No dia 17 de dezembro Gustavo Corção comemorava seu aniversário. Apesar de já ter sido publicado em mais de dez países, de suas obras terem sido traduzidas para sete línguas, de ter sido premiado pela Unesco por uma delas e cotado ao Prêmio Nobel de Literatura por outra, hoje em dia é preciso dizer aos novos leitores quem foi Corção. A leitores estrangeiros, isso é compreensível, afinal, mesmo o nosso maior escritor, Machado de Assis, goza de um prestígio internacional ainda muito tímido perto do tamanho da sua contribuição à literatura de todas as épocas e lugares. Mas, infelizmente, dói-nos dizer que nem no Brasil as reedições de Gustavo Corção — iniciadas pela Vide Editorial em 2017 e concluídas agora em 2023 — puderam prescindir de uma apresentação do autor. Sem ela, ficariam os novos leitores achando estar diante de apenas mais um escritor brasileiro de certo renome. Nada mais falso.
Corção não foi somente mais um autor brasileiro. Foi, na opinião de muitos — e digo na opinião qualificada de muitos dos nossos mais distintos representantes literatos —, um dos maiores autores brasileiros, o expoente máximo de um tipo de literatura ao mesmo tempo psicológica e engajada, humanista e devocional. Foi um articulista destemido, um ensaísta brilhante, um apologeta vigoroso, e um romancista-de-um-romance-só que mereceu, com um só romance, ser apontado como único sucessor à altura de Machado.
Mas como, então, foi esquecido? Que mistério explica o sumiço de suas obras por décadas, após a sua morte, e o silêncio sobre a sua atuação, sempre tão viva e tão enfática, na cultura brasileira?
Não é aqui o lugar de desemaranhar o novelo de circunstâncias que levaram a elite intelectual de um país — que já não é a elite e suspeita-se que nunca tenha sido intelectual — a esconder debaixo da cama um dos seus maiores luzeiros. Trata-se agora de reparar com urgência esse erro histórico. Façamos o possível para esboçar, ainda que em breves linhas, um retrato deste que foi um dos mais zelosos e corajosos homens de seu tempo, e de todos os tempos.
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Corção nasceu em 17 de dezembro de 1896 no Rio de Janeiro. Muito antes de vir a ser conhecido no mundo das letras, fez carreira no vasto universo da engenharia, especificamente no território então novo e pouco explorado da engenharia elétrica. Fez o curso de Engenharia na antiga Escola Politécnica do Rio e exerceu por décadas o ofício de engenheiro eletricista. Introduziu no Brasil o estudo da eletrônica aplicada às telecomunicações, disciplina de que foi professor na Escola Técnica do Exército durante 35 anos. Trabalhou em astronomia de campo, em serviços de força e luz, em radiocomunicações e em atividades industriais até 1948.
Aliado a isso, também fora dos âmbitos da engenharia exerceu sempre o ofício de professor, tendo ensinado língua portuguesa no Collegio Corção, fundado e administrado por sua própria mãe e onde fora educado quando criança. Seu amor pela música e pela pintura o fez também aventurar-se como artista: construiu ele mesmo um órgão eletrônico, costumava tocar música sacra em seu Hammond e chegou a pintar alguns quadros. Casou-se em 1924, teve um filho e uma filha, ficou viúvo, casou-se novamente em 1937 e teve então mais quatro filhas.
Foi só depois dos seus quarenta anos que se converteu à Igreja Católica e passou a se dedicar, com o ardor intelectual que o caracterizava, tanto ao estudo da doutrina e dos Santos Padres da Igreja quanto à leitura dos grandes escritores católicos, dos ensaístas e dos ficcionistas. Professor nato que era — “animal-professor”, como ele mesmo dizia —, logo passou também a dar aulas de catecismo para grupos cada vez maiores, mas também para crianças e jovens humildes e carentes. Foi responsável, por exemplo, pela educação na fé dos filhos de suas empregadas.
Publicou, então, em 1944, com quase cinquenta anos, seu primeiro livro, ‘A descoberta do outro’, em que narra a trajetória de sua conversão ao catolicismo. O livro foi muito bem recebido entre os escritores e entre o público, e fez com que o autor passasse, então, a figurar como articulista de alguns importantes jornais da imprensa brasileira, dando início a uma longa e combativa carreira de jornalista. ‘A descoberta do outro’ chegou a ser traduzido e publicado na Inglaterra em 1957 como ‘My Neighbour as Myself.’
E é curioso que tenha saído primeiro na Inglaterra, porque vinha justamente de lá uma de suas maiores inspirações como escritor: G. K. Chesterton. Corção sempre demonstrou fina intimidade com o escritor britânico, e a admiração que tinha por ele, bem como o profundo conhecimento que tinha de suas ideias, ficaram registrados em seu segundo livro, ‘Três alqueires e uma vaca’, de 1946. Era tamanha a afinidade entre o seu estilo e o de Chesterton que Jean Madiran, intelectual e escritor francês e amigo de Corção, comentou a respeito do brasileiro: “Encontrei Corção pela primeira vez em Paris em 27 de abril de 1973. […] Eu (quase) nunca ia me encontrar com alguém desconhecido, mas o nome e a alta qualidade de Gustavo Corção eu os conhecia por Dom Gérard, regresso do Brasil quatro anos antes, e que me dissera: ‘É o Chesterton brasileiro’”.
