VARIEDADES

A crise de segurança começa na família, mas parece que ninguém se importa com isso no Brasil

Enquanto trabalhava como analista criminal no poder público, ajudei a desenhar alguns projetos daquilo que na literatura especializada se costuma chamar de prevenção terciária do crime e da violência. O conceito, emprestado das políticas de saúde pública, diz respeito às ações que são especialmente voltadas para aqueles indivíduos que já se envolveram enquanto vítimas ou autores de delitos, estatisticamente mais propensos à reincidência do que conjuntos populacionais mais amplos.

É claro que a analogia com o
problema da doença é precária. Em última instância, cometer ou não um ato
ilegal é escolha do indivíduo. E não se pode dizer que a trajetória de vida ou
as circunstâncias afetem a vontade de alguém no mesmo sentido que o consumo
exagerado de gordura influencia no entupimento de suas artérias.

Em parte, isso explica a
dificuldade de conseguir resultados efetivos com esse tipo de iniciativa.
Particularmente, lembro de um projeto desenhado para ofertar treinamento e
colocação no mercado de trabalho para jovens envolvidos em situações de
delinquência. Com um orçamento baixíssimo, a ideia era estabelecer um ponto de
conexão entre instituições capazes de ofertar treinamento profissional para mão
de obra pouco qualificada e jovens que estavam na ponta do sistema
socioeducativo.

O critério utilizado para
encontrar esse público era sua passagem pelos Centros Especiais de Referência
em Assistência Social (CREAS), que deveriam funcionar como instrumentos de
proteção social de políticas socioeducativas. Particularmente, mirávamos os
jovens em situação de Liberdade Assistida (LA), que tecnicamente não se
encontrariam envolvidos em casos mais graves de violência ou delinquência.

Do ponto de vista prático, as dificuldades eram imensas. De imediato, havia barreiras materiais difíceis de superar. Por mais que o governo ofertasse cursos de capacitação profissional, o público para o qual o projeto se direcionava era pessimamente qualificado, com níveis de educação formal que beiravam a indigência. Além disso, as empresas tinham bastante resistência em empregar jovens inexperientes, particularmente vinculados a um programa de prevenção de violência de uma prefeitura brasileira. Na prática, o que conseguíamos se resumia a algumas vagas de atendente de lanchonete, além de animadores para orientação no trânsito e outras funções menores, contratadas pelo poder municipal.

Para completar, havia o problema
da distância entre aquilo que o Estado identificava como delinquência e o nível
atual de progresso na carreira criminosa de vários jovens. O fato de estar na
condição de Liberdade Assistida muitas vezes só queria dizer que não houve
muito empenho da polícia em iniciar uma acusação formal para delito mais grave
ou que juízes atuaram com a leniência costumeira nos tribunais.

Em vários casos, jovens que
adentravam o sistema socioeducativo pela ponta eram dependentes químicos,
estavam envolvidos no tráfico de drogas nas comunidades ou possuíam um
histórico de atos de violência. Como resultado, muitos deles arrumavam
problemas já nas aulas de formação, entrando em conflito com professores e
outros estudantes, ou então eram rapidamente demitidos pelas empresas, depois de
um rompante de cólera no trabalho ou de um sumiço sem aviso para sessões de uso
intensivo de drogas.

Os problemas dessa espécie eram tantos que a moça responsável diretamente pelo gerenciamento do programa chegou a ter problemas de depressão, por estar lidando com situações para as quais não estava profissionalmente preparada, e por não dispor dos recursos humanos e materiais para lidar com esse tipo de público.

Entre as características dos
jovens atendidos pelo programa, havia um padrão comum no contexto de todos eles:
um ambiente familiar desestruturado ou disfuncional. Na maior parte dos casos,
eram jovens criados sem a figura paterna, ou com o pai enjaulado em alguma
unidade prisional do estado. Vários deles conviviam com mães que eram
dependentes químicas de álcool e outras drogas, quando não eram criados pelos
avós, que se queixavam frequentemente de não possuírem a energia necessária
para lidar com rapazes já crescidos, de comportamento agressivo e olhar
intimidador.

