Uma estiagem grave no Panamá está provocando atrasos incomuns e restrições severas em uma das mais importantes rotas comerciais do mundo, ilustrando os desafios que a mudança climática gera para o comércio global.
Calor forte e um dos anos mais secos já registrados levaram as autoridades do Panamá, que geralmente é um dos países mais úmidos do mundo, a reduzir o número de travessias do Canal do Panamá e barrar a passagem de navios com cargas pesadas.
As restrições –raramente aplicadas durante a estação das chuvas no Panamá, que vai de maio a dezembro— levaram grandes empresas de transportes marítimos, incluindo o grupo alemão Hapag-Lloyd, a anunciar sobretaxas em rotas que dependem do canal entre o Atlântico e o Pacífico. Embora a demanda reduzida de mercadorias exportadas tenha reduzido o impacto, embarcações com cargas suficientemente leves para usar o canal estão enfrentando esperas que podem passar de duas semanas.
“Neste momento, o Canal do Panamá é a grande incógnita no mercado dos transportes em contêineres”, comentou Peter Sand, analista chefe da Xeneta. “As transportadoras fariam bem em considerar suas opções e administrar seus riscos, considerando que a congestão no canal é crescente.”
Mais de 3% do volume do comércio global, incluindo gás líquido dos EUA e frutas macias da América do Sul, passa pelo canal, construído há quase 110 anos e que é uma fonte essencial de renda para o Panamá, o país que tem a maior renda per capita da América Central.
Até 29% dos transportes mundiais em contêineres que cruza o Pacífico passa pelo canal, segundo a provedora de dados MDS Transmodal.
A ACP (Autoridade do Canal do Panamá) disse na quinta-feira que as restrições, que vêm aumentando ao longo do ano, agora estão previstas para continuar em vigor em 2024, exceto se houver alterações inesperadas nas condições do tempo. O limite ao número de navios que passam pelo canal foi anunciado em julho, justamente quando as transportadores se preparavam para aumentar o comércio antes da Black Friday e do Natal nos Estados Unidos.
“Se nossos clientes de repente observarem uma demanda acima da prevista por artigos de Natal, é claro que queremos ter a possibilidade de aumentar a capacidade”, disse Lars Ostergaard Nielsen, diretor de entrega aos clientes nas Américas da Maersk. Ele comentou que isso ficou um pouco mais difícil com as restrições anun ciadas.
O Canal do Panamá é a única grande rota marítima que depende de água doce. São necessários mais de 50 milhões de galões de água para a travessia de cada navio.
O funcionamento das eclusas do canal depende de reservatórios de água. Mas o primeiro semestre deste ano foi o segundo mais seco em quase um século na bacia hidrográfica do canal, segundo o Instituto Smithsonian de Pesquisas Tropicais. A seca levou o Panamá a declarar estado de emergência ambiental em maio.
A falta d’água levou a ACP a endurecer as restrições, e em maio ela determinou um limite de profundidade de 44 pés para os maiores navios, limitando a quantidade de carga que eles podem transportar. A partir do final de julho a autoridade também limitou as travessias diárias do canal em 32, sendo que a média anterior era de 36 por dia.
Na sexta-feira essa limitação já provocara uma fila de 264 navios que esperavam para cruzar o canal –um aumento de 16% em relação ao mesmo dia do ano passado, segundo a Marine Traffic, que rastreia cargas marítimas.
No caso dos navios-tanque maiores que levam gás natural liquefeito para o norte, passando pelo canal, o tempo médio de espera para atravessar passou de oito dias em 10 de julho para 18 dias na quinta-feira passada, segundo a agência de transportes marítimos Norton Lilly.
A ACP disse na quinta-feira que para reduzir o congestionamento de navios sem reservas prévias para cruzar o canal, está limitando o número de slots previamente reservados. Ela observou que a demanda continua alta, não obstante as restrições.
O custo médio de enviar um contêiner de 40 pés da China para a Costa do Golfo dos EUA, passando pelo Canal do Panamá, no curto prazo subiu 36% desde o final de junho, para US$ 2.400, segundo a provedora de dados Xeneta.
Executivos da indústria disseram que navios-tanques que levam gás liquefeito têm chances maiores de enfrentar dificuldades, isso porque os navios de contêineres frequentemente têm acesso ao canal reservado com meses de antecedência.
