Após o lançamento da mais recente biografia do Elon Musk, escrita pelo renomado biógrafo Walter Isaacson, uma controvérsia tomou conta da mídia: de que Musk por meio de sua empresa de internet via satélite, a Starlink, teria evitado um ataque da Ucrânia à Rússia durante a guerra.
Confrontado com uma negativa pública de Musk ao caso, Isaacson reconheceu o engano: “Com base em minhas conversas com Musk, pensei erroneamente que a política de não permitir o uso do Starlink para um ataque à Crimeia havia sido decidida pela primeira vez na noite da tentativa de ataque furtivo ucraniano naquela noite. Ele agora diz que a política tinha sido implementada antes, mas os ucranianos não sabiam disso, e naquela noite ele simplesmente reafirmou a política”.
Passadas as explicações e as correções – a próxima edição do livro já virá com a versão oficial do ocorrido – fica o testemunho da influência de Musk e da Starlink no atual cenário global de telecomunicações. Dos fronts de guerra na Ucrânia, à Amazônia e ao agronegócio brasileiro, os serviços têm garantido a conectividade com a internet em regiões remotas e de difícil acesso.
O vínculo entre a Starlink e a SpaceX
Mas não é possível falar da Starlink sem falar de outra das
ousadas e comentadas iniciativas de Musk: a Space X. Criada em 2002 para tornar
a aviação espacial acessível, oferecendo viagens espaciais a preços comerciais,
atualmente a Space X é responsável pelos lançamentos dos satélites de baixa órbita
da Starlink.
Antes de iniciar seu empreendimento espacial, Musk chegou a viajar
à Rússia com o objetivo de adquirir mísseis para transformá-los em foguetes. Com
a tentativa frustrada, ele se mudou para a Califórnia, conhecida por sua indústria
aeroespacial, reuniu engenheiros e empresários e fundou a SpaceX, com o dinheiro
da venda milionária do PayPal, uma de suas primeiras empresas.
Em 2008, a SpaceX quase quebrou após falhas nos lançamentos de seus três primeiros foguetes. Já com os recursos esparsos, Musk e sua equipe reuniram peças de reposição a fim de realizar um quarto e último lançamento que, se fracassasse, poderia ter selado de vez os planos da empresa.
A quarta tentativa de lançamento do Falcon 1 não só foi bem-sucedida, como garantiu a Musk um contrato de US$ 1,6 bilhões [R$ 8,1 bilhões na cotação atual] com a NASA para reabastecimento de sua Estação Espacial Internacional, que foi primeiramente realizado em 2012.
Além de ter sido a primeira empresa privada a enviar uma cápsula de reabastecimento para a Estação, uma década depois a SpaceX se tornaria parte fundamental do sucesso da Starlink. Todas as semanas a empresa anuncia, em seu perfil no X, antigo Twitter, o lançamento de novos foguetes carregados de satélites.
No dia 2 de outubro, por exemplo, o Musk repostou uma publicação da empresa na qual anuncia a implantação de seus satélites de segunda geração que teriam quatro vezes mais capacidade do que os primeiros, permitindo-os “ligar mais pessoas, independentemente de onde vieram”.
Como funciona a Starlink
Atualmente, a Starlink é a empresa que tem mais satélites em baixa órbita (abaixo de 2 mil quilômetros de distância da Terra) em todo o mundo – até o fim de julho deste ano eram 4.519, mais da metade dos satélites ativos em órbita. As estimativas são de que já haja mais de 5 mil em operação.
Os serviços de internet via satélite, em geral, vêm de satélites
geoestacionários que orbitam o planeta a mais de 35.000 km. Em razão da distância,
o tempo para o envio e a recepção de dados entre o utilizador e o satélite, também
conhecido como latência, é elevado. A alta latência faz com que esses serviços
convencionais não suportem atividades que requerem grandes fluxos de dados.
Já os satélites de baixa órbita da Starlink estão mais próximos
do planeta, a 550 km. Em razão da proximidade com a Terra, sua latência é
significativamente menor – cerca de 25 milissegundos, contra 600 dos
geoestacionários tradicionais. Além disso, por serem em grande quantidade, os satélites
da empresa proporcionam uma cobertura de abrangência global.
Outro ponto chave são as estações terrestres, o hardware ou
o Starlink, como a empresa o chama, que inclui o receptor do sinal de satélite
e um roteador wi-fi para redistribuição do sinal. São eles que permitem que as
pessoas se conectem à internet enviada pelos satélites de qualquer parte do globo.
