A regulamentação das novas regras de preços de transferência fecha brechas usadas até hoje por empresas multinacionais para deslocar seus lucros para outros países e recolher menos tributos no Brasil, mas os ganhos na arrecadação federal ainda são incertos.
Por um lado, a mudança põe fim a normas que facilitam a erosão da base tributária. Por outro, a lei aprovada neste ano pelo Congresso concede algumas vantagens aos contribuintes. O saldo final ainda precisará ser mensurado com cautela pela Receita Federal.
“A lei não foi confeccionada desde o início com o objetivo de arrecadar. O objetivo dela era promover o alinhamento com uma prática internacional e tornar o sistema tributário mais justo, tanto da perspectiva doméstica quanto internacional”, afirma à Folha o subsecretário substituto de Tributação da Receita Federal, Daniel Teixeira Prates.
“Existem estimativas iniciais, e talvez não tão precisas, que indicam um potencial de arrecadação. Por outro lado, como são estimativas que contam com várias variáveis, a gente entende que é difícil incluí-las no Orçamento”, acrescenta.
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) e sua equipe já disseram em diferentes ocasiões que a regra atual de preço de transferência causava uma perda de cerca de R$ 70 bilhões ao ano. Com a mudança, haveria recuperação gradual desses montantes, com uma arrecadação extra de cerca de R$ 20 bilhões em 2024.
Os valores não foram computados no envio da proposta de Orçamento do ano que vem, a despeito de o governo ter tido de apresentar R$ 168,5 bilhões em receitas adicionais para fechar as contas do déficit zero prometido por Haddad. A Fazenda atribuiu a decisão a um “conservadorismo” nas estimativas.
Folha Mercado
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As notas técnicas que balizaram a MP (medida provisória) editada no governo Jair Bolsonaro (PL) mostram a cautela do fisco. Em 14 de dezembro de 2022, o Cetad (Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros) afirmou que, com a mudança, “deve haver neutralidade ou, até mesmo, um pequeno incremento não mensurável de arrecadação”.
O documento foi obtido pela Folha por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
Na apresentação da proposta de Orçamento de 2024, em 31 de agosto, a Fazenda incluiu uma observação de que, “ainda assim, a expectativa é alta, considerando estimativas de que a legislação evitará perdas anuais de aproximadamente R$ 20 bilhões”.
Preço de transferência é o nome técnico usado para designar operações internacionais realizadas por empresas que integram um mesmo grupo econômico. Ele pode ser diferente do preço de mercado do bem ou serviço transacionado.
Sob as regras atuais, uma unidade empresarial sediada no Brasil pode subestimar o preço de venda para uma filial no exterior, ou inflar o valor de uma importação.
As duas operações reduzem artificialmente o lucro a ser tributado no Brasil, ampliando os ganhos em outro país onde geralmente o imposto é menor. A Receita Federal chama o artifício de “deslocamento do lucro”.
A nova regra foi elaborada ainda no governo Bolsonaro e aprovada pelo Congresso neste ano, com o apoio da gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A mudança segue recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
A partir de 1º de janeiro de 2024, as transações internacionais feitas por unidades de um mesmo grupo precisarão ser tratadas como se fossem operações entre companhias independentes, seguindo preços de mercado.
Empresas que considerarem benéfico poderão antecipar os efeitos da lei já para este ano, mas isso é opcional —e tende a ser pouco demandado em um contexto em que as companhias precisam de adaptar à nova realidade.
Os efeitos sobre a arrecadação, porém, são diversos. Do lado positivo, a Receita Federal obterá ganhos ao acabar com a possibilidade de empresas superfaturarem os preços de importação ou subfaturarem os preços de venda ao exterior.
No entanto, são derrubados os limites que hoje as empresas multinacionais precisam respeitar para abater de seus lucros os valores pagos em royalties pelo uso de uma marca ou uma tecnologia patenteada.
A regra atual limita essa dedução conforme o setor e a finalidade do pagamento. Agora, a empresa terá a possibilidade de descontar o custo integral com esses itens, obtendo uma redução autêntica do lucro tributável.
A nova lei também acaba com a regra das margens fixas, que impõe uma determinada margem de lucro —muitas vezes irreal— para as empresas usarem como referência no pagamento de impostos sobre essas transações internacionais. O formato simplifica a cobrança, mas pode causar distorções.
Em alguns casos, a norma prescreve, de forma discricionária, uma margem fixa maior do que o lucro efetivo da companhia, levando à bitributação: o imposto sobre o mesmo ganho é recolhido tanto no Brasil quanto no território com o qual foi feita a operação.
“Do ponto de vista conceitual, a nova lei tem um ferramental extremamente eficiente e equilibrado para tornar o sistema tributário mais justo, tanto para fechar essas brechas e prevenir a erosão da base de cálculo do Brasil como também para propiciar um melhor ambiente de negócios. O contribuinte que sofria essa dupla tributação muitas vezes deixava de fazer um investimento no Brasil para fazer em outra direção”, explica o subsecretário substituto.
Segundo ele, como há fatores que podem elevar ou diminuir a arrecadação federal, a Receita ainda não tem elementos suficientes para cravar uma estimativa.
Prates afirma que o objetivo dos auditores é observar o comportamento da arrecadação ao longo de 2024, embora uma conclusão seja esperada apenas no fim do ano que vem, pois as empresas podem ir ajustando suas declarações ao longo dos meses.
A implementação da nova regra não será trivial. A regulamentação começou agora, com a publicação de uma primeira instrução normativa na sexta-feira passada (29). Outras devem sair nos próximos meses, para tratar especificamente de operações envolvendo commodities.
A Receita ainda precisará investir em novos sistemas para lidar com uma base de dados robusta de demonstrações financeiras de empresas e outras informações que auxiliarão os auditores na tarefa de verificar se as empresas estão praticando preços de mercado nas transações intragrupo, com margens de lucro condizentes com as operações entre companhias independentes.
Isso é necessário, diz Prates, porque algumas transações envolvem bens intermediários, insumos que ainda serão processados pelas companhias, para os quais não há uma informação tão acessível relativa a preços.
O advogado Luis Henrique Costa, sócio da área de Tributário do BMA Advogados, avalia que o novo sistema gera grande impacto, tanto no valor dessas transações quanto no custo de compliance para as empresas —com novas obrigações relacionadas ao recolhimento dos tributos.
“Por ser uma legislação menos formalista e mais visando ao respeito à realidade econômica das relações comerciais e financeiras dessas sociedades, levanta muitos questionamentos e abre espaço para um potencial contencioso considerável, como se vê nos países que já adotam esse modelo”, afirma.
noticia por : UOL