 foram demitidos,
número que é uma subestimativa. As informações são do livro “The Canceling of
the American Mind” (“O cancelamento da mente americana”, em trad. livre, sem
edição no Brasil), publicado em outubro passado, de Greg Lukianoff e Rikki
Schlott.

Lukianoff é presidente e Schlott é pesquisadora da FIRE
(Fundação por Direitos Individuais e Expressão), organização que ocupou o vácuo
deixado pela ACLU (União de Liberdades Civis Americana) quando, nos últimos
anos, a última, seduzida pelo identitarismo, abandonou seu papel histórico de
defesa da liberdade de expressão. A FIRE deu nota
zero para Harvard
na defesa desse direito ano passado, por causa dos
cancelamentos, e compilou dados publicados na revista da Academia Nacional de
Ciências mostrando que quase
500 professores universitários e cientistas foram cancelados (sofreram punição
por sanha de progressistas e esquerdistas ofendidos por suas opiniões) em duas
décadas
.

David Cole, diretor jurídico nacional da ACLU, fez críticas
ao livro de Lukianoff e Schlott. Em uma resenha
publicada na edição de fevereiro de 2024 na revista The New York Review of
Books
, Cole disse que os autores, “como muitos ativistas, às vezes se
entregam ao exagero retórico”. Um desses exageros seria a comparação da cultura
do cancelamento ao macartismo, pois só no segundo caso aconteceu de “milhões de
americanos serem forçados a fazer juramentos de lealdade e aguentarem
inquéritos oficiais a respeito de suas opiniões políticas”. Cole também informou
que, enquanto o macartismo contou com o poder do Estado, o cancelamento é “uma cultura
de intolerância na maior parte privada”. “Há uma diferença enorme”, insistiu.

Lukianoff respondeu em seu blog
que muitos dos alvos de cancelamento são forçados a assinar contratos de
confidencialidade. Ele também explicou que sempre deixou claro “que estou
falando do contexto no campus, não no país como um todo. Os números nos campi
são alarmantes”. A FIRE descobriu que um a cada dez estudantes
universitários americanos relata que já sofreu punição ou ameaça de punição por
suas opiniões. O número é maior que a estimativa daqueles que se consideram
conservadores, cerca de 5%. Entre os professores a situação é ainda pior: um a
cada seis relata o mesmo problema. “Não há evidência de que o Pânico Vermelho tenha
ameaçado professores e estudantes com sanções oficiais nessa escala”, arrematou
Lukianoff, informando que o número total dos punidos ou ameaçados é de um
milhão entre estudantes e dezenas de milhares entre professores.

O que foi o macartismo?

O macartismo foi um movimento de perseguição a pessoas
acusadas de comunismo nos Estados Unidos pelo senador Joseph McCarthy, do
Wisconsin, no período entre 1950 e 1954, no contexto da Guerra Fria. A
enciclopédia Britannica diz, sobre o trabalho de McCarthy, que “embora ele
tenha falhado em substanciar um só processo plausível contra qualquer pessoa, suas
acusações, apresentadas de forma chamativa e esperta, levaram algumas pessoas a
perderem seus empregos e trouxeram opróbrio popular contra outras”. Crucial,
também, foi a presença pioneira da cobertura televisiva das audiências, durante
36 dias, em 1954.

Ilustrativa do mau comportamento do senador McCarthy foi a
acusação que ele fez contra o advogado do Exército, Joseph Welch, que estava em
audiência defendendo seu cliente de outras acusações de comunismo. McCarthy
levantou suspeitas sobre Welch por ter empregado um homem que supostamente
pertenceu a uma célula comunista. “Não sobrou no senhor nenhum senso de
decência?”, rebateu Welch. A interação ajudou a convencer a opinião pública a
se voltar contra McCarthy.

Havia algum fundo de verdade nas paranoias de McCarthy e seu
círculo, apesar de sua mão pesada e incompetência? A premiada série “Os
Americanos” (FX, 2013-2018) retrata a vida de dois espiões soviéticos da KGB
que moravam em Washington D.C. fingindo ser um casal normal, com dois filhos. É
ficção, mas se baseia em exemplos reais. A KGB de fato tinha espiões nessa
situação nos EUA e outros países. O criador da série, Joe Weisberg, foi
funcionário da CIA e usou a própria experiência como fonte, além de notas do
desertor da KGB Vasili Mitrokhin e o caso real de dez espiões russos presos
pelo FBI em 2010. Eles participavam de uma iniciativa secreta russa que os
americanos chamaram de “Programa Ilegais”.

No livro “When Reason Goes on Holiday” (“Quando a razão tira férias”, em trad. livre, sem edição no Brasil), de 2016, o filósofo croata Neven Sesardić documenta vários casos de filósofos e intelectuais ocidentais que ou simpatizavam ou colaboravam com a União Soviética. Ele conta que o editor da revista Philosophy of Science, William Malisoff, “na verdade era um agente da KGB”. Um de seus codinomes era “Talento”. Para Sesardić, o filósofo espionava não por aderência ideológica, mas por dinheiro. O autor dedica um capítulo do livro às simpatias demonstradas pelos soviéticos pelo físico Albert Einstein e seu amigo lógico Kurt Gödel. “É verdade que Einstein muitas vezes criticou a União Soviética”, conta o autor, “porém, não se pode negar que em certas ocasiões ele ou tentou justificar, ou se recusou a condenar algumas das ações mais sombrias dos comunistas russos (incluindo Stálin). Isso é incompatível com a imagem comum de Einstein como um sábio humanista e de bom coração”.

noticia por : Gazeta do Povo

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