VARIEDADES

Peludos e (nem tão) fofinhos: quem são os “furries”, a subcultura mais odiada da internet

O assunto aqui é mundo cão. E também mundo lobo, raposa, gato, urso, vaca, tigre, canguru… Ou melhor, vamos entrar num microuniverso de pessoas interessadas por personagens com características humanas e animais, que muitas vezes ganham vida na forma de fantasias e circulam em eventos realizados em vários países. Estamos falando da subcultura furry, considerada a mais acolhedora – e, ao mesmo tempo, a mais odiada – do planeta.

Surgidos no final dos anos 1970, quando as convenções de ficção científica começaram a ficar populares nos Estados Unidos, os furries (“peludos”) inicialmente se reuniam para trocar e discutir quadrinhos protagonizados por seres animalescos criados por artistas alternativos. Com o tempo, entusiastas mais empolgados passaram a fabricar fantasias dessas criaturas e a desfilar com elas durante encontros exclusivos, já desvinculados do segmento sci-fi.

Com o advento da internet, a comunidade furry se expandiu em um ritmo alucinado e ganhou projeção internacional. Hoje, as convenções do gênero atraem fãs de várias partes do mundo e movimentam a economia de cidades. No último mês de julho, por exemplo, a tradicional Anthrocon, realizada há 25 anos em Pittsburgh (no estado norte-americano da Pensilvânia), reuniu mais de 13 mil pessoas, que se hospedaram em 16 hotéis e geraram um impacto econômico na região de cerca de US$ 14,5 milhões (o equivalente a R$ 72,35 milhões).

Por aqui, o principal encontro de furries é a Brasil FurFest, criada em 2016. O evento deste ano também aconteceu em julho, na cidade de Santos (SP), com direito a convidados internacionais, destaque na imprensa local e divulgação nos canais de comunicação da prefeitura. Não há uma estimativa de quanto dinheiro a convenção girou. Mas, segundo os organizadores, mais de 900 pessoas passaram pelo hotel Sheraton durante os três dias de programação – que incluiu palestras, workshops, bazar, concurso de dança, gincanas, shows musicais e um desfile a céu aberto de fursuits (os trajes usados pelos furries).

Para se considerar um membro da comunidade furry, basta gostar e consumir ilustrações, quadrinhos, livros e animações do gênero, sempre produzidas de forma independente e disponíveis aos montes em sites, canais do YouTube, chats e redes sociais. Alguns aficionados, no entanto, vão além e desenvolvem um personagem para chamar de seu. São as fursonas, cujas personalidades podem representar versões idealizadas de seus donos ou apenas expressar aspectos que eles não teriam coragem de revelar na vida real.

Outros furries dão um passo ainda maior e materializam suas criaturas imaginárias por meio dos fursuits, que podem custar entre R$ 500 e R$ 10 mil. Não à toa, há ilustradores e artesãos que hoje vivem exclusivamente de criar desenhos e confeccionar fantasias sob encomenda.

Conteúdo erótico é o calcanhar de Aquiles da comunidade 

Como toda subcultura que se preze, o fandom (comunidade de fãs) dos peludos também tem seu lado controverso. E põe controverso nisso. Principalmente por conta do grande volume de conteúdo erótico, acessível na internet, envolvendo personagens antropomorfizados.

Nem é preciso fuçar muito. Basta uma busca simples no Google e é possível encontrar ursas curvilíneas, alces sedutores, cangurus sarados e toda a sorte de bichos a fim de se acasalar. Nesse vale-tudo surreal, relações entre seres de espécies diferentes e do mesmo sexo também são recorrentes – afinal, quem precisa se manter pudico em um mundo paralelo de fantasia e anonimato?

Essa livre circulação de uma pornografia que à primeira vista pode ser confundida com imagens inofensivas é motivo de preocupação para educadores, especialistas em saúde mental e autoridades. Não são poucos os registros policiais de pedófilos que usaram personagens furry como iscas para atrair potenciais vítimas.

