Durante a campanha presidencial de 1996 nos Estados Unidos, o candidato republicano Bob Dole fazia questão de enfatizar que sua discordância com o rival Bill Clinton não significava que o democrata era uma má pessoa. “Ele é meu oponente, não meu inimigo”, disse Dole em um debate transmitido pela televisão.
Em 1997, como presidente, Clinton entregou a Bob Dole a Medalha Presidencial da Liberdade — a mais alta comenda concedida pela Casa Branca. “Nosso país está melhor por causa de sua coragem, sua determinação e sua disposição em tomar o caminho longo para liderar a América”, o presidente afirmou.
Foram os últimos atos de uma ordem política em transformação.
Há exatos 25 anos, em 19 de dezembro de 1998, a Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) dos Estados Unidos aprovaria o impeachment do então presidente Bill Clinton. Ele foi considerado culpado de duas acusações: a de perjúrio foi aprovada com 228 votos a 206. A de obstrução de justiça, por 221 a 212.
A maioria dos deputados avaliou que, depois de se comportar de forma inapropriada com a estagiária Monica Lewinsky em plena Casa Branca, o presidente mentiu e tentou acobertar provas durante sua defesa.
O processo de cassação foi barrado pelo Senado — que, ao contrário da Casa ao lado, tinha maioria democrata. Mas, além de render cenas constrangedoras (incluindo a confissão do então presidente em um pronunciamento na TV), o caso cristalizou as forças políticas e acirrou o debate político de uma nova maneira.
É difícil saber se o episódio foi uma causa ou uma consequência da polarização política dos Estados Unidos. Provavelmente foi uma combinação dos dois.
Vitória republicana após 40 anos
O impeachment de Bill Clinton na Câmara só se tornou possível graças a uma revolução nas urnas. Pelo menos no Congresso americano, o começo da polarização coincide com o fim da hegemonia do Partido Democrata.
Nas eleições para o Congresso em 1994, o Partido Republicano obteve a maioria na Câmara pela primeira vez desde 1952. O sucesso foi atribuído ao deputado Newt Gingrich, um estrategista ambicioso que se tornaria o presidente da Casa em 1995. Dono de um estilo combativo que era malvisto pelos republicanos mais moderados, ele não era o político mais simpático do mundo.
Os autores de ‘Como as Democracias Morrem’, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, atribuem a Gingrich um certo desprezo pelas normas não escritas da democracia americana.
Fato é que o gentil Bob Dole havia sido derrotado. Gingrich, com suas táticas agressivas, venceu. E trouxe consigo uma nova geração de políticos republicanos.
A acusação
Em matéria de adultério em lugares inapropriados, é provável que John Kennedy tenha sido mais profícuo do que Bill Clinton. Mas, enquanto foi presidente, Kennedy tinha maioria tanto na Câmara quanto no Senado.
Quando a revolução de Gingrich ganhou forma, Bill Clinton estava no terceiro ano de seu segundo mandato. A combinação entre um presidente democrata e uma Câmara republicana — que explica o impeachment — acontecera por apenas quatro anos no século 20: entre 1947 e 1949 e entre 1919 e 1921 (nos Estados Unidos os deputados federais têm mandatos de apenas dois anos).
“A polarização não começou aí nos anos 1990 com o processo do Bill Clinton. Mas é um marco importante e um dos pontos que marcam o início dessa polarização de hoje”, afirma Maurício Fronzaglia, professor de Ciência Política da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Durante o primeiro mandato de George W. Bush, os ataques de 11 de setembro interromperam essa tendência e geraram um momento de união nacional. Já no segundo mandato dele, o clima bélico se reinstalou. Com Barack Obama, que radicalizou a agenda à esquerda, as disputas se tornaram mais estridentes. No mandato do verborrágico Donald Trump, a Câmara aprovou dois processos de impeachment — ambos barrados no Senado.
As pesquisas mostram uma polarização crescente também entre os eleitores.
