VARIEDADES

Não é só no Brasil: judiciário é cada vez mais instrumentalizado para influir na política

Em novembro de 2019, o então presidiário Lula da Silva (PT) foi solto após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou a prisão em segunda instância inconstitucional. Dois anos depois, a Corte anulou as condenações do petista por considerar que foram decididas por um tribunal que “não tinha competência jurisdicional para julgar o caso”, o que o tornou elegível. No caso do triplex, Lula já havia sido julgado em terceira instância, e no do sítio de Atibaia, em segunda.

Durante a pandemia, em 2021, o ministro Luís Roberto Barroso acatou parte da ação do PT e de outros partidos, que questionava e exigia a revogação da portaria do governo de Jair Bolsonaro (PL) que impedia empresas de demitirem funcionários não vacinados contra a COVID-19. O STF também votou ação movida pelo PSOL e determinou como inconstitucional o decreto do líder da direita que permitia ao Ministro da Educação a indicação de interventores para a direção dos institutos federais de educação.

Em 2023, o STF formou maioria  para manter os direitos políticos da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). O Supremo rejeitou uma ação do PSL para anular parte da decisão do Congresso Nacional que votou pelo impeachment da ex-presidente, em 2016. Por outro lado, nesse mesmo ano, o ministro Alexandre de Moraes manteve a inelegibilidade de Bolsonaro determinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em resposta a uma ação movida pelo PSOL, por suposto “abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação” nas eleições de 2022.

Com a chegada de Bolsonaro ao poder em 2018, as prisões por ordem da Corte, os bloqueios bancários e a censura à liberdade de expressão de cidadãos, empresários, influenciadores, jornalistas e políticos (todos eles “coincidentemente” de direita) se tornaram comuns. No entanto, essa atuação do judiciário em todos os casos aqui já mencionados (como em outros), sempre em “nome da democracia”, não é exclusividade do Brasil.

Caso Polônia

Há quase 35 anos, a Polônia se libertava do comunismo soviético. Ao longo de mais de três décadas, nenhum cidadão polonês foi perseguido por suas crenças políticas, e nenhum opositor foi detido devido às suas ideias. Contudo, com a chegada de Donald Tusk (PO) ao poder em janeiro deste ano, a liberdade conquistada ficou ameaçada.

Em 15 de outubro, foram realizadas eleições no país do Leste Europeu para eleger os membros do Parlamento (Sejm) e do Senado. A coligação formada pelo partido social-democrata, Plataforma Cívica (PO), pela aliança política de centro, Terceira Via (TD), e pelo partido socialista de extrema-esquerda, Nova Esquerda (NL), conseguiram alcançar a maioria absoluta entre os três para derrubar o conservador Lei e Justiça (PiS) e assim eleger um novo primeiro-ministro em janeiro deste ano.

Tusk imediatamente assumiu o controle do Governo e lançou uma série de reformas na área da comunicação, demitindo executivos da mídia estatal e fechando canais de televisão como o TVP INFO que, de acordo com o primeiro-ministro, eram utilizados como instrumentos de propaganda pelo PiS.

O ministro da Justiça de Tusk, Adam Bodnar, também tentou destituir de forma ilegal o promotor Dariusz Barski do cargo, mas o presidente polonês, Andrzej Duda (alinhado ao PiS) não aprovou a medida. “Barski é o procurador nacional e todas as ações tomadas pelo Ministério da Justiça são ilegais”, afirmou, segundo o jornal polonês Gazeta Pawna.

Porém, o embate entre o presidente conservador e o primeiro-ministro tomou outra dimensão com a prisão de dois deputados do PiS, Mariusz Kamiński e Maciej Wąsik, respectivamente ex-ministro e ex-vice-ministro do governo anterior de Mateusz Morawiecki (PiS), .

“Pela primeira vez desde os dias sombrios do regime totalitário, houve novamente presos políticos na Polônia”, declarou o ex-primeiro-ministro Morawiecki em um vídeo transmitido nas suas redes sociais.

