Quem lacra ainda lucra. Mas isso pode estar mudando. E a prova são dois casos recentes de boicotes promovidos pelo público conservador norte-americano que levaram empresas “conscientes” a rever seus posicionamentos.
No início de agosto, a multinacional AB InBev (detentora, por aqui, da Ambev) anunciou que sua receita nos Estados Unidos caiu 10% no segundo trimestre deste ano devido à queda nas vendas de sua principal cerveja no país, a Bud Light. O motivo do fiasco? Um backlash (“retaliação”) por parte dos consumidores, em protesto contra a associação da marca a pautas identitárias e a um influenciador com posturas consideradas “antifamília”.
Um pouco antes, em maio, a rede varejista de moda Target enfrentou uma crise parecida. As ações da companhia perderam 9% de seu valor de mercado após o lançamento de uma linha de produtos voltados para “minorias”. Neste caso, o público não só propôs uma represália como também invadiu as lojas exigindo a retirada das araras com os novos modelos – e as roupas acabaram sendo expostas apenas no fundo dos pontos de venda.
A História mostra que, no geral, boicotes dificilmente causam prejuízos efetivos às empresas. No entanto, os revezes sofridos pela Bud Light e a Target neste ano, e mesmo arranhões menores causados nas imagens de outras companhias, ligaram o alerta das grandes corporações.
Em uma matéria publicada em junho, o Wall Street Journal (um dos principais veículos internacionais de notícias econômicas) conversou com executivos de prestígio sobre um possível cansaço do público com relação o ativismo corporativo. E muitos deles admitiram estar reavaliando os planejamentos de suas companhias no tocante ao envolvimento em pautas políticas.
Tim Knavish, CEO da PPG Industries (fornecedora de tintas, revestimentos e fibra de vidro, com operações em 70 países), é um deles. “Nós administramos um negócio. Não administramos uma organização política, religiosa ou social. Trabalhamos com clientes que têm opiniões e visões variadas. Portanto, precisamos levar tudo isso em consideração”, afirmou para a reportagem, intitulada “Empresas que abraçaram questões sociais agora têm dúvidas”.
A apuração do Wall Street Journal ainda aponta que os próprios executivos estão deixando de mencionar, em seus pronunciamentos, siglas como ESG (sustentabilidade ambiental, social e governança corporativa) e DEI (diversidade, equidade e inclusão) – até pouco tempo em voga. “Estamos apenas olhando para os números. Não somos um órgão eleito, não estamos aqui para fazer leis”, disse Lee Cutler, diretor financeiro da Pinnacle West Capital, holding americana do setor de energia elétrica.
Mesmo o poderoso Larry Fink, CEO da empresa de investimentos BlackRock (a maior do planeta em gestão de ativos e conhecida por sua política ESG), reconhece que esses termos se tornaram muito politizados. “Ainda somos comprometidos com esses conceitos, mas não estamos usando mais essas siglas. Elas estão sendo utilizadas como armas tanto pela esquerda quanto pela direita”, afirmou, durante a edição deste ano do Aspen Ideas Festival, evento dedicado à discussão de temas atuais, com a participação de personalidades de diferentes áreas.
Declarações como a de Fink só comprovam o óbvio: o ambiente dos negócios é volátil, e o único norte a ser seguido é aquele em que o dinheiro está.
“Acho que cada vez mais os consumidores estão percebendo o cinismo de muitas corporações que se envolvem na política. E entendem que as empresas muitas vezes fazem isso apenas em benefício próprio”, disse, em entrevista à emissora de televisão Fox News, o advogado e cientista político Will Hild, diretor do Consumers’ Research – tradicional entidade de proteção ao consumidor cujo maior foco nos últimos anos é alertar as pessoas para o oportunismo do ativismo progressista promovido por empresas.
“Façam as empresas pagarem caro”, diz comentarista de direita norte-americano
Segundo os especialistas, a polarização política tornou a identidade dos conservadores mais definida – o que, consequentemente, aumentou a união e o poder de coordenação dessa parte da população. Por outro lado, a esquerda estaria passando por um momento de maior fragmentação e conflitos internos.
Em suma, agora há ações em bloco e estratégias bem traçadas por parte da direita. Como ensina o comentarista conservador americano Matt Walsh: “Não precisamos boicotar todas as empresas woke. Escolha alguns alvos estratégicos. Faça elas pagarem caro. Isso é o suficiente para tornar o ‘consciente’ muito menos atraente para o mundo corporativo. Pare de tentar derrubar todos os dominós de uma só vez. Comece com um, e depois passe para o próximo”, disse o colunista do site The Daily Wire, em sua conta no Twitter/X.
O chamado ativismo consumidor de direita, no entanto, não se limita à recusa em comprar itens de companhias cujo marketing segue a agenda woke. Uma tendência igualmente em alta é o oposto do boycott (“boicote”), o buycott (trocadilho de difícil tradução em português, mas que em inglês junta o verbo ‘comprar’ com a palavra boicote, significando, na prática, comprar ou consumir algo com o qual se alinha ideologicamente).
O conceito pode ser observado especialmente na cultura popular, vide o êxito comercial de produtos com viés ideológico mais conservador. Os filmes ‘O Som da Liberdade’ (sobre o tráfico de crianças) e ‘Top Gun: Maverick’ (considerado um resgate de valores perdidos da masculinidade), a série ‘Os Escolhidos’ (que narra a vida de Jesus) e as canções de artistas country como Jason Aldean e Oliver Anthony são amostras de hits dos últimos tempos apoiados pela comunidade de direita.
