CUIABÁ

Inovações Tecnológicas e Sistema de Justiça – Parte 1

É cada vez mais frequente o debate de importantes temas jurídicos (impunidade, atuação dos órgãos de segurança pública, demora na resolução dos processos judiciais, legitimidade dos Tribunais, entre outros) em diversas dimensões sociais, desde acaloradas discussões travadas no ambiente familiar à conversas materializadas em aplicativos de convívio social e/ou postagens em  mídias digitais, incluindo-se, ainda, os comentários apresentados nos mais diversos meios de comunicação (emissoras de rádio, redes de televisão abertas e fechadas, jornais de grande circulação, canais de streaming, entre outros). Sinal de bons presságios, pois indica que a sociedade (de uma forma geral) não tolera mais ficar à margem de discussões sobre relevantes assuntos que envolvam a elaboração e a aplicação da legislação em território nacional. Nesse contexto, com o intuito de contribuir para o esclarecimento de matérias jurídicas comumente veiculadas em plataformas digitais e na mídia de grande difusão – e, via de consequência, apresentar argumentos minimamente racionais-, é que nos propomos a desenvolver algumas ideias (por meio de linguagem comum) acerca de assuntos inseridos no universo do direito (notadamente, direito processual civil e direito processual penal). E, logo de início, convoca-se a atenção do leitor para refletir sobre o impacto das inovações tecnológicas sobre o Sistema de Justiça brasileiro.

De partida, é relevante registrar que o universo do direito tem experimentado profundas transformações em virtude da utilização, cada vez mais recorrente, de inovações e ferramentas extraídas do conhecimento alcançado com o desenvolvimento científico/tecnológico. A denominada revolução tecnológica passa a integrar o cotidiano do mundo jurídico brasileiro a partir da segunda metade da década de 1990 e, desde então, vem ganhando espaço com celeridade, a ponto de, nos dias atuais, ser inimaginável admitir o funcionamento do aparelho jurisdicional ao largo do ambiente tecnológico e da funcionalidade de seus mais variados recursos performáticos.

A implementação de ferramentas tecnológicas no universo jurídico tem contribuído com o aperfeiçoamento de rotinas e atividades desempenhadas pelas instituições que gravitam no entorno da atividade jurisdicional e, nesse contexto, a busca pela efetividade do processo é um dos fatores que vêm impulsionando a utilização de boas práticas digitais na esfera da prestação jurisdicional. É evidente que todos esperam uma melhor qualidade dos serviços prestados pelo Poder Judiciário e que o processo alcance níveis desejáveis de agilidade e eficiência, contudo, esse desiderato não pode afastar a observância do modelo constitucional processual adotado pela ordem jurídica brasileira. Afirmar que o direito processual civil tem como norma fundante o texto constitucional é reforçar o compromisso do Estado brasileiro em assegurar a proteção e a concretização dos direitos fundamentais processuais e, por via de consequência, realçar que a dimensão do processo deve prospectar a tutela efetiva dos direitos materiais. Diante dessa perspectiva, são tecidas algumas considerações sobre a harmonia que deve demarcar a convivência entre a implementação de inovações tecnológicas no ambiente jurisdicional e a preservação da garantia constitucional processual do acesso universal à justiça.

 Com efeito, o desenvolvimento tecnológico vem promovendo significativas modificações nas relações intersubjetivas travadas na atual quadra histórico-social da humanidade, levando à aproximação de povos que até bem pouco tempo viviam confinados em seus respectivos horizontes culturais. A difusão instantânea da informação cada vez mais revela-se ferramenta decisiva no processo de construção de novas fronteiras socioculturais, em que as pessoas passam a tomar conhecimento de eventos ocorridos nos mais distantes espaços do globo a partir de um simples acesso aos diversificados meios de comunicação eletrônicos (mídias sociais, aplicativos computacionais, rede mundial de computadores, canais televisivos, entre outros.) e ferramentas tecnológicas de alta capilaridade (smartphones, tablets, iPod, iPad, PCs).

No campo do direito material (civil, consumidor, comercial, entre outros) são inúmeras as repercussões promovidas a partir da implementação de novas ferramentas tecnológicas, como por exemplo, os negócios jurídicos firmados por meio de plataformas digitais revelando situações jurídicas com repercussões no campo da locação de imóveis (Airbnb) e de transportes via aplicativos (Uber, Cabify, 99, entres outros). Na esfera do direito consumerista se tornam mais frequentes as compras efetuadas pelo meio virtual em sites de empresas que operam com os requisitos da confiabilidade e agilidade para manterem-se no mercado (Alibaba, Amazon, Submarino, apenas para citar algumas), disponibilizando uma grande variedade de serviços e produtos. Em suma, hoje não há como fechar os olhos para a influência que o mundo tecnológico exerce sobre todos os segmentos sociais e em diferentes ordens normativas.

No âmbito do sistema de justiça, desde a segunda metade da década de 1990, a utilização de recursos tecnológicos pelas instituições que integram o quadro jurisdicional brasileiro (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e Privada, entre outros), passa a ser realidade premente. A começar pela aquisição de dispositivos de informática (computadores, impressoras, teclados, mouses) e seu emprego em substituição aos antigos equipamentos disponíveis (a máquina de escrever dá lugar a potentes PCs), passando pela implementação de programas computacionais (softwares) voltados a amplificar a eficiência do sistema de prestação jurisdicional e a viabilizar uma melhor gestão do fluxo e rotinas procedimentais, culminando, nos dias atuais, no complexo debate acerca do uso de algoritmos de inteligência artificial como mecanismo de auxílio e influência na esfera jurisdicional decisória. A virada tecnológica no ambiente processual é tema de primeira ordem e presente nos debates acadêmicos travados no seio da comunidade processual brasileira, fato que, evidentemente, foi amplificado com a adoção de práticas inovadoras pelos órgãos jurisdicionais durante quase três anos de crise pandemiológica que acometeu grande parte dos países.