Michael Adwell, executivo de logística marítima na Kuehne+Nagel, disse que a encaminhadora de fretes alertou seus clientes de que contêineres transportados entre a Ásia e os Estados Unidos podem ser desviados para o Canal de Suez se for preciso, embora especialistas digam que isso pode somar uma semana ao tempo de viagem.
A perspectiva de mais atrasos também pode afetar transportes de alimentos da costa oeste da América do Sul para a Europa. Segundo a MDS Transmodal, alimentos e bebidas compuseram 77% das mercadorias transportadas em contêineres entre essas regiões no ano passado.
“Se as transportadoras marítimas tiverem que encontrar maneiras diferentes de transportar frutas e legumes, isso vai custar dinheiro”, disse Antonella Teodoro, consultora da MDS Transmodal. “Isso não ajuda em nada a reduzir a inflação dos preços de alimentos.”
As temperaturas globais subiram fortemente este ano; vários países enfrentam ondas de calor extremas e inundações. O mês de julho foi o mais quente já registrado na história, segundo a agência europeia de observação da terra.
O Panamá também está sendo afetado pelo fenômeno El Niño, que ocorre a cada dois a sete anos. Ele aquece a superfície do Oceano Pacífico, alterando os padrões de temperatura e chuvas, e a previsão é que exacerbe os efeitos da mudança climática.
Não é a primeira vez que o Canal do Panamá impõe restrições de profundidade. Mas o fato de as restrições estarem em vigor durante a estação das chuvas é altamente incomum, opinou Steve Paton, diretor do programa de monitoramento físico do Instituto Smithsonian na Cidade do Panamá. Para ele, a previsão para a próxima estação seca é “muito, muito problemática”.
A Autoridade do Canal do Panamá, pertencente ao governo panamenho, vem trabalhando há anos para tentar resolver o problema iminente da água. Em 2020 ela adotou uma sobretaxa de água doce, e em 2021 contratou o Corpo de Engenheiros do Exército americano para assessorá-lo em seu programa de abastecimento de água.
Ilya Espino de Marotta, a vice-administradora do canal, disse que medidas de curto e longo prazo estão sendo tomadas para garantir o suprimento de água. As discussões para buscar soluções foram intensificadas nas últimas semanas, sendo uma das principais opções um novo reservatório na região do Rio Índio. Espino de Marotta disse que esse reservatório deve mitigar os problemas até 2075.
“Estamos assistindo a um padrão que nos alerta que precisamos entrar em ação agora com um programa significativamente mais amplo para poder evitar estas situações”, ela disse. “É uma pílula um tanto amarga para engolir agora, mas vamos definitivamente entrar em ação em breve.”
Folha Mercado
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Em 2016 foi concluído um programa de ampliação de US$ 5 bilhões para criar espaço para navios maiores. Agora esses navios, que ganharam importância crescente para o comércio que passa pelo canal, têm mais chances de ser afetados pelas restrições, pelo fato de levarem cargas mais pesadas. De acordo com a ACP, o canal pode perder receita de US$ 200 milhões este ano devido às restrições.
As fontes de água doce do qual o canal depende não são usadas unicamente para o comércio. Mais de 2 milhões de panamenhos obtêm sua água de beber da bacia hidrográfica do canal. Isso gera tensões potenciais à medida que a falta d’água cresce.
Para mitigar o problema, é vital continuar a proteger a floresta em volta do canal, que funciona como “esponja”, armazenando água para a estação seca, disse Paton, do Smithsonian.
No curto prazo, o setor dos transportes marítimos e logística se prepara para enfrentar problemas mais frequentes. “Não sei se existe uma solução, em termos de engenharia”, opinou Jonathan Roach, analista do mercado de contêineres da corretora Braemar. “É provável que seja um problema que vai se repetir sempre.”
O Panamá vem se esforçando para se livrar de sua fama de paraíso global de dinheiro de origens suspeitas e está aprimorando suas credenciais ambientais. Hoje, é um dos apenas três países do mundo a ser negativo em carbono, sendo os outros dois o Butão e Suriname.
Tradução de Clara Allain
noticia por : UOL