Nesse aspecto, reproduziam um modelo que eu já havia encontrado no trabalho cotidiano em favelas e posteriormente nas prisões: o problema familiar parece quase sempre presente na trajetória de indivíduos delinquentes. É uma constante, que confirma uma verdade relativamente assentada no senso comum.

Faltam dados sobre a criminalidade no Brasil

No Brasil, porém, afirmar isso se torna um desafio no debate especializado ou mesmo na esfera pública, em face da quase ausência de dados sobre o tema. As ciências sociais brasileiras existem desde o final do século XIX. O primeiro curso de sociologia do país foi criado em 1932, na Universidade de São Paulo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) existe desde 1936 e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), desde 1964. Existem inúmeras instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa, com centenas de milhares de profissionais formados no país. Entretanto, até hoje, não se produziu uma única pesquisa (survey) ou levantamento abrangente sobre o tema. E isso no país em que ocorrem quase 50 mil homicídios todos os anos, onde a criminalidade se transformou numa questão de vida ou morte para grande parte dos brasileiros desde pelo menos os anos 1990.

Em muitos aspectos é como se
fosse um não problema, ou como se as pessoas não estivessem preocupadas em
possuir dados pluviométricos confiáveis em um país frequentemente vitimado por
grandes monções todos os anos. Vivemos numa das democracias em que mais se mata
no mundo e ninguém parece muito preocupado em entender as razões mais prementes
desse estado de coisas.

Existem algumas hipóteses que
podem explicar essa lacuna, mas chama atenção que o padrão não se repita em
outras nações. Em países do mundo anglo-saxão, pesquisas sobre a relação entre
família e delinquência constituem um campo relativamente bem assentado de
investigação científica. O primeiro estudo rigoroso sobre o tema foi produzido
por Sheldon e Eleanor Glueck, durante a década de 1930. Esse levantamento, um
clássico no campo da criminologia, incluiu um estudo longitudinal comparando
500 delinquentes e 500 não delinquentes na área de Boston, seguindo-os por
várias décadas.

O casal buscou identificar os
fatores preditivos de delinquência, explorando tanto as características
individuais quanto as circunstâncias familiares. Os estudos consideraram mais
de 400 aspectos distintos para cada participante, concluindo que a
predisposição à delinquência estava fortemente vinculada a cinco elementos
centrais: a forma como o pai disciplina o filho; a supervisão exercida pela mãe;
o carinho demonstrado pelo pai; o nível de atenção materna; e a coesão familiar.
Os instrumentos analíticos desenvolvidos pelos Glueck vêm sendo empregado até
hoje com grau satisfatório de sucesso para predição de trajetórias
delinquentes.

A grande quantidade de estudos desenvolvidos desde então sobre o tema torna um resumo do debate no campo quase impossível num artigo. Em um esforço recente de avaliação dessa produção, os cientistas Miguel Bastos-Pereira e David Farrington fizeram uma revisão dos estudos de meta-análise focados em pesquisas longitudinais, que investigavam os fatores preditivos relacionados ao envolvimento em delinquência. A análise foi publicada na revista Agression and Violent Behavior em 2022 e contou com a extensa investigação crítica das publicações de meta-análise produzidas até então.

Os resultados da revisão sistemática mostram que os fatores relacionados à família no início da vida tiveram alguns dos maiores efeitos na previsão de infrações gerais. Essas variáveis relacionadas à família incluem estrutura familiar, conflitos domésticos, (falta de) habilidades de criação de filhos, estresse familiar, nível de conhecimento parental, qualidade da supervisão/disciplinamento durante a infância e um ambiente familiar adverso durante a adolescência. Três meta-análises também destacaram o efeito do abuso infantil (Braga et al., 2017 e maus-tratos na adolescência em infrações gerais posteriores.