As repercussões delineadas pela revolução tecnológica no ambiente processual podem ser reunidas em três dimensões: 1. Os efeitos projetados pela tecnologia e seus instrumentais no ambiente jurisdicional decisório; 2.  A análise dos impactos que o uso dos recursos tecnológicos vem provocando na esfera do procedimento em si considerado; 3. O exame da temática à luz das garantias fundamentais processuais, ou seja, a verificação do grau de harmonia (in)existente entre estas e as inovações tecnológicas inseridas no ambiente processual.

É importante consignar que a Constituição Federal de 1988 passa a projetar efeito normativo compulsório em todo o processo de elaboração e aplicação do direito no Brasil, e dela é extraída a base normativa refletida num catálogo extenso de direitos e garantias fundamentais do cidadão (art. 5.º), suficiente para demonstrar a opção legislativa nacional pela solidificação de um Estado Democrático de Direito. Em decorrência da força irradiante do conteúdo substancial da Constituição Federal, incumbe ao legislador não apenas elencar um feixe sistematizado de direitos e garantias fundamentais, mas também construir uma plataforma contendo um repositório instrumental apto a servir de ponte a fim de viabilizar a efetiva concretização do direito material controvertido. Como se observa, o legislador processual estabeleceu balizamentos para iluminar tanto a produção normativa como a atuação (interpretação/aplicação) no campo do processo, restando, no momento, aquilatar se as inovações tecnológicas estão a observar os marcos normativos presentes na atual ordem jurídica processual brasileira e, por consequência, se estão a guardar harmonia com as normas fundamentais do processo. Diante da força normativa do devido processo legal é imperioso aquilatar se as inovações tecnológicas implementadas na esfera jurisdicional têm observado o desenho garantista exigido pela ordem processual, a ponto de conferir ao jurisdicionado a total transparência no manuseio das ferramentas disponibilizadas pela era digital e de assegurar a confiabilidade dos diversos sistemas computacionais já utilizados em vários Tribunais Superiores e Estaduais/Federais.

Nessa quadra, é importante consignar que a inserção de toda e qualquer inovação tecnológica no universo processual deve atender, imprescindivelmente, ao princípio da legalidade, previsto no art. 37 da Carta Maior da República. Portanto, a existência de marcos normativos formal e materialmente válidos é conditio sine qua non para utilização de novas práticas digitais pela atividade jurisdicional no Brasil. Não poderia ser diferente, eis que proporcionar previsibilidade e estabilidade normativa ao jurisdicionado é o mínimo que se espera de um ordenamento positivo que se apresenta imerso em um Estado de Direito e com o propósito de propiciar a segurança jurídica necessária a nortear condutas e escolhas individuais em ambiente coletivizado.

Em outra frente é imperioso pontuar que o legislador processual positiva a garantia constitucional do pleno acesso à justiça no art. 3.º do Código de Processo Civil, disponibilizando a todos os cidadãos os meios necessários e suficientes para a busca pela preservação de uma posição jurídica diante da ameaça e/ou violação de direitos materiais tutelados pelo conjunto normativo. Desta feita, tem-se por vedada qualquer tentativa de implementação de ferramentas tecnológicas que venham restringir a eficácia formal e material dessa garantia, devendo o legislador infraconstitucional cercar-se da devida prudência ao normatizar a utilização dessas novidades no ambiente jurisdicional. Os desafios postos pela temática são enormes e merecem a atenção redobrada da doutrina processual, tudo ao intuito de equalizar a convivência entre avanços tecnológicos e o sistema de garantias processuais fundamentais. A complexidade da matéria emerge desde o momento em que se inicia o movimento pela virtualização de processos e procedimentos jurisdicionais, caracterizada pela transposição de autos processuais do plano físico para o ambiente digital e a implementação de rotinas de trabalho voltadas a maximizar a movimentação processual. Essa prática já se tornou realidade em diversos tribunais e órgãos jurisdicionais, contudo ainda provoca situações de difícil tratamento e resolutividade diante das dimensões continentais de nosso país e de peculiaridades de algumas regiões. Em território brasileiro, ainda nos deparamos com inúmeras áreas que não contam com a cobertura de sinal (ou sinal deficiente) a viabilizar a conexão via rede mundial de computadores (internet) e, assim, possibilitar a prática de atos processuais por meio virtual. Nesse particular fica evidente a inobservância da garantia plena de acesso à justiça, exigindo do poder público medidas que venham a minimizar os impactos negativos gerados pela ausência de uma política social de inclusão digital universalizante.

Importante ainda assinalar que a revolução tecnológica no processo faz emergir a necessidade de os profissionais do direito alcançarem qualificação mínima para manejarem os sistemas e os recursos digitais disponibilizados em grande parte dos tribunais pátrios e, por conseguinte, devem as instituições de ensino jurídico em operação no País inserir – na grade curricular – disciplinas que propiciem ao acadêmico acessar o conhecimento tecnológico digital e atingir habilitação suficiente que possibilite sua atuação no ambiente jurisdicional virtualizado com desenvoltura. É evidente que muito se tem a avançar no processo de consolidação de um efetivo sistema jurisdicional eletrônico ou virtualizado, contudo, os primeiros passos já foram dados, cabendo aos atores do universo jurídico aprimorá-lo e ajustá-lo ao encontro das premissas processuais fundamentais fixadas em nosso texto constitucional de 1988.

* Reinaldo Rodrigues de Oliveira Filho. Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso. Mestre em Direito Público pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP e Professor da FESMP

Fonte: Ministério Público MT – MT

FONTE : MatoGrossoNews

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