Há quem diga, inclusive, que muitos desses sucessos se devem, acima de tudo, à lealdade do público – independentemente da qualidade das obras. Como se fosse “obrigatório” consumi-las apenas por serem produzidas por conservadores. Em março, por exemplo, Donald Trump chegou ao topo das paradas musicais (isso mesmo), na categoria “vendas digitais”, com uma faixa estranhíssima, “Justice for All”.
A música é uma versão do hino americano cantada por um grupo de manifestantes presos durante a invasão ao Capitólio, com a voz sobreposta do ex-presidente recitando o “Juramento de Fidelidade aos Estados Unidos” (verso patriótico de reverência à bandeira do país). O resultado, cá entre nós, não é dos mais harmoniosos, porém os seguidores de Trump adoraram. Foram registrados 33 mil downloads da faixa e, de acordo com os produtores, o lucro obtido será destinado aos réus.
Mas o ativismo da direita também tem suas falhas, e uma delas dá conta do excesso de teorias da conspiração envolvidas nas mobilizações. Como aconteceu durante as primeiras semanas de exibição de ‘O Som da Liberdade’ nos EUA, quando espalhou-se o boato de que a AMC, maior cadeia de cinemas do mundo, estava sabotando as sessões do filme.
De acordo com os rumores, compartilhados com fúria nas redes sociais, funcionários da rede estavam sendo obrigados a desligar o ar-condicionado das salas e forçar problemas técnicos nos projetores para interromper a boa carreira do longa. Tudo mentira.
O CEO da AMC, Adam Aron, teve de ir ao Twitter/X para se defender. “Mais de um milhão de pessoas assistiram a ‘O Som da Liberdade’ nos cinemas da AMC. Mais do que em qualquer outra rede do planeta. Isso é muito bizarro”, disse o executivo, que também é um dos donos do time de basquete Philadelphia 76ers.
Para conter a crise, e sossegar a audiência, Jeffrey Harmon, um dos fundadores da produtora Angel Studios, responsável pelo filme, também foi à internet e publicou uma mensagem endereçada a Aron.
“Quero agradecer pessoalmente pelo incrível parceiro que você tem sido. Muitos de seus gerentes entraram em contato comigo e me disseram que adoram o que está acontecendo e estão trabalhando muito para proporcionar uma ótima experiência aos fãs de ‘O Som da Liberdade'”, afirmou, dando um banho de água fria nos conspiracionistas de plantão.
Para especialista em marketing, consumidores do Bis “se sentiram traídos”
No Brasil, o ativismo consumidor de direita também dá sinais de vida. Principalmente por conta da surpreendente trajetória de ‘O Som da Liberdade’ por aqui. Embalada por uma intensa campanha realizada junto à comunidade cristã, a produção é a mais vista nas salas do país há quase um mês – e não dá sinais de que sairá do topo tão cedo.
No campo mais estritamente político, chama a atenção a tentativa de boicote ao chocolate Bis, após a divulgação da notícia de que o youtuber Felipe Neto (notório por incentivar o cancelamento de qualquer apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro) estava entre os novos garotos-propaganda do doce. Foi um dos assuntos mais comentados do último final de semana, e, até a conclusão desta matéria, direitistas e esquerdistas (incluindo políticos com cargos públicos) seguiam se digladiando nas redes sociais.
Na guerra de narrativas, chegou-se a compartilhar a notícia falsa de que as ações da Mondelez, dona da Lacta e da marca Bis, sofreram uma queda de 5% graças à retaliação do público bolsonarista. O número procede, mas, segundo o jornal Valor Econômico, o desempenho da companhia na bolsa já estava em rota de declínio desde o dia 10 de outubro, devido às incertezas econômicas nos EUA e ao acirramento do conflito no Oriente Médio.
Seja como for, a proposta de associar a imagem controversa de Neto a um produto tão tradicional quanto o Bis não fez bem à marca, como explica Maiara Kososki, doutora em Administração, Estratégias de Marketing e Comportamento do Consumidor pela UFPR e professora dos cursos de graduação em Administração, Marketing e Administração Internacional da PUCPR.
“Bis é uma marca que transcende gerações e, por isso, também é consumida por um público mais conservador, que possui valores contrários aos que o Felipe Neto representa. E essas pessoas acabaram se revoltando. Como no caso da Bud Light, os consumidores se sentiram traídos”, diz.
“Faltou [à Lacta] entender as crenças de seu público e se preparar melhor para a repercussão da campanha”, afirma a professora, mencionando o fato de que a empresa saiu pela tangente e apenas atribuiu a escolha do youtuber à sua popularidade junto aos gamers (a companhia é uma das patrocinadoras do evento CCXP, programado para novembro, em São Paulo, e dedicado à cultura pop e aos jogos eletrônicos).
Maiara também discorda da máxima de que “não existe publicidade ruim nos dias de hoje”. “Isso vale para artistas e celebridades que precisam estar na mídia todos os dias. Mas, para marcas construídas ao longo de décadas, como o Bis, é muito perigoso.”
A professora ainda destaca que o ativismo consumidor sempre foi um expediente adotado pelos progressistas – e colocado em prática em um ambiente dominado por eles: os meios de comunicação.
“Até pouco tempo, as pessoas de direita apenas ‘deixavam para lá’ e não entravam nesse tipo de discussão. E, por ficarem mudas, acabavam sendo retratadas como os ‘bandidos’ da história pelos veículos de mídia, que, em sua grande maioria, têm viés de esquerda. Mas, com as mudanças sociopolíticas dos últimos anos, a direita descobriu que têm voz e força”, afirma.
noticia por : Gazeta do Povo