Com o intuito de coibir práticas de autoridades públicas vistas como abusivas, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) sistematizou um cadastro que relaciona “violadores de prerrogativas” da advocacia. A lista pode receber nomes de agentes públicos como magistrados, membros do Ministério Público, delegados de polícia e servidores da Receita.
A iniciativa prevê punições aos alvos, como impedimento de ingressar na advocacia, e desperta questionamentos sobre os riscos de excessos. O prazo da sanção ainda não foi divulgado pela OAB.
O chamado “Registro Nacional dos Violadores de Prerrogativas” foi objeto de documento publicado pela Ordem em junho. A OAB já mantinha o registro desde 2018 e agora houve a regulamentação de seu funcionamento e de como as seccionais devem atuar com relação a ele.
As prerrogativas de advogados são os direitos conferidos por lei para a apropriada atuação profissional. Versam, por exemplo, sobre a relação entre magistrados e advogados, ou destes com seus clientes.
Advogados podem contatar suas seccionais ou subseções para denunciar as infrações. As supostas violações, então, devem ser apuradas pelas comissões de prerrogativas locais da OAB. Se verificada a infração, a autoridade pública que a perpetrou é inscrita em cadastro da seccional da Ordem envolvida e no Registro Nacional.
Caso venha a pedir ingresso na OAB, a autoridade cadastrada como “violadora de prerrogativas” pode ter seu pedido de inscrição negado. Além disso, fica vetada de dar palestras em escolas da advocacia e de receber honrarias em representação da Ordem.
A lista de violadores, de acordo com o Conselho Federal da OAB, já conta com mais de 300 nomes, mas eles só são acessíveis internamente, não estando disponíveis para consulta do público.
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A iniciativa, entretanto, pode levantar controvérsias entre as classes profissionais afetadas.
“As prerrogativas da advocacia são caras a todos nós, não só aos advogados”, salienta o procurador do Ministério Público do Paraná e professor de direito Rodrigo Chemim. Para ele, o impedimento ao exercício da advocacia deveria vir de condenação na Justiça, não de um trâmite interno da OAB.
Chemim lembra que o Estatuto da Advocacia veda o exercício da profissão a quem não tiver “idoneidade moral”.
O mesmo texto, recorda ele, diz que uma condenação por “crime infamante” é critério para estabelecer quem não é apto.
Como não há definição exata desse crime, Chemim afirma que serve de parâmetro um delito criado pela Lei de Abuso de Autoridade, de 2019: violar direito ou prerrogativa de advogado. Somente com uma condenação pelo Judiciário, argumenta o procurador, seria legítimo impedir a inscrição na Ordem.
Para ele, ao negar o direito de advogar aos “violadores de prerrogativas” sem que estes fossem necessariamente condenados judicialmente, o registro estaria fazendo uma interpretação extensiva dessa lei —o que não deve ocorrer em normas que limitam direitos.
Já Ricardo Breier, presidente da Comissão de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB, considera a inclusão de nomes no registro um processo interno. De acordo com Breier, o Estatuto da Advocacia, uma lei federal, dá à Ordem autonomia.
“A lei federal nos dá essa independência de administrarmos e entendermos, mediante critérios legais, [quem é] o advogado que está apto ou não a exercer a advocacia”, diz.
Rodolfo Queiroz Laterza, presidente da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil), mostrou-se preocupado com abusos e “estigmatizações” que poderiam surgir de uma medida como o registro.
“É crucial encontrar um equilíbrio entre a proteção das prerrogativas da advocacia e o respeito pelos direitos e dignidade dos indivíduos acusados de violações”, afirmou Laterza à Folha.
A reportagem também questionou a Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), que disse apenas considerar o registro como “um assunto inerente e interno da Ordem dos Advogados do Brasil”.
A Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), a Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal foram procuradas, mas não comentaram a iniciativa.
A estipulação de honorários advocatícios é um dos temas campeões de reclamações nas Comissões de Prerrogativas. Os pagamentos devidos aos advogados, em porcentagens sobre os valores das causas, são definidos no Código do Processo Penal.
Beto Simonetti, presidente da OAB Nacional, afirma que, apesar de o Estatuto da Advocacia ter incorporado a exigência, “magistrados por todo o país ainda insistem em descumprir não apenas a lei, mas a própria jurisprudência, que, em julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, reconheceu a obrigatoriedade dessa regra”.
Simonetti afirma que desde 2022, a OAB recebeu 305 denúncias de violações sobre pagamento de honorários.
Outro destaque tem a ver com a digitalização do sistema de Justiça. Marcelo Oliveira, presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, questiona tentativas de impor o uso da audiência virtual em situações em que isso não seria o ideal —como em audiências de custódia, realizadas para que o magistrado verifique a integridade física e psicológica do preso.
Seccionais —como as do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais— têm instaurado suas Escolas de Prerrogativas, com objetivo de oferecer cursos sobre o assunto aos inscritos.
O presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-SP, Luiz Fernando Pacheco, diz que a criação da escola paulista —inaugurada em 31 de agosto— veio da avaliação de que os direitos advocatícios são desconhecidos “não só por parte das autoridades, por parte do poder público, mas também pelos advogados.”
A seccional pediu ao Conselho Federal em 2022 para que fossem incluídas questões específicas sobre prerrogativas no exame de ingresso à OAB.
noticia por : UOL