Na verdade, quase de qualquer parte.
O site da empresa traz um mapa com os países nos quais os
serviços da Starlink já estão disponíveis ou onde, em breve, entrarão em operação
e os que ainda estão em lista de espera – alguns na América do Sul e Central,
na Ásia e vários na África.
No entanto, não deixa de chamar a atenção algumas partes em marrom do mapa que, embora não especificadas, entende-se que sejam as nações onde a empresa não opera ou não apresenta planos para operar: Rússia, China, Síria, Iran, Afeganistão, Belarus, Venezuela e Cuba.
Questões geopolíticas e paz
Quando eclodiu a controvérsia do suposto desligamento dos
serviços da Starlink durante a ofensiva ucraniana na guerra contra a Rússia,
questões geopolíticas envolvendo a empresa começaram a vir à tona.
Após esclarecer que a Starlink não estava ativada na área do ataque e que, portanto, o serviço não havia sido desligado, Musk não deixou de expressar seu descontentamento com o uso da tecnologia na guerra. Mas o envolvimento da empresa no conflito vai bem além desse episódio.
No início da ofensiva, em fevereiro de 2022, a Rússia realizou
ataques cibernéticos contra a infraestrutura digital da Ucrânia. Na ocasião, a
solução encontrada pelas autoridades e especialistas em tecnologia foi a
contratação dos serviços da Starlink.
O alcance limitado das unidades e a necessidade de criar uma
rede de Starlinks pelo território ucraniano, na verdade, chegou a ser uma
vantagem, já que dificultaria o desmantelamento da rede pela Rússia.
O provimento da rede de Starlinks for feito a partir de doações da comunidade ucraniana do Vale do Silício, de contratos com a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional e com governos europeus, e de contribuições da própria SpaceX, conforme relatado em reportagem da revista americana The New Yorker.
Mas em setembro de 2022, o diretor de vendas da SpaceX enviou uma carta ao Pentágono na qual afirmou que a empresa não estava mais em condições de manter o financiamento dos serviços na Ucrânia.
Dias depois, Musk anunciaria, em um tweet, que seguiria com
o apoio. Em julho deste ano, a SpaceX e o Pentágono fecharam um acordo para
manutenção dos serviços da empresa na Ucrânia, cujos detalhes não foram
revelados.
Ainda assim, postagens e declarações publicas de Musk revelaram
seu mal-estar com o fato de que a tecnologia que ele havia projetado para fins
pacíficos estava sendo usada para a guerra. Em fevereiro de 2023, ele chegou a
postar que não permitiria a “escalada de conflito que possa levar à 3ª Guerra
Mundial”.
Muito poder nas mãos de Musk
Sua suposta ingerência em assuntos estratégicos de estado tem feito com que os serviços da Starlink sejam rejeitados por alguns governos. A China, por exemplo, desaprova o apoio da Starlink ao conflito no leste europeu e não quer que a tecnologia chegue ao país, com alegações de que poderia ser utilizada para monitoramento.
Há também preocupações das autoridades chinesas em relação a possíveis acordos entre a Starlink e Taiwan. Pelo menos nove países – inclusive na Europa e no Oriente Médio – já teriam tratado sobre o poderio da empresa com autoridades dos EUA. Alguns questionam a ingerência de Musk sobre a tecnologia, segundo reportado pelo jornal The New York Times.
No entanto, devido à personalidade errática de Musk, poucas nações se propõem a falar publicamente sobre esse tipo de preocupação, temendo uma represália. Não é para menos. Em abril deste ano, ele afirmou em seu perfil no X que “entre Tesla, Starlink e Twitter, posso ter mais dados econômicos globais em tempo real em uma única cabeça do que qualquer um jamais teve”.
Oportunidades para a concorrência
Motivada por dúvidas em relação à empresa e a Musk, a União
Europeia (UE) destinou no ano passado US$ 2,6 bilhões de dólares [R$ 13,19 bilhões]
para construir sua própria constelação de satélites para uso civil e militar.
Assim como a UE, empresas privadas também viram uma oportunidade com a expansão dos serviços da Starlink, principalmente quando se trata de usos militares e governamentais.
Empresas do mercado de telecomunicações via satélite como a
OneWeb, com sede no Reino Unido, e a Intelsat, com sede em Luxemburgo, encontraram
possibilidades diante das crescentes demandas globais por conectividade.
