MUNDO

Literatura é para contrariar leitor, não suprir demandas, diz Bernardo Carvalho

Dois homens brigam irremediavelmente. Discordam sobre tomar uma atitude que arruinará a vida de um terceiro homem, ao que tudo indica, perverso. “Só falta você me dizer que não há culpados no mundo”, provoca um deles.

“Só estou dizendo que passamos a vida substituindo os verdadeiros culpados”, responde o outro, mais velho.

Volte algumas páginas no novo romance de Bernardo Carvalho, “Os Substitutos”. O narrador escreve sobre uma relação de pai e filho que são “orgulhosos da independência um do outro, enquanto a história passava ao largo, por debaixo, a história do país”.

“E daria uma bela história, a história de um conflito de gerações bem resolvido”, continua o texto. “Se não faltasse um pedaço.”

A literatura de Carvalho é feita desses buracos, se ergue em torno deles, se equilibra sobre eles. Toma propulsão a partir dos vácuos entre as pessoas —e também entre quem elas pensam que são e quem realmente são.

É difícil elaborar uma descrição longa sobre a trama, por uma razão que o escritor sintetiza bem ao falar sobre seu processo criativo.

“É um livro muito alusivo, de pinceladas que são quase como flechas”, diz o autor de 63 anos durante uma entrevista em seu apartamento, no bairro paulistano de Higienópolis. “Passar pelas coisas assim leva mais fundo do que se eu começasse a discorrer sobre todos aqueles assuntos”

“É como se as coisas pudessem ser mais profundas quanto mais superficialmente forem narradas”, completa o colunista da Folha, num comentário que soa menos sobre este livro em específico e mais sobre todo o seu projeto literário, que confia no trabalho intelectual feito pelos leitores.

Mas vamos tentar dar conta de uma sinopse da história. O romance acompanha um garoto de 11 anos que sobrevoa a Amazônia num monomotor com o pai, um empresário viril que mantém, naquelas terras, negócios escusos com a ditadura militar.

Ao mesmo tempo, a narração se intercala com o livro de ficção científica que o menino lê durante a viagem. É a aventura macabra de uma nave espacial, com jovens seletos enviados por suas famílias em busca de um novo planeta para a humanidade habitar.

As duas histórias se comentam e se iluminam, não de maneiras óbvias, mas oferecendo chaves sentimentais para discutir o colonialismo, a predação da natureza e a paternidade.

Logo fica claro que a narrativa é fruto das lembranças de um dos personagens, o que fundamenta o caráter algo intangível, inacabado da história. Memórias minuciosas ao estilo de Karl Ove Knausgard, diz Carvalho, são produtos da ficção. Não existem.

O romance é irmão de “Nove Noites”, uma das obras mais admiradas de Carvalho, de duas décadas atrás. O autor diz ter sentido que sobravam vestígios emocionais que ele não havia explorado ali. O protagonista, assim como naquele livro, “é o meu pai, mas não é o meu pai”, diz.

Nunca se explica letra por letra o que aquele homem foi fazer na Amazônia. Mas ele se encontra com latifundiários, passa de rasante por uma aldeia indígena, se divertindo com o medo do povo lá embaixo, aplaude a explosão de um avião “cheio de terroristas” pelos militares e lida com muito, muito dinheiro vivo.

Também é um homem amado pelo filho, cheio de um carisma inexplicável. E o que pode parecer incoerência é na verdade contradição, um dos principais alimentos da obra de Carvalho.

Para ilustrar a maneira como pensa, o escritor faz um contraste entre os conceitos de moral e ética, com base na escritora búlgara Rachel Bespaloff. A moral, segundo sua leitura, é uma cartilha coletiva de costumes, já pronta e escrita em pedra. Já a ética confronta as pessoas com decisões inéditas, em que elas são obrigadas a escolher qual a coisa certa a fazer sem base em qualquer jurisprudência.

“Toda arte boa, que não é moralista, é uma espécie de exercício de ética”, arremata o autor. Não é objetivo da literatura concluir que assassinato ou pedofilia são errados, já que são regras morais bem estabelecidas. Mas talvez seja, sim, pôr os leitores na pele de um assassino ou um pedófilo para tomar decisões incômodas, estranhas a eles.

Toda essa discussão é pertinente a “Os Substitutos” porque nenhum de seus personagens é edulcorado. Todos fazem escolhas condenáveis, como a maioria de nós, humanos. Não é papel do leitor condenar os personagens, na perspectiva de Carvalho, mas viver o seu contrassenso.

“A arte não está aí para resolver problemas sociais. É um lugar de confronto, de liberdade de lidar com o insuportável”, afirma o autor. “O mais legal é um leitor contrariado, não um leitor com sua demanda suprida.”

Segundo ele, uma parte da literatura que se produz hoje —feita por autores pertencentes a grupos historicamente excluídos, reverberando suas identidades de gênero, raça ou sexualidade— acaba escorregando na armadilha do moralismo.

“Eu escrever sobre ser um escritor gay seria a forma de arte mais simples”, aponta ele. “Há coisas incríveis em escrever buscando a representação do que você é, mas é uma facilidade. A dimensão da literatura que me interessa mais é a que o confronta com o que você tem dificuldade de lidar. E isso começa pelas contradições.”

“Se não fossem as lutas identitárias, a minha vida seria uma porcaria, eu não estaria aqui hoje”, pondera, firme, antes de continuar. “Mas a identidade é uma arma de luta, uma construção política, é como pôr uma armadura e ir para a guerra. Aí não pode ter um flanco aberto. Não há um movimento político que tope a contradição, porque é, entre aspas, uma fraqueza.”

É dessa fraqueza que a literatura de Carvalho tira sua força, partindo do reconhecimento de que todo mundo é falho. Todas as armaduras têm rachaduras. E se uma geração tenta corrigir os erros da anterior, é normal que incorra em outros.

Naquela briga feia entre dois homens, do começo do texto, um deles acusa o outro de covardia. Afinal, ele não tinha a coragem de denunciar uma pessoa que é “puro crime”. “O problema”, responde o outro, “é que ninguém é puro crime”.

noticia por : UOL

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