A forma como esses fatores
influenciam na ocorrência de violência tem rendido debates interessantes. Falta
de amor materno, casos de abuso e negligência parental, por exemplo, costumam
estar associados com falta de empatia no desenvolvimento da personalidade, um fator
diretamente ligado a ocorrência de crimes, especialmente aqueles envolvendo
algum nível de psicopatia. Supervisão deficiente ou disciplinamento irregular,
por sua vez, afetam diretamente no autocontrole dos jovens, isto é, sua
capacidade de adiar gratificações, impondo barreiras para o gerenciamento de
condutas, tendo em vista as normas estabelecidas. Dependendo da pesquisa que se
considere, outros fatores podem ser considerados, todos eles relacionados à
família.

Brasil registra baixa institucionalidade de políticas de proteção à família

Não é preciso dizer que um
levantamento como esse simplesmente não seria possível no Brasil. O país carece
de maneira geral de qualquer tipo de pesquisa sobre família e delinquência, que
se dirá de estudos longitudinais, que demandam um tipo de investimento
continuado que não combina com a lógica de editais de pesquisa
institucionalizada no Estado brasileiro. Falar a respeito do assunto demanda
recorrer à bibliografia e dados produzidos no exterior. O máximo que o Brasil
possui a esse respeito são estudos muito específicos, usualmente de caráter
antropológico, além de dados disponíveis em reportagens da imprensa.

Sabemos, por exemplo, que o país
aprovou a Lei do Divórcio nos anos 1970, e mais ou menos 20 anos depois, isto
é, o espaço de uma geração, as estatísticas criminais já apontavam para uma
situação de descontrole do crime e da violência. Também temos alguns registros
de instituições oficiais como a Fundação Casa, que apontam para a
falta da figura paterna em casa
e o histórico
de crimes na família
de muitos infratores.

Antes que se pense que esse é um problema meramente científico, é importante se ter em mente algo sobre a forma como políticas públicas são estabelecidas no Estado Moderno. O escritor Hugo Von Hofmannsthal uma vez disse que nada está na política de um país que não esteja antes na sua literatura. Pois eu diria que nada se torna objeto de atenção do Estado enquanto não faz parte das estatísticas produzidas no país — as duas palavras, não à toa, possuem a mesma origem semântica.

É provável que a ausência desse
tipo de informação seja a causa da baixa institucionalidade de políticas de
proteção à família e mesmo da falta de debates na esfera pública sobre o
problema. Sem dados confiáveis ou estudos abrangentes, o público não dispõe de
informação, os jornais não direcionam recursos para investigar as pautas, os
políticos não conseguem sustentar seus argumentos, as propostas legislativas
não avançam no Congresso e o Poder Executivo pode continuar fingindo que não
tem nada a ver com isso.

A ascensão de uma nova direita na
esfera pública deveria ter significado uma mudança de sentido nesse aspecto. Afinal,
a defesa da família costuma ser um baluarte do campo conservador em qualquer
país do mundo. Porém, a prioridade que gestores têm dado para o tema, a
quantidade de recursos destinados para sua investigação e o destino das verbas
parlamentares de deputados eleitos na “onda conservadora” infelizmente ainda
sinalizam na direção contrária. É uma pauta pronta, de extrema importância para
o futuro do país, com potencial eleitoral fortíssimo, mas ninguém parece atentar
que o caminho para fazê-la render politicamente é jogar luz sobre o tema,
trazendo informação de qualidade para a sociedade como um todo.

No final, quem ganha com isso? As forças que pretendem deixar as coisas exatamente como estão, isto é, aquelas que não reconhecem a importância da família como instituição social mais fundamental, ou se posicionam francamente contra sua existência natural. E assim o país continua avançando para um quadro cada vez mais generalizado de violência, desordem e desagregação social.

Eduardo Matos de Alencar é doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro ‘De quem é o comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil’ (Ed. Record)”

noticia por : Gazeta do Povo

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