“O diabo está nos detalhes”, diz já no título um artigo liderado por Jean-Michel Dogné, da Faculdade de Medicina da Universidade de Namur, na Bélgica. A obra, que foi disponibilizada no domingo (21) no banco de pré-publicações MedRXiv, desmente uma manchete de vários dos principais veículos de comunicação brasileiros no início do mês, rebatida pela Gazeta do Povo, que a prescrição de hidroxicloroquina (HCQ) para Covid-19 teria matado quase 17 mil pessoas em seis países.
A fonte da manchete foi uma revisão de pesquisadores franceses e canadenses que, por sua vez, utilizou como fonte outra revisão cujos dados foram extraídos principalmente de dois estudos em que a HCQ foi prescrita em altas doses para pacientes já internados. Este não era o protocolo comum do tratamento precoce, termo que foi usado para indicações de profilaxia ou para o início de sintomas no começo da pandemia. Tomada antes da infecção com vírus, a droga parece ter tido alguma eficácia. Os dois estudos foram contra o protocolo tanto pelo excesso da dose quanto pelo quadro avançado de Covid nos pacientes.
A reanálise do grupo de Dogné critica a revisão dos franceses por “não ter tratado de forma adequada análises de subgrupo de dosagem e de sensibilidade”, o que “inviabiliza quaisquer conclusões gerais firmes sobre a mortalidade nos hospitais atribuível à HCQ”. Os pesquisadores belgas corrigiram esses erros, considerando qual dosagem foi dada em cada estudo reanalisado.
Ao agrupar os estudos que deram doses de 2.400 miligramas durante cinco dias, com um total de 947 pacientes que tomaram a droga comparados a 745 que não tomaram, os cientistas demonstraram “que não houve aumento significativo na taxa de mortalidade”, nem diminuição. Ou seja, o risco dos pacientes hospitalizados de morrer não foi afetado pela hidroxicloroquina. Confirmando o que disse à Gazeta do Povo o matemático da USP Daniel Victor Tausk, Dogné e colegas concluíram que “somente regimes de doses altas de HCQ estão associados a um aumento significativo na mortalidade”. Eles também mostraram que a revisão usou métodos que criaram “uma superestimativa enganosa de mortes associadas ao uso da HCQ em pacientes hospitalizados com Covid-19”. A reanálise aguarda o processo de revisão para ser publicada em periódico especializado, que pode capturar eventuais erros cometidos.
A hidroxicloroquina não funcionou para reduzir o risco de morte de pacientes já hospitalizados com Covid, ou seja, não teve efeito como tratamento tardio. Se funcionou como tratamento precoce ainda é um assunto em aberto, com evidências favoráveis e contrárias.
noticia por : Gazeta do Povo