Uma das histórias mais conhecidas (e chocantes) nesse sentido foi revelada em 2017 pelo jornal The Washington Post. A reportagem mostrou como um grupo secreto de abusadores, liderados por um homem chamado Jeffrey Harver, promovia festas com temática furry no condado de Bucks, na Pensilvânia, com o objetivo de molestar adolescentes.

Barbaridades dessa natureza acontecem em todas as comunidades e ambientes. Porém, no caso específico do fandom dos furries, a atenção dos pais com relação aos conteúdos consumidos pelos filhos na internet deve ser redobrada – justamente devido à atração que desenhos fofos exercem sobre as crianças.

Mas outros fatores, não necessariamente criminais, fazem com que a subcultura peluda seja uma das mais repudiadas pelos jovens na internet. Especialmente nos EUA, onde membros de todas as tribos se unem para compartilhar memes ridicularizando os furries (e muitas vezes incitando a violência contra eles).

Há quem veja o movimento como mais um sintoma da decadência cultural contemporânea. Outros enxergam tendências zoofilistas por trás do imaginário furry. Também existem críticos, inclusive dentro da comunidade, que condenam alguns subgrupos polêmicos (para se ter uma ideia, existe até uma ala neonazi felpuda). E a maioria só acha tudo isso muito bizarro mesmo.

Histórico de eventos “caóticos” também estigmatizaram os furries 

Na dúvida, alguns políticos conservadores dos Estados Unidos decidiram enquadrar os furries nas chamadas “leis de proteção infantil”. O governador da Flórida, Ron DeSantis, é um deles.

Para impedir a presença de menores de idade em shows com drag queens (cada vez mais populares por conta de programas de tevê como ‘RuPaul’s Drag Race’), o republicano instituiu uma legislação que proíbe a entrada de crianças em eventos de “entretenimento ao vivo para adultos” – ou seja, com conotação sexual. Com receio de ser incluída nessa categoria, e sofrer sanções judiciais, a Megaplex, maior convenção furry do estado, já anunciou: apenas maiores de 18 anos poderão participar do encontro deste ano, marcado para setembro.

Para os ativistas progressistas dos EUA, notícias como essa representam mais um ataque aos direitos LGBT, pois 80% dos furries se reconhecem assim (o dado é de um estudo internacional conhecido como ‘Furscience’, conduzido pela universidade MacEwan, do Canadá). Mas mesmo os aficionados admitem que as convenções do gênero foram estigmatizadas por conta de episódios “caóticos” do passado.

Como o ocorrido durante a RainFurrest de 2015, quando uma horda de peludos bêbados e drogados destruiu e inundou um hotel de Seattle. Ou o caso de “vazamento” de gás clorino (utilizado como arma química em guerras) na Midwest FurFest de 2014, que levou 19 pessoas para o hospital na região de Chicago – e até hoje é visto, por muitos, como um ataque planejado por membros de grupos rivais da própria comunidade.

“Não sou furry 24 horas por dia” 

Relativamente recente no Brasil, a subcultura dos furries ainda não tem B.O.s por aqui. “Por mais que seja uma comunidade mundial, ela reflete a sociedade de cada lugar. Enquanto os americanos são super politizados e estão sempre em conflito entre si, os brasileiros têm um temperamento mais pacífico”, explica Danny Lauderdale, um furry de 40 anos que prefere não revelar publicamente sua identidade e profissão.

Organizador da Brasil FurFest, ele faz questão de enfatizar o caráter de amizade e aceitação do fandom. “Como os relacionamentos acontecem por meio dos personagens, e sem os filtros sociais considerados ‘normais’, não interessa se você é alto, baixo, gordo, magro. As pessoas acabam se sentindo mais livres, porque não sofrem julgamentos. Somos bastante receptivos com todos, por isso temos muitos LGBTs e neurodivergentes na comunidade”, diz Danny, cuja fursona é um caguru-raposa gordinho, com pelagem marrom, preta e branca.

Ele ainda destaca que o elemento fundamental desse universo é a criação de personagens – e não o gosto por fantasias, como acredita o grande público. “É uma subcultura completa, que inclui artes gráficas, literatura, música, performance. E o mais importante: não é um estilo de vida, e sim um hobby. Não sou furry 24 horas por dia”, afirma.

noticia por : Gazeta do Povo

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