Em 2014, os cientistas políticos Adam Waytz, Liane Young e Jeremy Ginges cunharam o termo “assimetria de atribuição de motivação” para definir o fenômeno: democratas acreditam que os republicanos são movidos pelo ódio, e vice-versa. Em um experimento com eleitores americanos, eles descobriram que o nível de hostilidade entre os apoiadores dos dois partidos era comparável ao de israelenses e palestinos.
Causas da polarização ainda são debatidas
Pilhas e mais pilhas de livros já foram escritos sobre a polarização da política americana. As possíveis explicações para o fenômeno são muitas.
Uma dela tem a ver com a política internacional. O fim da União Soviética, em 1991, realinhou as forças políticas também dentro dos Estados Unidos. A necessidade de união nacional contra um inimigo poderoso se desfez. Ao mesmo tempo, as alas mais radicais do Partido Democrata perderam o medo de serem vistas como antipatrióticas por defenderem ideias à esquerda.
Além disso, a internet permitiu que o discurso político se radicalizasse com mais facilidade. A imprensa tradicional deixou de ser o principal meio de informação. Um democrata isolado em uma pequena cidade do Alabama, ou um republicano solitário no oeste da Filadélfia passaram não só a encontrar informação que reforça as suas próprias crenças, mas também a encontrar pessoas que pensam como eles. Mais eleitores se tornam politizados e, com isso, passam a discordar em mais assuntos.
Outra explicação — mais otimista — é a de que, com a internet, as pessoas puderam conhecer melhor os partidos e escolher aqueles que de fato as representavam (em vez de, por exemplo, seguir a tradição familiar ou a tendência do local onde moram). Isso levou conservadores a se alinharem com os republicanos e os progressistas a se alinharem com os democratas. De acordo com essa hipótese, o sistema partidário se tornou mais racional.
O professor Maurício Fronzaglia também lembra que o sistema eleitoral dos Estados Unidos, que elege os seus deputados federais por um sistema de distritos, tem um bipartidarismo exacerbado. Para conquistar um assento na Câmara, é preciso ser o candidato mais votado em um distrito específico. Nenhum outro partido foi capaz de quebrar essa dicotomia se tornar competitivo no plano nacional.
O gerrymandering (manipulação dos desenhos dos distritos para favorecer um partido) acentuou esse fenômeno. A maioria (quase 80%) dos distritos está segura nas mãos de democratas ou republicanos; não há competição. A competição real é dentro do partido, e com frequência as alas mais puristas prevalecem.
Seja qual for a causa da polarização exacerbada, as consequências são visíveis; os partidos têm cada vez menos espaço para divergência. A ala do Partido Democrata contrária ao aborto, por exemplo, foi praticamente extinta.
Sem sinal de mudança
Vinte e cinco anos depois, os protagonistas do impeachment continuam na vida pública.
Bill Clinton é tido como uma figura respeitada dentro do Partido Democrata. Sua mulher, Hillary, foi Secretária de Estado e perdeu a eleição presidencial de 2016 por uma margem mínima. Newt Gingrich teve seis anos na Câmara antes de se aposentar, em 1999. Ele faz aparições eventuais em programas de televisão. Monica Lewinsky tem uma produtora de vídeo e é ativista contra o bullying.
A polarização continua. Em 13 de dezembro, a Câmara dos Representantes abriu formalmente um processo de impeachment do presidente Joe Biden por ter se beneficiado de negócios feitos por seu filho Hunter com companhias estrangeiras. O processo não tem chances de prosperar no Senado, onde os democratas têm maioria.
O professor Fronzaglia não enxerga uma reversão nessa tendência. “A polarização aparece em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Nos Estados Unidos existe essa estrutura bipartidária, e aqui no Brasil há uma polarização em torno personalidades políticas. De qualquer forma, não há sinais de que esse fenômeno vai se enfraquecer.”
noticia por : Gazeta do Povo