O governo da Irlanda quer aprovar uma lei tão contrária à liberdade de expressão que deixaria com inveja certos ministros do Supremo Tribunal Federal.
O projeto de lei, atualmente em tramitação no Senado da Irlanda, torna crime manter (mesmo sem divulgar ou distribuir) conteúdo discriminatório ou de “incitação ao ódio”.
O projeto foi apresentado no ano passado e ganhou novo impulso depois de protestos violentos em reação a um ataque cometido por um imigrante argelino. O texto em discussão no Senado foi batizado com o interminável nome de “Incitement to Violence or Hatred and Hate Offences Bill” (“Projeto de Lei sobre Incitação à Violência ou Ódio e Ofensas de Ódio”).
A proposta emprega um raciocínio circular ao definir o seu objeto: ódio é descrito como “ódio contra uma pessoa ou grupo de pessoas no Estado ou em outro lugar em razão de suas características protegidas”. A lista de discriminação inclui dez critérios, como raça, nacionalidade, gênero e deficiência. A pena por distribuir ou divulgar material considerado discriminatório vai até cinco anos de prisão.
Posse de material ofensivo: 2 anos de prisão
Em seu trecho mais criticado, a medida também prevê punição para quem “prepara ou possui material que pode incitar a violência ou o ódio”. Ou seja: ter imagens “odiosas” no celular será tratado como crime. Neste caso, a punição chega a dois anos de prisão.
A proposta traz exceções para quando o acusado provar que o material é uma obra literária, artística, política, científica ou acadêmica. Mas a proteção não impede que simples “memes” humorísticos sejam considerados material de ódio.
O projeto também permite à Justiça vasculhar aparelhos eletrônicos quando houver indícios de “crime de ódio”. O documento fala especificamente em “apreender e, pelo tempo que for necessário, reter qualquer computador em que algum registro seja mantido”.
Em nome da diversidade
O texto é de autoria da atual ministra da Justiça da Irlanda, Helen McEntee. Ela afirma que a sociedade irlandesa precisa desse tipo de proteção. “A Irlanda que habitamos hoje é um país diverso, cada vez mais aberto, acolhedor e progressista. No entanto, como acontece com qualquer sociedade, há uma minoria muito pequena de pessoas que tem como alvo os mais vulneráveis entre, nós unicamente devido ao ódio a alguma parte inerente da sua identidade”, ela disse em junho, ao defender a proposta no Senado.
Para a ministra, a liberdade de expressão precisa ser restringida. “A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Nós temos visto em outros países que palavras podem resultar em violência e incitação ao ódio. As pessoas não têm o direito de gritar ‘fogo’ em uma sala lotada. Elas não têm o direito de fazer declarações difamatórias, e elas não têm o direito de incitar ódio ou violência contra indivíduos”, afirmou McEntee.
Ao defender o projeto, a senadora Fiona O’Loughlin disse que ele vai ajustar a legislação para refletir a diversidade crescente da Irlanda: “Nos últimos anos, a Irlanda tornou-se muito mais diversa e inclusiva (…). No entanto, infelizmente, nem todos acolheram bem essas mudanças. Na verdade, alguns veem esta força como uma ameaça e estão dispostos a praticar violência para continuar a exclusão”, disse ela.
A também senadora Pauline O’Reilly resumiu em poucas palavras o argumento dos apoiadores do projeto: “Nós estamos restringindo a liberdade, mas nós estamos usando isso em prol do bem comum”.
Crítica de Elon Musk
O projeto de lei já foi aprovado pelo equivalente irlandês da Câmara dos Deputados (por 110 votos a 14), e agora está em análise no Senado.
Em abril, os deputados rejeitaram emendas que tentavam tornar o projeto menos intrusivo. Na ocasião, o bilionário Elon Musk definiu a medida como um “ataque massivo à liberdade de expressão.”
Quando a proposta foi analisada pela Câmara, o deputado Mattie McGrath foi um dos que expressou oposição à medida. “Isso poderia levar alguém a passar um período na cadeia por carregar um livro de um acadêmico de renome como Jordan Peterson? Eu acredito que poderia. Simplesmente por causa do conteúdo de um livro que você está carregando, você poderia ser enquadrado nos artigos subjetivos desta legislação”, disse ele.
No Senado, o projeto também encontra contestações.
“A liberdade de expressão não se aplica apenas a informações ou ideias que são recebidas favoravelmente ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou qualquer setor da população”, argumentou o senador Rónán Mullen, que criticou a falta de uma definição clara para “ódio” na lei.
O senador Paul Gavan, do partido de esquerda Sinn Féin, também se disse preocupado com o direito à livre manifestação: “Ao aumentar as penas para a acusação de ódio, não podemos restringir a liberdade de expressão daqueles que são mais vulneráveis. Por exemplo, as restrições a grupos que fazem campanha pelos direitos civis e pela libertação nacional, especialmente no que diz respeito à Palestina, podem ser consideradas como previstas na redação atual do projeto de lei”, disse ele.
Atentado e reação
O tema ganhou mais relevância depois de um ataque promovido por um argelino naturalizado irlandês. Em 23 de novembro, ele usou uma faca para ferir uma mulher e três crianças na saída de uma escola em Dublin. Dentre as vítimas, está uma menina de 5 anos que foi levada para o hospital em estado grave.
O ataque foi interrompido pelo motoboy brasileiro Caio Benício. Ele atingiu o criminoso com um capacete de motocicleta.
O crime se deu no momento em que o governo irlandês adota uma postura mais abertamente pró-imigração. Horas depois do ataque a faca, a capital foi palco de protestos que terminaram com a depredação de veículos e prédios. Mais de trinta pessoas foram presas.
A reação foi usada por governistas para redobrar a pressão pela aprovação do projeto de lei que restringe a liberdade de expressão. O primeiro-ministro Leo Varadkar afirmou que os atos foram movidos pelo “ódio”.
Nesta terça (28), em um discurso no Parlamento, ele afirmou que o ataque promovido pelo argelino não pode ser associado à política de imigração. “Eu pediria às pessoas que evitassem associar o crime à imigração. Não é correto”, afirmou.
Uma das figuras mais populares da Irlanda, o lutador de MMA Conor McGregor tem feito declarações públicas contra o que entende ser uma postura inadequada do governo no caso. “Nós precisamos deportar aqueles que estão aqui ilegalmente ou que tenham cometido um crime aqui. É preciso haver uma nova unidade criada especificamente para essa tarefa”, escreveu McGregor na rede social X.
noticia por : Gazeta do Povo