MUNDO

Cobrir ciência sem cogitar impacto na sociedade é irresponsável

Fazia tempo que este blogueiro não era chamado de “pusilânime” por um leitor, o que sempre ajuda a dar uma chacoalhada na gente, não é mesmo? E tudo por conta deste post recente, no qual recomendei um vídeo do meu amigo e coautor, o paleontólogo Pirula, sobre um fóssil que ganhou projeção midiática nas últimas semanas. O fóssil —de um grande símio de 9 milhões de anos— está sendo usado erroneamente para argumentar que os seres humanos surgiram na Europa, e não na África.

Além de factualmente errada, essa interpretação tem sido usada ideologicamente para reforçar ideias racistas, ainda mais num contexto em que o ideário da supremacia branca —disfarçado com o termo “realismo racial”— volta a erguer sua cabeça de serpente mundo afora. E foi por citar esse perigo que fui chamado de pusilânime. Em ciência, diz o tipo de pessoa que empregou esse adjetivo, o que importa “são os fatos”. Se eles serão usados ideologicamente de maneira funesta, a ciência e o jornalismo científico não têm nada a ver com isso. Será mesmo?

Ao menos do meu ponto de vista, está cada vez mais claro que essa é uma visão simplista e, no limite, perigosa. Em especial quando falamos dos ramos das ciências biológicas e comportamentais que têm impacto direto sobre a maneira como concebemos a nossa humanidade, as coisas sempre são muito mais complicadas.

Nesses casos, é preciso lidar com uma gama muito ampla de dados complexos e contraditórios, cujas setas causais —ou seja, o famoso “o que é causa e o que é efeito”— ainda estamos longe de compreender bem. É o caso, por exemplo, da relação entre características genéticas de indivíduos e grupos, o ambiente em que vivem e os resultados em termos de comportamento, inteligência, renda, potencial para conflito etc.

Em séculos passados, vimos como dados aparentemente “científicos” foram usados para justificar decisões de política externa, conflitos armados, leis preconceituosas e mesmo genocídios. Por isso, faz todo o sentido que, diante desse histórico, ergamos o máximo possível a “barra das explicações científicas” antes de aceitar como fato qualquer interpretação que possa ressaltar preconceitos, principalmente no debate público a respeito delas.

Afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias, já dizia um sábio. E isso é ainda mais verdadeiro quando as afirmações em questão podem se tornar armas ideológicas de destruição em massa.


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noticia por : UOL

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