Quatro anos depois, em 1950, publicou seu primeiro e único romance, ‘Lições de abismo’, e foi quando tudo mudou. O romance teve enorme repercussão, tanto entre o público leitor quanto entre os intelectuais e artistas. Ainda na década de cinquenta, ganhou mais cinco reedições, e mereceu uma edição especial em 1962, com ilustrações do desenhista e gravurista Oswaldo Goeldi. Foi traduzido em inglês, italiano, holandês, polonês, alemão e francês, e premiado pela Unesco em 1954. A tradução para o inglês ficou a cargo da professora de linguagem da Universidade de Washington, Clotilde Wilson — que já havia traduzido ‘A descoberta do outro’ —, e foi publicada nos EUA em 1967 pela University of Texas Press com o título de ‘Who If I Cry Out’.
Com ‘Lições de abismo’, Corção assume definitivamente o ofício de escritor e é acolhido no meio literário brasileiro. Os maiores escritores e críticos literários do país fizeram questão de manifestar admiração por sua obra, e assim seguiram fazendo até o fim da vida dele. Recolho abaixo apenas alguns pareceres de grandes nomes da literatura brasileira sobre Corção, que não somam senão um centésimo do que foi escrito sobre ele, mas que, tanto pelo conteúdo quanto pelo peso do nome daqueles que subscrevem, dão a dimensão do prestígio que a nosso autor foi dispensado:
“Depois de Machado de Assis aparece agora um mestre do romance brasileiro”.
— Oswald de Andrade
“Livro belo, estranho, magistralmente escrito e realizado”.
— Rachel de Queiroz, sobre ‘Lições de abismo’
“Creio, sem temor de exagerar, ter lido o maior livro de ficção que já se escreveu no Brasil”.
— Menotti del Picchia, sobre ‘Lições de abismo’
“Escreveu em ’O desconcerto do mundo’ um dos livros mais belos e mais fortes de nossas letras. Ele precisa ser traduzido para todas as línguas, a fim de mostrar lá fora que nós também somos dignos do Prêmio Nobel”.
— Manuel Bandeira
“Tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor”.
— Nelson Rodrigues
“Gustavo Corção é um homem de bem e um homem de coração bom, um santo varão, como se dizia antigamente e digo eu, ainda”.
— Ariano Suassuna
“Um homem com sede de justiça e de verdade […] Considero uma graça de Deus que um homem de sua inteligência, bondade e bravura tenha vindo se empenhar nesta luta que nós no Brasil travamos contra a miséria, o subdesenvolvimento, o atraso material e intelectual, a mentira, a impostura, o roubo e o esbanjamento insensato de nossos recursos”.
— Fernando Carneiro
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A partir daí, a carreira de Gustavo Corção como escritor, professor, jornalista e defensor da fé só se intensificou, de tal modo que, se eu mantivesse o passo descritivo deste artigo, chegaríamos a vinte, trinta laudas, que o leitor, se é que ainda está aí, certamente pularia. Vou me apressar, portanto, e guardar algumas coisas para uma outra ocasião.
Nas três décadas seguintes, enquanto escrevia e publicava seus outros sete livros e incontáveis artigos de jornal para às vezes cinco ou seis grandes veículos da imprensa nacional ao mesmo tempo, Corção se firmou como uma das principais vozes (certamente a mais intrépida) da intelectualidade católica do Brasil, que passava por um momento de vigoroso renascimento. Prova disso é que por muitos anos foi ele diretor e até vice-presidente do Centro Dom Vital (CDV), no Rio de Janeiro, à época a principal associação de leigos católicos do país, e também diretor da revista ‘A Ordem’, periódico que o CDV editava e que exerceu forte influência na opinião pública por várias décadas. Foi também conselheiro do Conselho Federal de Cultura e do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio.
A contribuição com o Centro Dom Vital e suas iniciativas durou até 1963, quando, depois de muitos desacordos internos com o presidente, o escritor Alceu Amoroso Lima, Corção rompeu definitivamente com a associação. Fundou em 1969 uma outra associação, a Permanência (que também ganhou logo um periódico homônimo), por meio da qual seguiu divulgando suas ideias e posicionamentos em cursos, artigos e atividades diversas.
Passou a sofrer, no fim da década de 1960, uma progressiva perda de visão, de tal modo que, em 1978, ano de sua morte, havia lhe sobrado apenas 1% da vista — o que não o impediu de escrever, com o auxílio de colegas e alunos, e de seguir com todas as atividades até o dia de sua morte. Corção morreu em 6 de julho de 1978, no Rio de Janeiro. Conta-nos seu aluno e amigo Paulo Rodrigues, organizador de ‘Conversa em sol menor ‘(1980), o primeiro livro póstumo do “Dr. Gustavo”, como Paulo o chamava, que Corção “morreu em sua casa no Cosme Velho, dormindo suavemente, de olhos e bocas fechados”. Sem dúvida, dormia o sono dos justos.
Thomaz Perroni é editor, tradutor, gerente editorial e bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas.
noticia por : Gazeta do Povo