O vice-presidente de defesa e segurança da OneWeb, Chris Moore, disse em entrevista ao site de tecnologia militar C4ISRNet que a alta demanda por esse tipo de serviço significa que outros provedores não ficarão nos bastidores por muito mais tempo.
“Temos um problema de abastecimento – é um bom problema de
se ter”, disse ele. “Há muito espaço para nós e para a Starlink em termos de
resolver os problemas de conectividade do mundo no curto prazo. E, claro,
outros virão.”
O sucesso da Starlink fez com que a concorrência se reorientasse.
O vice-presidente de governo global e serviços de satélite da Intelsat, Rory
Welch, afirmou que “isso forçou muitos fornecedores tradicionais, como a
Intelsat, a melhorar nosso jogo. Estamos fazendo grandes investimentos em nossa
rede futura.”
Falência e reestruturação
Para fazer frente às novas demandas, ambas as empresas declararam
falência em 2020 e passaram por uma reestruturação profunda. Desde então, a OneWeb
já lançou 634 satélites – a cerca de 1,2 km da crosta. Até 2024, a empresa planeja
implementar plenamente sua infraestrutura no solo, o que garantirá a cobertura
global de seus serviços.
Um navio militar do Reino Unido se conectou à rede da OneWeb,
inaugurando o uso militar de seus serviços. A empresa também está desenvolvendo
um terminal portátil que pode ser dobrado no tamanho de uma mochila, para equipes
militares e de resgate que operam em áreas remotas. A empresa está próxima de concluir
sua fusão com a francesa Eutelsat, especializada em satélites em órbita geoestacionária.
Já a Intelsat tem buscado parcerias com aliados internacionais,
incluindo países da Europa Oriental, da Escandinávia e da região Ásia-Pacífico
que se preocupam com ameaças à segurança provenientes da Rússia ou da China.
“Quando eles gastam mais em defesa, normalmente há um
obstáculo para gastarem mais em tecnologia espacial”, disse Welch. “E estes são
países que tendem a operar num ambiente mais austero, com menos infraestrutura”.
A Starlink no Brasil
Os serviços da Starlink já estão disponíveis no Brasil, onde garantem internet de banda larga de alta velocidade em locais remotos e áreas rurais. Carlos Eduardo Sedeh, CEO da Megatelecom Telecomunicações, uma empresa brasileira que provê acesso à internet e links de alta capacidade a longa distancia, afirma que a Starlink já é largamente aceita em diversos setores.
“No Centro-Oeste, há uma aceitação muito forte dessa solução por parte do agronegócio, pois há empresas que não têm outras ofertas de acesso à internet. Eles estão cada vez mais demandando esse tipo de soluções e a Starlink é aderente a esses usos”, afirmou.
Mas a região Centro-Oeste não é a única a se beneficiar dos serviços da empresa. A tecnologia está sendo amplamente utilizada em regiões remotas da Amazônia, onde não há conexão por fibra ótica, por comunidades e povos indígenas e até mesmo em escolas, conforme relatado pelo advogado Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, em artigo para a Folha de S. Paulo.
A oferta de internet na Amazônia é tema debatido e tratado há
anos. Os programas Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão
(Gesac), coordenado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e
Comunicações (MCTIC), e o Amazônia Conectada, do Exército Brasileiro, já disponibilizam
conexão por satélite e fibra óptica na região. Mas não com a capilaridade que a
Starlink proporciona.
Sedeh afirma que a tecnologia da empresa permite acessos
pontuais e que, por essa razão, é uma solução adicional, que se complementa com
as demais. “A pessoa comum, que tem internet a cabo em casa, possivelmente não
vai usar essa solução para aumentar a sua velocidade. Mas pode servir para
embarcações, por exemplo, para o maquinário do agronegócio que, em breve, já
virá com internet via satélite, entre outras utilidades”.
O executivo vê uma certa resistência de gigantes do setor de telecomunicações à Starlink como um retrocesso. “A empresa proporciona conexão para as pessoas às quais as grandes teles não chegam. É preciso aproveitar o cenário que está dado e não tentar voltar atrás por meio de regulações. As teles tentam frear isso, as grandes do México, da Itália e da Espanha. Não precisa demonizar o satélite. O Musk pode ser uma figura controversa, mas é bacana o que ele está criando”, afirmou.
noticia por : Gazeta do Povo