Tudo corria conforme o previsto no “Seminário Rede Equidade – Direitos Humanos na Gestão Pública: Diversidade, Equidade e Inclusão”: as autoridades estavam enfileiradas, a transmissão ao vivo reunia dezenas de pessoas e a lista de presença dos funcionários já circulava.
É verdade que a mestre de cerimônias chamou o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Og Fernandes, de “O.G. Fernandes”. Mas, fora isso, o evento seguia o roteiro.
Até que chegou a hora do revezamento dos intérpretes de Libras, a Linguagem Brasileira dos Sinais, e o profissional que assumiu o lugar da colega começou a fazer sinais pouco compreensíveis.
Enquanto a senadora Leila Barros (PDT-DF) falava, ele tentava acompanhá-la traduzindo quase que letra por letra — o que é uma impossibilidade física.
Ironicamente, o seminário tinha como objetivo enfatizar a importância da inclusão na burocracia federal.
O mau desempenho do intérprete gerou uma crítica pública nos comentários da transmissão. “O intérprete não é profissional. Ele não está fazendo nada que tenha sentindo. Que falta de senso e que desrespeito com a comunidade surda”, comentou Ddináh Brito, que também é intérprete de Libras.
Evento queria promover a inclusão
No discurso de Leila, a sequência de palavras complexas só piorou a situação. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos é muito centrada nos direitos individuais, mas a Convenção contra o Genocídio tem a ver com os povos, coletividades e indivíduos que foram marcados, prejudicados e mesmo eliminados por sua condição étnica”, afirmou a parlamentar, para desespero do tradutor.
Talvez ainda mais difícil tenha sido traduzir a palestra de Janaína Nolasco Gama, representante de uma ong que promove a diversidade. “O que que é normal, gente? O que que é ser um ser humano normal? Cada pessoa, ela é única. Então não existe um ser humano normal. Todos e todas nós somos normais”, disse ela.
O evento aconteceu em dezembro de 2022, mas o problema com a tradução passou despercebido até agora. O seminário foi promovido Rede Equidade, que reúne órgãos dos três poderes. Neste caso, a organização ficou a cargo do STJ, do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União e do Serviço Geológico do Brasil (SGB).
Além da senadora e do ministro do STJ, o evento teve a participação de figuras como Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União, e de José Cruz Machado, presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Intérpretes veem falhas graves
Ddináh Brito não foi a única a apontar problemas graves na atuação do intérprete. A reportagem da Gazeta do Povo ouviu três profissionais da área; todos afirmaram que o desempenho do intérprete foi abaixo do adequado.
“É uma pessoa que não tem domínio do idioma. Eu nunca tinha visto esse tipo de interpretação. Fiquei assustado”, diz Maikon Costa, que é tradutor no Instituto Federal do Paraná e tem licenciatura em Letras – Libras.
Para Costa, o intérprete tem conhecimentos básicos. “O que ele traduz não faz muito sentido. Ele usa muito o que a gente chama de datilologia, que é a soletração das palavras. Isso nós usamos em casos muito específicos, como nomes próprios. Ele não faz sinais básicos, coisas simples que têm sinais em Libras”, afirma.
Outra intérprete, que prefere ficar anônimo, tem uma análise semelhante: “O rapaz sinaliza pouquíssimas palavras. Ele soletra quase o tempo todo. Isto dá indícios de que ele não tem conhecimento dos léxicos. Não é possível dar conta de uma interpretação somente na soletração das palavras”, ela afirma.
Professor do Instituto Federal do Paraná, o intérprete Tiago Saretto concorda que o uso excessivo da datilologia não é adequado. Ele ressalta, entretanto, que o intérprete contratado pela Rede Equidade não é um impostor “A gente tem alguns casos de intérpretes que não são intérpretes. Não é o caso. O que realmente falta a ele são sinais”, diz.
O que é a Rede Equidade
A Rede Equidade foi criada em 2021 por onze órgãos federais. A iniciativa partiu do Senado Federal, e prioriza temas de gênero e raça. A organização pretende “promover a igualdade e equidade na gestão pública, por meio de ações de Inclusão e Diversidade, com abordagem interseccional, visando contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e sustentável.”
“Interseccionalidade” é uma ideia importada do movimento progressista dos Estados Unidos, e se baseia na tese de que os diferentes grupos oprimidos devem atuar de forma conjunta.
Os seminários de “diversidade e inclusão” se tornaram mais comuns nos últimos anos dentro da burocracia federal. No Judiciário, em especial, a iniciativa foi impulsionada CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A resolução 492 do CNJ, publicada em março do ano passado, e assinada pela ministra Rosa Weber, instituiu a “obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional”.
O texto exige que esses treinamentos sejam feitos uma vez por ano. “Os tribunais, em colaboração com as escolas da magistratura, promoverão cursos de formação inicial e formação continuada que incluam, obrigatoriamente, os conteúdos relativos aos direitos humanos, gênero, raça e etnia, conforme as diretrizes previstas no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, os quais deverão ser disponibilizados com periodicidade mínima anual”, afirma o documento.
O CNJ também decidiu que a oferta dessas capacitações será um critério do Prêmio CNJ Qualidade, criado para distinguir os melhores tribunais do país.
A resolução criou ainda o “Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário” – que, apesar do nome, também tratará de qualquer tema envolvendo direitos humanos, gênero, raça e etnia, “em perspectiva interseccional”.
STJ admite problema
À Gazeta do Povo, o Superior Tribunal de Justiça afirmou ter sido responsável pela organização do evento. A assessoria de imprensa da corte reconhece que “à época, foram reportados problemas na interpretação da Língua Brasileira de Sinais (Libras) no referido evento”.
A assessoria de imprensa do STJ disse ainda que, depois do evento, o tribunal pediu a comprovação das credenciais dos intérpretes, que são vinculados a uma empresa terceirizada. “Ciente das questões, a unidade gestora do contrato no STJ (Assessoria de Cerimonial), prontamente, solicitou a comprovação da capacitação dos intérpretes de Libras contratados pela unidade, que encaminhou os documentos dos profissionais que com mais frequência prestavam serviços ao Tribunal”, diz a nota do STJ.
O tribunal afirmou ainda ter “constante preocupação com o aprimoramento dos serviços prestados, de forma a atender as diretrizes de acessibilidade e de inclusão”.
noticia por : Gazeta do Povo