No dia 9 de janeiro, a Polícia Nacional invadiu o Palácio Presidencial para deter Kamiński e Wąsik. Os dois deputados haviam sido convidados por Duda para assistir a uma cerimônia de posse de dois novos assessores presidenciais e para permanecer na residência presidencial caso precisassem de um refúgio, o que fez com que o Tusk realizasse ameaças ao presidente de direita alertando que “a proteção de um criminoso pode ser punido com cinco anos de prisão”.

O ex-ministro do Interior e seu ex-vice-ministro foram condenados por suposto “abuso de poder” quando anos antes chefiavam a Agência Anticorrupção e supostamente teriam permitido que agentes sob o seus comandos agissem ilegalmente em uma investigação. No entanto, após o PiS chegar ao poder, ambos foram perdoados pelo presidente com a concessão de um indulto. O Supremo Tribunal alegou que a medida era infundada e disse que o caso deveria ser reaberto.

Em dezembro, Kaminski e Wasik foram condenados a dois anos de prisão, removidos de seus cargos no Sejm e desprovidos de qualquer forma de imunidade parlamentar, o que gerou uma forte discussão com os membros do PiS que alegaram que os deputados não poderiam ser privados de suas funções como representantes parlamentares.

A mesma discussão aconteceu no Brasil com a prisão de Daniel Silveira, que foi detido em janeiro de 2021 após comentários contra os ministros da Corte, em vídeo publicado pelo parlamentar nas redes sociais. Apesar de sua condenação por parte do STF e do voto favorável emitido pelo plenário da Casa legislativa pela manutenção da prisão do então deputado, a medida foi criticada em peso pelo meio jurídico.

O jurista Ives Gandra da Silva Martins, que participou das audiências públicas da Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e 1988, falou com a Gazeta do Povo sobre o caso do deputado. “É manifestação de palavras e votos. [Daniel Silveira] não pegou em armas, não atacou ninguém, não saiu brigando, não teve uma tropa de choque. Deu a opinião dele. Ele feriu o decoro parlamentar? Para mim, feriu brutalmente o decoro parlamentar. Teria que ser punido pelo Congresso, mas não pelo Supremo. Porque, na verdade, a manifestação é dele”, afirmou.

De acordo com o artigo 53 da Constituição, “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Isso significa que, independentemente do que expressem por meio de palavras ou de votos, os parlamentares não podem ser criminalizados durante o exercício de seus mandatos.

Por outro lado, Silveira também teve seu indulto concedido por Jair Bolsonaro derrubado por decisão do Supremo. O decreto presidencial havia sido assinado em abril de 2022 após condenação ao parlamentar de oito anos e nove meses de prisão. Os magistrados afirmaram que houve desvio de finalidade na decisão do então presidente da República, pois servia para beneficiar exclusivamente o deputado.

Na Polônia, o encarceramento de Kaminski e Wasik gerou fortes reações de repúdio em todo o país. Centenas de manifestantes foram ao Palácio Presidencial para prestar apoio aos parlamentares e ao presidente.

No momento da prisão, o ex-ministro de Morawiecki afirmou que seriam “prisioneiros políticos”, agradeceu a Duda pelo apoio e anunciou que daria início a uma greve de fome. “Estamos enfrentando uma crise estatal muito grave. Uma ditadura sombria está sendo criada”, finalizou.

Vários deputados do PiS tentaram entrar na delegacia onde os parlamentares estavam sendo interrogados mas não tiveram sucesso. Mais tarde, quando Kaminski e Wasik foram transferidos para a prisão, seus colegas da Câmara tampouco conseguiram autorização para visitá-los.

Após duas semanas da detenção, o presidente polonês anunciou que estava concedendo novamente nesta terça-feira (23) um novo indulto para o ex-ministro do Interior e seu ex-vice-ministro.

