MUNDO

Mostra pensa um Brasil sem colonização com Eustáquio Neves e Carmézia Emiliano

Um homem está completamente atormentado pela própria subjetividade, ou pela falta dela. Horrorizado, ele perambula por ruínas sem cor, acompanhado por notas de um piano angustiado.

Rodado em preto e branco, o curta-metragem “O Túmulo da Terra”, de Yhuri Cruz, parece um filme expressionista alemão da década de 1920 —sem vampiros ou assassinos, o personagem central da trama é um homem negro que vaga por uma terra que, no passado, foi engenho de açúcar. É o Parque Lage, no Rio de Janeiro.

Entre caras e bocas, Cruz interage com outros personagens e com máscaras africanas feitas em pedra, que parecem guardar pistas do que procura. O curta está em exibição na mostra “No Fim da Madrugada”, na Galeria Vermelho, em São Paulo, até esta quinta-feira.

O título da exposição é inspirado no poema “Diário de um Retorno ao País Natal”, do poeta e político caribenho Aimé Césaire, um dos principais pensadores da negritude na França.

Publicados no Brasil pela editora Edusp, os versos formam quase um poema épico invertido, em que as conquistas de colonizadores, como em “Os Lusíadas” de Camões, dão lugar a voz dos colonizados e sua tentativa de restabelecer uma ligação com suas origens.

Em “No Fim da Madrugada”, as estrofes de Césaire servem como guia para pensar a história do Brasil através de obras que escrutinam as heranças da colonização. Exemplo é, logo no início do percurso, a obra “Vera Cruz”, de Rosângela Rennó, representada pela galeria.

O vídeo sem imagens é legendado por um diálogo fictício baseado em um texto de Pero Vaz de Caminha, escrito durante a primeira chegada ao Brasil junto a Pedro Álvares Cabral. A obra foi um pedido de Emanoel Araújo a Rennó, em 2000, na ocasião dos 500 anos da chamada descoberta do país pelos portugueses. O diálogo deixa o espectador livre para imaginar o que foi visto na nova terra após o desembarque da nau.

“Interessa aqui como os arquivos, as coleções e as instituições lidam com suas iconografias”, diz Lisette Lagnado, a curadora. Em frente ao vídeo, uma tela de Carmézia Emiliano, que esteve na 35ª Bienal de São Paulo, mostra uma revoada de borboletas coloridas sobrevoando pessoas do povo indígena macuxi, representadas em escala menor aos insetos e à flora do quadro —como se fossem apenas uma parte do todo.

No mesmo ambiente, a obra do artista André Vargas é apenas uma data escrita sobre um tecido. Os números chamuscados formam o ano em que os arquivos da escravidão no Brasil foram queimados, em 13 de maio de 1891. “Os arquivos do ocidente não dão conta do que é a realidade. Essa mostra é uma tentativa experimental de pensar como seria um arquivo não colonial”, diz Lagnado.

Se a chegada pelos portugueses ao Brasil foi motivada pela exploração do ouro, a série “Metal Ltda.”, de Claudia Andujar, transpõe o peso da mineração para o país da década de 1980. As fotografias de Andujar, que ganhará uma exposição solo no Itaú Cultural em 2024, mostram letreiros quase hollywoodianos pintados nas fachadas de Boa Vista para anunciar a compra e venda de ouro na capital do estado com forte presença do garimpo.

Em frente aos cliques de Andujar, fotos de Carlo Zacquini que mostram uma manifestação de garimpeiros na cidade contrastam com imagens tiradas por Vulcanica Pokaropa, em que uma caveira de boi, uma televisão de tubo e uma garrafa de pinga convivem com um incêndio florestal para denunciar o desmatamento e a invasão de terras promovida pelo agronegócio.

Eustáquio Neves, artista e fotógrafo representado pela galeria Vermelho e que também teve trabalhos expostos na última Bienal, apresenta na mostra uma série inédita de trabalhos criados a partir de uma fotografia dele próprio com sete anos, em sua primeira comunhão.

Em seis ampliações fotográficas sobre algodão e pintadas a óleo, a figura do menino segura cada vez um objeto diferente entre às mãos —desde símbolos da infância, como uma bola ou uma coca-cola, até objetos que remetem às religiões de matriz africana, em contraste com a foto original tirada para um ritual católico.

A investigação da ausência de iconografias é retomada em outro trabalho de Rosângela Rennó, em que a artista reproduziu o verso de valiosas fotografias roubadas da Divisão de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

A série original capturava o processo de urbanização da cidade. “Em uma investigação policial provavelmente tirariam fotos das fotos recuperadas, mas ela nos mostra o verso”, diz Lagnado. Mais um convite a imaginar o que é —ou poderia ter sido— a ocupação do território.

noticia por : UOL

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