O presidente recordou que decidiu dar início ao processo de perdão no dia em que ambos foram detidos, como havia prometido às famílias dos deputados. “Foi integralmente cumprido, solicitei que os autos e o parecer fossem enviados ao Ministério Público. Este parecer me foi entregue hoje, depois de quase duas semanas, disse.

Duda havia solicitado ao Ministério Público e ao Ministério da Justiça que “iniciassem imediatamente” o procedimento para que a decisão se concretizasse.

Pouco depois das 21h00, Kaminski e Wasik deixaram o centro de detenção e foram recebidos por apoiadores do seu partido. “Esta luta continua, pode ser um caminho longo e difícil, mas com certeza venceremos”, declarou o ex-ministro ao sair.

O tempo que irá durar o novo indulto nas mãos de um Judiciário cooptado pelo governo do atual primeiro-ministro ainda é incerto. O que se pode afirmar é que casos como os de Kaminski e Wasik na Polónia, e Silveira no Brasil, não são casos isolados.

Vários países ao redor do mundo, principalmente na América Latina, fizeram ou fazem uso do Judiciário como ferramenta para a implementação da perseguição e censura a opositores sendo o caso de Jeanine Áñez Chávez e o de María Lourdes Afiuni uns dos mais emblemáticos.

Caso Àñez e Afiuni 

A ex-presidente boliviana Jeanine Áñez foi condenada a dez anos de prisão depois de ser considerada culpada de supostamente fomentar um golpe de Estado contra o governo socialista liderado por Evo Morales em 2019. Añez foi sentenciada pelos crimes de “violação de deveres” e “resoluções contrárias à Constituição”.

Antes de assumir a posição de chefe de Estado, Jeanine Áñez desempenhou o papel de segunda vice-presidente na Câmara de Senadores da Bolívia o que a habilitou para assumir a presidência do país já que todos os antecessores renunciaram ao cargo de acordo com a ordem de prioridade, como é contemplado pela Constituição Política do Estado.

Áñez foi julgada sem qualquer tipo de imunidade e enfrentou quase todo o processo legal na prisão. As autoridades alegaram que a política representava um “risco de fuga” e que por este motivo permaneceu detida.

A ex-presidente denunciou em várias oportunidades que seus direitos estavam sendo violados. Áñez estaria sendo mantida totalmente incomunicável, sofrendo tortura física e psicológica.

Em dezembro de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça (TSJ) da Bolívia, a mais alta instância judicial do país, ratificou a pena de dez anos de prisão contra a ex-chefe de Estado pela forma como assumiu a presidência interina do país em 2019.

A ex-presidente interina da Bolívia, Jeanine Áñez, acena de dentro da Prisão Feminina de Miraflores, no dia 15 de junho de 2022, em La Paz: pena de dez anos de prisão. Foto: EFE
A ex-presidente interina da Bolívia, Jeanine Áñez, acena de dentro da Prisão Feminina de Miraflores, no dia 15 de junho de 2022, em La Paz: pena de dez anos de prisão. Foto: EFE

No entanto, esse mesmo modus operandi foi implantado muitos anos antes na Venezuela que hoje tem um regime extremamente totalitário. Por meio de uma ordem de prisão televisionada, a juíza María Lourdes Afiuni foi levada do trabalho diretamente para a penitenciária. Em dezembro de 2009, Hugo Chávez, que já vinha com uma crescente imagem negativa, solicitou pena máxima de 30 anos para ela “em nome da dignidade do país” onde passou um ano e um mês.

O governo socialista, naquele ano, já fazia uso da Justiça como meio para aniquilar seus oponentes políticos e já era evidente o desrespeito pela separação de poderes.

Ao sair algemada do tribunal onde trabalhava e com um colete à prova de balas, Afiuni perguntou ao promotor o motivo de sua detenção, mas recebeu a seguinte resposta: “Eu ainda não sei, vou ver”. Os promotores na Venezuela não têm competência para ordenar prisões.

Em janeiro de 2010, foram apresentadas acusações oficiais contra Afiuni por supostas irregularidades na libertação do banqueiro Eligio Cedeño (que estava detido há 3 anos sem julgamento), porém a juíza o havia solto por ordens do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária que qualificava sua prisão como ilegal e solicitava sua libertação. A constituição venezuelana estabelece que as resoluções e opiniões de organizações internacionais de direitos humanos são obrigatórias e de cumprimento automático por autoridades e juízes na Venezuela.

Afiuni voltou para sua casa em fevereiro de 2011 sem útero, com a vagina e o ânus reconstruídos, uma lesão na mama direita, insônia crônica, e viciada em cigarro. A juíza afirmou ter vivido na própria carne “o outro lado” da administração da justiça. “Ditar uma medida privativa de liberdade neste país é ditar uma sentença de morte,” disse em uma entrevista da prisão em 2010.

O ministério do amor orwelliano

De países totalitaristas onde o judiciário viu-se entregue às mãos daqueles que estão no poder, a países “democráticos” onde este atuou em cumplicidade com o governo de turno ou com a oposição com o intuito de prevalecer, o certo é que converteu-se em um mero instrumento político.

A falta de confiança na Justiça e a implementação de medidas contraditórias, colocam em perigo o Estado democrático de direito e submetem a questionamento o artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) que diz que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

Para o advogado e professor André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão e direito digital, “a ferramenta que poderia ser utilizada para defender a liberdade de expressão é a Constituição”, no entanto confirma que “ela não tem sido usada”.

“A função atribuída por ela aos nossos juízes é a de resguardar e proteger o exercício da liberdade de expressão, no lugar disso, o judiciário tem promovido o controle da expressão, função estranha à prevista na Constituição”, diz o especialista.

Esse controle do pensamento social só é possível graças ao acompanhamento de um Quarto Poder, que é tão apreciado pelos grupos dominantes quanto o próprio judiciário, a mídia. Ela é a responsável por criminalizar certas ideologias com o intuito de camuflar as arbitrariedades cometidas sem se quer ser questionada, e tudo pela “democracia”. Como ela consegue? Submetendo um grupo de ideias a termos simplistas como “extrema-direita” ou “fake news”.

De acordo com o advogado, “o termo extrema direita já existe há muito tempo, mas tem sido utilizado nos últimos anos no Brasil — e em boa parte do mundo — como um espantalho da esquerda. Toda oposição conservadora é colocada no balaio do radicalismo e, com isso, cria-se a narrativa de que a esquerda, mais do que uma escolha política, é uma saída civilizatória. Com isso, também se cativa uma parceria com o judiciário, representado no Brasil pelo STF, para criminalizar o pensamento da direita e colocá-lo fora do jogo político. Ou seja, hoje em dia, pensar que o mundo está cooptado pela extrema direita é uma forma de criar uma hegemonia de poder para a esquerda. Óbvio que extremistas e radicais existem, mas essa é uma característica da pessoa, não de sua ideologia”.

Contudo, graças a imensidade da internet, esses termos têm encontrado dificuldade para conseguir a aderência da população. Hoje qualquer pessoa pode se tornar uma via de comunicação transparente sem a necessidade de uma aprovação superior. Por isso, o último passo do judiciário é regularizar as mídias sociais e assim dar o xeque-mate final na liberdade de expressão.

Marsiglia afirma que “com o advento das redes sociais, a liberdade de expressão não é mais vista pelos políticos apenas como um direito, mas como um ativo político. Ganha-se uma eleição com o alcance de audiência nas redes sociais, e também ganha-se com o controle do discurso. A mira do governo não está em tornar transparente a forma de distribuição do conteúdo pelos algoritmos, o que seria salutar, mas em controlar o discurso do usuário. Com isso, é possível calar vozes. Em uma eleição, é algo que vale ouro. É o que motiva os políticos brasileiros  à regulação da internet”.

noticia por : Gazeta do Povo

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